Política & Economia

Para Além do Capital – István Mészáros

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“O mais importante estudo sobre o pensamento político e econômico de Marx – especialmente de O capital e dos Grundrisse –, Para além do capital, a monumental obra do filósofo húngaro István Mészáros, chega finalmente ao Brasil. Este livro, com o qual a Boitempo comemora o seu centésimo título, leva-nos a revisitar a obra marxiana de explicação do capital e de sua dinâmica, reconhecendo sua grandiosidade e também suas lacunas. Para além do capital passa em revista velhos conceitos, como o de que não há alternativa ao capital e ao capitalismo, e lança luz nova sobre questões atuais, permitindo-nos redescobrir Marx como um pensador do presente e do futuro.”

De graça, aqui.

De nada.

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A agonia da extrema-esquerda

Não há dúvidas sobre quem saiu mais derrotado dessa eleição: a extrema-esquerda. Por pior e mais inadequado que o termo seja, ainda é ele que, talvez, expresse melhor a posição em que estes grupos se encontram. Num tempo em que o PT se tornou praticamente um partido de centro, absorvendo muito da ideologia e das práticas da direita (e sendo muito bem-sucedido nisto), deixando o PSDB-DEM vazios, tontos, sem contra-argumentar, querendo se aproximar da “esquerda” – tema que merece outro post – é quase uma anomalia falar em “extrema-esquerda”.

É nela, no entanto, que está presente os últimos redutos do pensamento “socialista”, “comunista”, “trotskista”, etc, etc. E que foi massivamente derrotada nas urnas: Plínio de Arruda Sampaio, com todo barulho que conseguiu fazer, na internet, na mídia e pelas oportunidades que teve (debate na Globo no primeiro turno, chegando a milhões de pessoas), abocanhou míseros 886 mil votos. Uma lástima, brutalmente inferior a vários candidatos a deputado federal, para não falar em vários candidatos a senador derrotados. Somar o resto da tropa também não ajuda muito: Zé Maria, do PSTU, 84 mil votos, Ivan Pinheiro, do PCB, 39 mil e Rui Costa Pimenta, do PCO, 12 mil votos (insuficiente até para se eleger vereador em muitas cidades do país). No total: 1 milhão e 21 mil votos.

Em 2006, Heloísa Helena, pelo PSOL, teve 6,5 milhões de votos, ficando em terceiro lugar no primeiro turno. 4 anos depois, pasmem, não conseguiu sequer se eleger senadora por Alagoas, ficando com 417 mil votos, menos da metade do segundo colocado, Renan Calheiros, com 840 mil. Juntando todos os partidos de “extrema-esquerda”, em 2010, o resultado na eleição de deputados estaduais, federais e senadores é igualmente pífio.

Porque, afinal, o discurso esquerdista caiu tanto na “preferência” do eleitor? Porque ele se mostra totalmente incapaz de atingir a população? De conseguir penetrar, ser visto pelo menos com curiosidade, atenção, de gerar interesse, crítica, debate? Os motivos são muitos. O principal é a canseira da ladainha do discurso repetido infinitamente há décadas. É como se, não importa o que aconteça e quanto o mundo e o país mude, o discurso é sempre o mesmo. E é até hoje porque as “bases” do pensamento socialista, de fato, nunca foram implantadas por aqui. E os problemas que, em tese, o socialismo quer combater, “pioram” com o passar do tempo. Isto no campo primário da discussão. A realidade é outra.

Minha formação, notadamente, é “esquerdista”. Não só como me “formei” no campo teórico como minha própria vida sempre me compeliu para tanto. Daí que, por mais que os principais partidos do Brasil no momento – PT, PMDB, PSB, PV (aka Marina Silva), PSDB e DEM – sejam mais ou menos de centro, o atual governo ainda conserva práticas de esquerda inegáveis que, afinal, não teria como abandonar. Mas para a extrema-esquerda, tudo é traição. Tudo é “se deixar subjulgar pelas forças do neoliberalismo” e etc. O discurso retrógrado de Plínio, usado por Lula em 89, poderia ser o mesmo em 75, 98, por aí afora.

A extrema-esquerda se mostra totalmente incapaz de apresentar suas ideias de maneira razoável, equilibrada, atualizada, palatável para a maioria da população e num projeto minimamente possível de ser aplicado no século XXI. Assim, fica restrita ao mesmo nicho que sempre esteve, jamais avançando: estudantes universitários, adultos convictos, militantes radicais e grupos de inclinações “revolucionárias” diversas. O eterno curral. Com a diferença que as urnas mostram o achatamento cada vez maior da penetração desse discurso. E com razão.

Numa política progressivamente personalista, a extrema-esquerda vive (mal e porcamente) de “explosões de votos” como a de Heloísa Helena em 2006. Algo frágil, sem continuidade e que, como vimos, não leva a nada. É a impossibilidade de reconhecer a administração eficaz do capitalismo, como o PT fez e vem fazendo, com todas suas falhas, injustiças, distorções, lacunas, etc. É o bla-bla-blá incansável de quem se coloca quase numa realidade paralela do resto da população, por mais que alguns apontamentos sejam corretos e necessários. O falatório vazio, sem eco e ressonância.

Como maior derrotada desta eleição, a extrema-esquerda brasileira precisa se reestruturar urgentemente – na teoria e na prática – se não quiser desaparecer de vez e atingir a irrelevância completa. Algo que está bem perto de acontecer.

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Artigos/Matérias/Opinião

Futebol, integração (!?) e as feridas expostas da América

Das coisas boas que o futebol traz, é curioso o senso de “integração” manifesto no twitter por diferentes pessoas em relação à América Latina nesta Copa do Mundo. A recente (e dramática) classificação uruguaia para a semifinal do torneio – que não acontecia há 40 anos – foi sintomática em engrossar a torcida por nossos vizinhos. Claro que boa parte disso é efêmero, ancorado numa simpatia frágil, interesse comedido e envolvimento passageiro.

Ainda assim, simboliza algo. Lembrei de um texto que publiquei em 2007: uma breve análise do livro “As Veias Abertas da América Latina”, clássico absoluto sobre a história crítica do continente, lançado pelo escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano em 1971.

Galeano é conhecido, também, por ser fanático por futebol, tendo livros dedicados inteiramente ao tema (como “Futebol Ao Sol e À Sombra”), sendo sempre solicitado para comentar o esporte. No artigo, cito justamente nosso quase total e irrestrito desconhecimento sobre a história da América Latina, além do papel imperialista do Brasil na região. A Copa do Mundo, mesmo que brevemente, ajuda a termos um olhar mais aproximado dos vizinhos, sendo uma boa oportunidade para retomar o tema.

Por isso, republico aqui o artigo lançado originalmente no Simplicíssimo e que na verdade foi escrito por mim para debate num grupo de estudos da América Latina que fundamos na faculdade. Que sirva para mudar velhos hábitos arraigados e que mal percebemos. Ou, menos pretensiosamente, que possa suscitar um novo debate: sadio e necessário.

Eduardo Galeano: as feridas expostas da América


“…temos guardado um silêncio bastante parecido com a estupidez…”

A primeira frase que lemos ao abrir “As Veias Abertas Da América Latina” é de uma pungência reveladora. Inquisitiva, na verdade. Dá para o leitor, senão a vergonha, um possível incômodo muito próximo do real: somos um povo alienado quanto à sua própria origem.

Quantos de nós não somos capazes de tecer longos comentários sobre a história e as vanguardas artísticas européias mas quando apontamos para a América Latina simplesmente engasgamos? Nosso quintal? Quintal dos Estados Unidos? As faces do imperialismo são muitas, inclusive aquela que se transmuta num sub-imperialismo, outorgando sobre os países do bloco, principalmente Brasil, Argentina e México, o papel de devorador de seus próprios semelhantes.

Os brasileiros, em especial, parecem literalmente de costas para o resto do continente. Ilusões de independência ou opulência desmedida, não se sabe. Apreço excessivo por se parecer estadunidense ou europeu. Estranheza quanto à língua mater – afinal, somos os únicos da região que falamos português. As possibilidades variam.

Há um comportamento típico do ignorante: ele evita aquilo que desconhece. Porque isso nada mais significa do que se expor, estar vulnerável às suas indisfarçáveis fraquezas. De fato, não é surpreendente a distância propositadamente criada entre os habitantes desta parte do globo. Vassalos, desde muito, os grilhões ainda permanecem no lugar mais difícil de serem extirpados: nossas mentes.

De nítida tradição marxista, Galeano faz uma reconstrução minuciosa da história do bloco, amparado em inúmeros estudos, dados, referências e fatos sólidos, provendo a base necessária para que suas explanações nos sejam críveis. Difícil, isto sim, contrapor aquilo que é apresentado. Resume ele:


“Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal têm-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar tem sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. (…) Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos.” (pág. 14).

Nossa ruína significou, portanto, o desenvolvimento do velho mundo, o máximo esplendor que o sistema pôde alcançar. Prata, ouro, açúcar, café, estanho, salitre, ferro, petróleo, borracha, cacau e algodão, cada um em seu ciclo, numa determinada época e ocorrendo em vários países, significaram a exploração de todas as riquezas existentes na América Latina, financiando, de modo essencial, a ascensão do capitalismo e o nível de vida que europeus e estadunidenses têm hoje.

Os recursos que uma terra ou região poderia dar, não raro, significavam a destruição completa daquela localidade. O auge e queda de Potosí, na Bolívia, Ouro Preto, no Brasil e Havana em Cuba são sintomáticos em demonstrar o quanto a sede imperialista pode devastar, em tão pouco tempo, redutos de abundância mineral e produtiva. Destino não menos trágico tiveram as principais cidades da Argentina, Peru, Equador, Chile, Uruguai, Paraguai, Venezuela, México e Haiti.

Vista aérea da atual Potosí

Dos 90 milhões de índios que habitavam estas terras antes da chegada dos conquistadores, sobraram apenas 3,5 milhões no impressionante espaço de um século e meio após a descoberta. Dizimados e escravizados, foi principalmente sob a pele indígena que a Europa encontrou o cenário perfeito para a sua salvação: recursos naturais em abundância e mão de obra gratuita. Segundo dados oficiais da época, que não consideram a imensa exportação clandestina para lugares como China e Filipinas, entre 1503 e 1660 chegaram ao porto de San Lucas de Barrameda, na Espanha, 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. Já a produção brasileira de ouro, no século XVIII, proporcionou à Europa um volume maior que o extraído das colônias nos dois séculos anteriores. Dez milhões de escravos africanos foram trazidos para o Brasil.

No mosaico composto por Galeano, há poucos buracos. Demonstra, de forma clara e sistemática, as diferentes formas de expropriação ilegal do continente ao longo das épocas. Intervenções diretas e agressivas nos governos, subjugação literal dos povos oprimidos e, mais recentemente, a ingerência inegável em assuntos internos dos países, além do domínio do capital estrangeiro. Números de 1968 mostraram que este capital externo controlava, no Brasil, 40% do mercado de capitais, 62% de seu comércio exterior, 82% do transporte marítimo, 67% dos transportes aéreos externos, 100% da produção de veículos a motor, 100% dos pneumáticos, mais de 80% da indústria farmacêutica, 50% da química, 59% da produção de máquinas, 62% das fábricas de autopeças, 48% do alumínio e 90% do cimento.

Este quadro se alastra por todos os outros países do bloco. O domínio do sistema bancário, também, é quase absoluto. Empréstimos do FMI e do BID, órgãos que defendem os interesses estadunidenses, são sempre acompanhados por duras exigências e cartilhas inflexíveis que afetam a soberania dos países. Entre as condições, estão, por exemplo, a obrigação de utilizar os fundos em mercadorias dos Estados Unidos e transportar pelo menos a metade para eles. Determinam a política de tarifas e impostos dos serviços, aprovam planos de obras, redigem licitações, administram os fundos, os juros, o pagamento da dívida e vigiam o cumprimento dos mesmos. Interferem até no ensino superior da região. Não se pode modificar, sem seu conhecimento prévio e permissão, as leis orgânicas ou os estatutos, impondo também reformas docentes, administrativas ou financeiras, tudo de acordo com as pautas do neocolonialismo cultural.

"The return of the flame" de Rene Magritte

Não deixam brechas, ressalta Galeano:

“Empobrecidos, sem comunicação, descapitalizados e com gravíssimos problemas de estrutura dentro de cada fronteira, os países latino-americanos abatem progressivamente suas barreiras econômicas, financeiras e fiscais para que os monopólios, que ainda estrangulam cada país separadamente, possam ampliar seus movimentos e consolidar uma nova divisão do trabalho, em escala regional, mediante a especialização de suas atividades por países e por ramos, a fixação de dimensões ótimas para suas filiais, a redução dos custos, a eliminação dos competidores alheios à área e à estabilização dos mercados. As filiais das corporações multinacionais só podem apontar à conquista do mercado latino-americano, em determinadas condições que não afetem a política mundial traçada por suas casas-matrizes.”

Neste ponto, e lembrando que um dos principais problemas do livro referem-se à questão temporal, apresentando muitos dados ultrapassados e obsoletos, que carecem de uma atualização, convém resgatar o ano de 1989, fundamental tanto para a política quanto para o pensamento vigente. Após a queda do muro de Berlim e a apressada declaração de morte do comunismo, o ideal capitalista tratou logo de se solidificar.

O Consenso de Washington, conjunto de medidas englobando dez regras básicas – como disciplina fiscal, abertura comercial, investimento estrangeiro direto sem restrições, privatização das estatais e leis trabalhistas mais “leves”, na verdade prejudicando o trabalhador, formuladas por economistas do FMI, do Banco Mundial e do Departamento de Tesouro do Estados Unidos, sob artigo do economista John Williamson, foram criadas para e seguida a risca por todos os países do bloco latino-americano da década de 90 até hoje. As “orientações” visavam a “recuperação econômica” das nações em desenvolvimento.


Outro marco de 1989 foi o aparecimento do artigo “O Fim da História”, do estadunidense Francis Fukuyama, na revista “The National Interest”. Para Fukuyama, o fim do socialismo era a prova da superioridade da ideologia capitalista e da democracia burguesa, tendo a humanidade atingindo, no final do século XX, o ponto culminante de sua “evolução”, sob todos os demais sistemas concorrentes. Como “solução final do governo humano”, o capitalismo contemporâneo decretava “o fim da história da humanidade”, a única alternativa possível e viável.

Resignar-se, portanto, à sua condição histórica “natural”, respeitando toda a herança imposta pelo imperialismo e sendo complacente com a ingerência do capital externo seria uma espécie de sugestão à América Latina, já que a solução estava dada através da cartilha recomendada.

Após 20 anos de atuação, o neo-liberalismo ainda patina em sua ineficiência e paradoxos.

Curiosa contradição histórica, considerando que os Estados Unidos pregam o liberalismo apenas para os outros, sendo rigorosamente protecionistas para consigo mesmos, transformando “a mão invisível” de Adam Smith no nada sutil big stick do inquisidor Tio Sam de cartola e dedo em prontidão.


Galeano expõe com propriedade tudo de mais intrínseco, e doloroso, que a América Latina possui nestes séculos de vida. O breve panorama traçado por ele comprova, com assustadora exatidão, aquilo que George Orwell constata ao final de “Revolução Dos Bichos”. Observando a notável semelhança adquirida entre homens e porcos, que agora andavam sob duas patas, vestiam ternos, tinham a mesma postura e os mesmos hábitos que os seus inimigos do passado, deixa entrever uma frase tristemente adequada às explanações do livro de Galeano: “todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.”

O uruguaio termina, não por acaso, numa espécie de convocação aos habitantes do bloco, sugerindo um despertar das massas, tal qual Marx e Engels ao final do Manifesto Comunista. Diz ele:

Enquanto o norte da América crescia, desenvolvendo-se para dentro de suas fronteiras em expansão, o sul, desenvolvido para fora, explodia em pedaços como uma granada.

O atual processo de integração não nos faz reencontrar nossa origem nem nos aproxima de nossas metas.

Não há de ser a General Motors ou a IBM que terá a gentileza de levantar, no nosso lugar, as velhas bandeiras de unidade e emancipação caídas na luta, nem hão de ser os traidores contemporâneos os que realizarão, hoje, a redenção dos heróis ontem traídos.

Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos a tarefa. A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre a consciência dos homens.”

Sobrepujar a letargia e servidão de nossas próprias posturas, e pensamentos, parece-me, de fato, o primeiro passo para que isto aconteça.

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Lula: o implacável

A cada vez que Lula é referendado por uma importante publicação estrangeira os estoques de diazepam vem abaixo em redutos da elite como Higienópolis, em São Paulo, e Lago Sul, em Brasília. O stress se dá não porque o governo Lula tenha necessariamente “atrapalhado” a vida da classe média alta – até o contrário – mas porque a ojeriza, o ódio e a revolta pelo reconhecimento internacional alcançado por ele e pela história (maiúscula) que fez no Brasil são notórios.

Quando veículos como a Time, um dos pilares da imprensa estadunidense, elege Lula como o líder político mais influente do mundo, há significado aí. O exato paradoxo por um veículo como a Time, repito, reconhecer Lula. Pro bem e pro mal. Em 2009 o mesmo Lula já havia sido celebrado “personagem do ano” por jornais como o espanhol El País e o francês Le Monde. Obama se derrama em elogios. Sarkozy não fica atrás. Lula é ouvido atentamente e com respeito em todos os fóruns mundiais que participa. É admirado e exaltado em todas as partes do globo.

A direita se rasga em incredulidade. Como pode? Como um “nordestino semi-analfabeto” conseguiu tanto? Porque FHC, nosso modelo de presidente e intelectual perfeito, sociólogo “respeitado”,  homem “culto”, não chegou nem perto? Sinto informar: é uma guerra perdida.

Deve ser realmente assustador “acordar” e perceber que as regras do jogo não são mais impostas com tanta facilidade como eram antes. Que a manipulação do povo não é tão fácil e simples como se acostumaram em mais de 500 anos de história.

Precisamos entender que a eleição de Lula e o subsequente governo com muito mais acertos que deslizes é uma legítima tortura psicológica contínua para a direita desse país. Precisamos compreender que a eleição de alguém como Lula, com o perfil de Lula, de onde e como ele veio, o que ele é, não pode em nenhuma circunstância ser aceita pela oligarquia brasileira. É a antítese de tudo que eles conhecem e tudo que eles vivem. É o inimigo ideológico, físico, social e político da velha elite.

Nunca antes na história desse país (há) um presidente foi tão massacrado, enxovalhado, caluniado e perseguido pela mídia. A Veja, órgão oficial da direita, abandonou qualquer vislumbre de jornalismo político sério desde que a vitória de Lula se anunciava. De lá pra cá são quase 10 anos em que o maior veículo impresso do país (mais de 1 milhão de exemplares por edição se você considerar válidos os números publicados) tenta, sempre, derrubar o governo. É muita incompetência.

A reeleição foi um golpe duríssimo: no auge da crise e dos “escandâlos” via-se a oportunidade ideal para derrubar de vez o barbudo incômodo. O linchamento constante não deu resultado. O ódio cresceu. A sensação de impotência. A simples incredulidade. O pesadelo. Comportamento reproduzido em menor grau e com mais sutileza por todos os maiores jornalões do país.

Mas a mídia impressa é brincadeira de criança perto do poder e alcance da televisão. Aí que Lula nunca foi exatamente massacrado pelas grandes redes de TV. A mensagem vem sempre sutil, subliminar, insinuante. Sutil para quem não consegue reconhecer, claro. E com muito menos efeito do que antes. Mensagem neutralizada porque a vida da população de classes C, D e E “simplesmente” melhorou muito nos anos de governo Lula.

Não há o que negar: nunca tantos empregos com carteira assinada foram criados (milhões e milhões), tantas pessoas saíram da pobreza, tanta gente voltou a ter o que comer, onde estudar – desde o ensino básico, médio, técnico e superior – tantas oportunidades foram criadas em todas as esferas possíveis. Além da óbvia empatia e do discurso feito de um autêntico representante do povo – coisa que jamais tivemos – para o povo.  O que faz toda diferença.

O parágrafo acima pode sugerir que vivemos num paraíso. Essa é a imbecilidade mais óbvia que deve ocorrer à cabeça de alguém. Claro que estamos infinitamente distantes de alcançar um nível de educação aceitável, uma distribuição de renda justa, de melhorar consideravelmente a segurança pública, o sistema de saúde precário, etc, etc. Não se resolvem 502 anos de exploração e bandalheira em 8. Ainda assim avançamos muito.

Isto posto, é preciso ressaltar também que Lula migrou para um governo de centro para conseguir se eleger. Abandonou o discurso radical, a aparência desleixada, fez acordos com o FMI, se comprometeu com banqueiros e grandes empresários, fez toda a cartilha neoliberal. Pasmem, com mais competência. Pasmem, conseguindo ao mesmo tempo introduzir programas, mudanças e transformações benéficas também para o povo. Com preocupação e projetos “populares”, projetos estes fundamentais e de impacto imediato na vida de milhões de pessoas, que simplesmente não aconteciam antes. Talvez esteja aí a grande sabedoria de Lula: entrar no sistema para agir dentro dele.

Por mais que um governo a princípio “de esquerda” cometa ações e se incline para práticas “de direita”, neoliberais, etc, ele sempre (repito: sempre), terá um trabalho social, de distribuição de renda e de criar meios para que quem não tem condições de alcançar as coisas, comece a ter. Essa é a diferença principal entre governos de mentalidades diferentes num tempo em que “ideologias” são coisas ultrapassadas e que mudam de acordo com o interesse.

As transformações centrais de consciência, acesso e qualidade da informação – ainda que tímidas – já serviram para que manipulações simplórias e “verdades absolutas” espalhadas pela mídia sofressem questionamentos imediatos e ferrenhos. O suficiente para mudar algo no jogo. O bastante para já ter alterado as eleições de 2006. E mais ainda em 2010.

Lula não é herói – talvez o mais perto disso que chegaremos – e, claro, não é santo. Nem nunca fez questão de tentar ser. “Detalhe” importante sempre esquecido propositadamente. O que explica o sucesso de Lula é que ele conseguiu fazer um governo moderno – na melhor sentido da palavra – sem cair em desgraça, conquistando coisas importantes para todos os setores da sociedade. Empresários, banqueiros e especuladores não têm do que reclamar, assim como o campo social nunca foi tratado com tanta atenção e eficiência. Lula conseguiu construir uma equipe que administrou o capitalismo como nenhuma outra. Atravessou com danos bem menores que os possíveis a maior crise desde 1929. Fez muito em 8 anos para quem recebeu toda uma herança nefasta nas mãos.

A comparação – inevitável – entre ele e FHC é cruel: Lula humilhou o tucano em todos os campos possíveis. Ex “companheiros”, ironia. Quem acompanha a mídia lembra bem o tratamento que as derrapadas e desmandos da trupe tucana, as mudanças de constituição, a corrupção, tinham: sempre atenuadas, escondidas. Os “feitos”, exaltados à última potência. Ao mesmo tempo que as besteiras do PT tomam proporção imediata de escândalo mundial e impeachment. E as conquistas e transformações positivas sempre tratadas com desdém. Qualquer criança de 3 anos é capaz de perceber essa diferença brutal de tratamento entre os governos nos últimos 20 anos.

Para quem passou fome, enfrentou pobreza extrema, morte da esposa e filho prematuramente, ditadura, cadeia, morte da mãe, desabamento da casa, pai distante e toda uma infância/adolescência/início da vida adulta tão conturbada, sempre tendo que, literalmente, lutar muito para viver, lidar com a mídia provou ser tarefa menor para Lula.

Matéria após matéria, capa após capa, chamada após chamada tentam, desesperadamente, desqualificar e atacar Luiz Inácio desde sempre. Ao mesmo tempo em que passou por cima disso tudo e se tornou o melhor governo da história do país. E que conquistou – sempre incompreensível para a oligarquia – o respeito e admiração da mídia estrangeira, não contaminada, de outros ares e outra cabeça. Lula é implacável. Fez história. E não há nada, absolutamente nada, que qualquer um possa fazer para apagar isso. Haja remédio e tranquilizante para fazer a direita (e companhia) dormir com um barulho desses.

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Teatro

O Mistério Bufo de Maiakóvski

Mistério-Bufo é a nossa grande revolução, condensada em versos e em ação teatral. Mistério: aquilo que há de grande na revolução. Bufo: aquilo que há nela de ridículo. Os versos de Mistério-Bufo são as epígrafes dos comícios, a gritaria das ruas, a linguagem dos jornais. A ação de Mistério-Bufo é o movimento da massa, o conflito das classes, a luta das idéias: miniaturas do mundo entre as paredes do circo.”

Nunca fui um grande frequentador de teatro. Erro grosseiro. Quanto mais se conhece, mais se apaixona. Não cabe aqui entrar na comparação teatro x cinema. São coisas muito, muito diferentes. Guardado o carinho pela sétima arte e toda sua completude por excelência, o teatro me parece algo muito mais quente, visceral, dinâmico. Óbvio. “Mistério Bufo”, do russo Maiakóvski, apresentada no momento no CCBB de Brasília, foi o ápice da minha enxuta experiência teatral.

A começar pelo interesse profundo que os autores russos sempre me despertaram. Dentre os poetas, não há dúvidas de que Maiakóvski foi um dos maiores. O espetáculo em si (desnecessário dizer que ele é extremamente recomendado) seguiu a risca a recomendação do próprio: “No futuro, todos que encenarem, desempenharem os papéis, lerem e imprimirem o MISTÉRIO BUFO, mudem o conteúdo, – façam  ficar contemporâneo, moderno.”

Três atos. Luzes, painéis, rapel, acrobacias, intervenções, diversos ambientes, vídeo, música, dança: uma jornada literal vivida e degustada pelo público nos diferentes momentos e cenários da peça. Ousada, lírica, caótica. Russo, português, inglês, francês, espanhol, hebraico, italiano, difícil contar todas as línguas usadas.

A dualidade da revolução levada além dos clichês. De longe, o espetáculo mais rico em forma e conteúdo que já presenciei. O materialismo e o espiritual. O comportamento e a psiquê. Pequenas concessões cômicas ante o peso natural do tema. Recursos circenses sem estarem ali por acaso, gratuitamente. O quente e o frio. Mais atual e necessária ainda do que era em 1918.

Uma produção artística, afinal, que não te deixa sair ileso. E esta é a maior virtude que posso imaginar.

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