Literatura

Quando

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“Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei.
Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela
saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado.”

Hermann Hesse, in “O Lobo Da Estepe”.

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Bloom

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Não se engane…terás o melhor companheiro que pode existir. Te darei todo o carinho que um homem é capaz, toda compreensão, amizade, respeito, intensidade. A melhor vida sexual que se pode imaginar. Ficarás orgulhosa, bela, mimada, convencida. Te aninharei quando sentires medo, ou frio. Na verdade, te aninharei sempre, mesmo que não estejas sentindo nada. Ouvirás as palavras mais doces, intensas, rebuscadas, piegas. Terás a certeza que ninguém pode ser tão encantador, completo, bem humorado, cara de pau, convencido, família, protetor, bobo, surpreendente.

Mas a irei sufocar com minhas cobranças, incertezas, ciúmes, insegurança. Projetarei todos meus medos sobre ti. Terá que lidar com atitudes intempestivas, impulsivas, inconstantes. As maiores e mais inexplicáveis alternâncias de humor. A sensibilidade extrema. Desarmarei e anteciparei cada joguinho, cada desculpa, cada ardil psicológico. Inventarei outros. Verei coisas onde não existe. Identificarei rapidamente os que são, de fato. Discutirei e argumentarei incansavelmente, de modo draconiano, duro, rápido, irônico, perspicaz. Insuportavelmente arguto. Irás se cansar, exaurir, repensar. Terás o melhor e o pior. Não sirvo para ninguém, e não é questão de não servir para mim, antes. You’re too heavy, boy. Não sei pegar leve. Nunca peça calma à um espírito impetuoso.

Me lembrarei de cada palavra, cada gesto, cada plano, cada momento, cada respiração. E os jogarei sobre ti, se for necessário. A palavra é sagrada. A intenção, além. Tudo está marcado indelevelmente em meu ser. Gravado na carne, no sangue. Não tente brincar. Eu faço meu próprio tempo. Construo minha própria vida. Levo rigorosamente cada coisa que demonstro. Eu ponho à prova para verificar se mereces, se pode suportar, se faz por onde receber tudo que ofereço. Minha inconstância não se presta a ser traiçoeira. Sou um paradoxo ambulante, uma besta fera, um lobo da estepe…muito mais lobo que homem. Sou tomado por forças que rasgam meu desejo, meu orgulho, minha intimidade, meu valor. Quieto, prestes a atacar. Desprezo imensamente a mim mesmo, o que dirá do restante da humanidade.

Isto não é um texto. Não fui eu quem escreveu. Você não sabe o que acabou de ler. Sou milhares em um só. Um garoto acanhado necessitando de carinho. Um homem faminto prestes a devorar.  Isto é só uma golfada na cara da vida. Um dedo na garganta. One of my turns. Encerrado em seu próprio momento. Reverberando esporadicamente. Pulsando, escondido. A mostra, em combustão. É a pior coisa que já saiu de meus dedos. Assim como cada nova o é. Mentira. Eu sou um blefe. Um ponto de interrogação. Um engano da natureza. Babaca, louco, careta. O maior imbecil que poderás encontrar. Como o melhor deles.

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Reticências

A maioria das pessoas tinha plena certeza de que ele estava no controle. Aquele homem aparentava uma serenidade, uma lucidez e um domínio tão grande de suas constituições que ninguém podia imaginar o contrário. Era ele a quem recorriam quando desesperados. Quando necessitavam de conselhos ou conforto. Raramente se alterava. Não demonstrava grande vulnerabilidade ante as vicissitudes da vida. Sabiam que podiam contar com o seu apoio, sua opinião. O buscavam justamente porque exalava tremendo auto-controle. Poucos conseguiam enxergar além, e aquilo o aborrecia.

De todos que travava contato, era difícil distinguir algum que podia adentrar em seu ser com verdadeira força e atração. Estava cansado daquele respeito e reverência velada. Ao contrário, queria alguém para admirar.

 

Onde estavam?

 

Tinha surtos de desespero freqüentes. Arroubos de desencanto e desilusão – não porque esperava muita coisa do mundo, exatamente, mas uma consciência tão crítica e aterradora da desgraça que acabavam por bloquear seu cérebro, e sua energia vital. Resignara-se. Continuamente. Passou a ser acometido de profunda letargia. Sabia que estava morrendo. Definhava de forma lenta e dolorosa. Sabia que ao estar com lixo, com seres incomodamente limitados, estúpidos, rasos, doentes e cerrados em sua própria mediocridade, intransponível num primeiro olhar, também se tornava um pouco igual a eles.

 

Aquele desconforto, sabia bem, jamais iria desaparecer. O estar deslocado, em agonia, obrigado a lidar com situações, pessoas, contextos e acontecimentos desprezíveis, vis e pobres em sua essência, fazia com que a miserabilidade de sua alma, no sentido mais seco e não metafísico possível, crescesse amargamente.

(…in progress…)

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