Literatura

“Elvis & Madona”, de Luiz Biajoni

Por mais barulho que tenha feito com seus livros anteriores – “Buceta” e “Sexo Anal” (download aqui) – foi somente em 2010 que conheci o trabalho de Luiz Biajoni, começando justamente pelo Sexo Anal (opa!), que contabiliza mais de 10 mil downloads na internet. Li num pulo só. Em poucas horas tinha devorado integralmente aquela estória policial peculiar. É Rubem Fonseca, Bukowski e Henry Miller. Três nomes de várias referências possíveis. Difícil imaginar alguém que consiga ler Biajoni sem ser desta maneira: dum gole só.

Biajoni não alivia. Não usa meio-termos. É bruto e escancarado com frequencia, vai direto no nervo. Tudo com um humor afiado, observações cortantes e uma aparente simplicidade enganosa. É cru, mas bem temperado. Traça retratos secos, desilusões genuínas, desgostos e pequenos prazeres. Investiga a mente humana com uma lupa de boteco. No melhor sentido possível. É aquele bar popular, lotado, com cerveja trincando, petiscos fumegantes e papos inflamados. É o flerte aberto. A passada de mão sacana. O swing com um canivete na mão.

“Elvis & Madona” é inspirado no filme de mesmo nome de Marcelo Laffitte, recém-lançado em festivais e que tem Igor Cotrim fazendo o travesti Madona e Simone Spoladore como a lésbica Elvis. É essa estória de amor improvável (eufemismo), passada nos becos, nos inferninhos, apartamentos e na orla de Copacabana que o livro aborda. Primeiro, inverte o caminho tradicional migratório da literatura pro cinema. É realmente assustador como o argumento de Laffitte casa tão bem com a atmosfera de Biajoni.

Falar só em “estória de amor” é reducionismo. Tráfico de drogas, corrupção policial, jornalismo, vidas amargas e cambaleantes, tabus diversos. Uma mente sangrando na sarjeta. Biajoni é urbano, pesado, tão ácido quanto doce e bem-humorado. Passagens leves e românticas convivem com uma linguagem hardcore e uma tensão constante.

Bia expõe na nossa cara todo nosso preconceito, acomodação, mediocridade. Toda a personalidade tacanha e hipócrita da burguesia – que, afinal, somos nós. Direta ou indiretamente, é um desafio. E por mais fora do normal que seja, dá para imaginar plenamente a vida de Elvis e Madona num Rio de Janeiro propositadamente caricato do submundo. O traveco bobalhão que já fez muita besteira e vive de salão de beleza e shows esporádicos na noite. A lésbica que veio do interior,  trabalha de entregadora e quer ser fotógrafa. O nome dos personagens, que remete à glamour e fama, não é uma ironia gratuita.

Não espere nada trivial. Biajoni mexe com o que é ordinário e cacete da maneira mais interessante, azeitada e direta possível. Sempre bom ter alguém que seja capaz disso por perto.

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15 Livros

Listas servem basicamente para que você possa encontrar sugestões bacanas, descobrir coisas novas, lembrar de outras, conhecer um pouco mais de quem a fez. Não é para concordar. E, como geralmente acontece, não listo abaixo os 15 livros que considero “os melhores”, mas os 15 que mais tiveram impacto na minha vida. Com um breve comentário de adendo. Difícil manter só 15. Ficaram de fora Emil Cioran, George Bernard Shaw, Joseph Conrad, Vladimir Nabokov, Turguenev, F. Scott Fitzgerald, Hemingway, Oscar Wilde, Marx e Bertrand Russel. 10 nomes que completam 25 livros. Um número símbolo pra mim, que adoro. Tá ótimo assim. É só uma lista, afinal. Mas parte da minha alma está aí:

O Verão e as Mulheres – Rubem Braga (1990): devorei tudo que encontrei de Rubem quando era moleque. poderia escolher qualquer um. mas este carrega no título duas paixões

TrechoSim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

1984 – George Orwell (1949): referência fundamental na minha vida, expressa em dezenas de artigos, blog, etc. um dos responsáveis pelo meu interesse por política

Trecho: “Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma idéia infinda de vitórias sobre a memória. “Controle da realidade”, chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar”.

Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.

As Grandes Obras Políticas, de Maquiavel a Nossos Dias – Jean Jacques-Chevallier (1982): emprestado por um professor no ensino médio, foi o livro que abriu minha cabeça à machadadas para o mundo. Chevallier é um monstro de erudição, mas consegue tratar cada autor e cada obra com precisão e o máximo de isenção possível, analisando as obras políticas chave do absolutismo até a democracia. Para ler várias vezes.

Trecho (Thomas Hobbes): Onde não existe governo ou lei, os homens naturalmente caem em contendas. Desde que os recursos são limitados, ali haverá competição, que leva ao medo, à inveja e a disputa. Os homens também naturalmente buscam a glória, derrubando os outros pelas costas, já que,  de um modo geral, as pessoas são mais ou menos iguais em força e inteligência, nenhuma pessoa ou nenhum grupo pode, com segurança, reter o poder. Assim sendo, o conflito é perpétuo, e “cada homem é inimigo de outro homem”.

Contraponto – Aldous Huxley (1928): belíssimo romance de Huxley, meu preferido.

TrechoRomântico, romântico! – escarneou ela. – Tens uma maneira tão absurdamente antiquada de pensar nas coisas. Matar e tripudiar sobre cadáveres e amar e o mais que segue. É ridículo. Por que não andas logo de fraque e plastrão?… Procura ser um pouco mais moderno.

– Prefiro ser humano.

– viver modernamente é viver rapidamente – continuou ela. – Não podes carregar um vagão cheio de idéias e romantismo nestes tempos. Quando viajamos de avião, devemos deixar para trás as bagagens pesadas. A velha alma de antanho sentava muito bem quando se vivia vagarosamente. Mas é pesada demais para os nossos dias. Não há lugar para ela no avião…

– Nem mesmo para um coração? – perguntou Walter. – Não me preocupa muito a alma. – Já uma vez se preocupara com ela. Mas agora que a sua vida não consistia em ler filósofos, ele estava um pouco menos interessado nela. – mas o coração – ajuntou -, o coração…

Lucy sacudiu a cabeça.

– Talvez seja uma pena – concedeu ela. – mas tudo tem o seu preço. Se gostamos da velocidade, se queremos ganhar terreno, não podemos levar bagagem. Trata-se de saber o que queremos, e de estarmos prontos a pagar o preço devido. Eu sei exatamente o que quero; assim, sacrifico a bagagem. Se te agrada viajar num caminhão de mudanças, viaja. Mas não esperes que eu te acompanhe, ó meu suavíssimo Walter. Não esperes que eu leve o teu piano de cauda no meu monoplano de dois lugares.

O Lobo da Estepe – Hermann Hesse (1927): outro dos meus queridos, tornou-se obsessão a partir dali.

Trecho:  Então, que quer mais?

– Quero mais. Não estou satisfeito em ser feliz, não fui criado para isso, não é este o meu destino. Meu destino é exatamente o contrário.

– Ser infeliz? Mas isso você era antes, quando não queria voltar para casa com medo da navalha.

– Não, Hermínia, é algo mais. Àquela época, concordo, eu era muito infeliz. Mas tratava-se de uma infelicidade idiota que não conduzia a nada.

– Por quê?

– Porque eu não devia sentir medo da morte se ao mesmo tempo a desejava. A infelicidade de que necessito e por que anseio é diferente: é uma infelicidade que me permitiria sofrer com ânsia e morrer com prazer. Essa é a infelicidade, ou felicidade, por que anseio.

– Compreendo. Nisso somos iguais. Mas que tem contra a felicidade que encontrou agora, com Maria? Por que não está contente?

– Não tenho nada contra essa felicidade. Oh, não! Gosto de Maria. Estou satisfeito com ela. É maravilhosa como um dia de sol em meio à um verão chuvoso. Mas sinto que isso não pode durar. Além do mais, trata-se de uma felicidade infrutífera. Dá satisfação, mas a satisfação não é alimento para mim. Faz adormecer o lobo da estepe, torna-o dócil. Mas não é uma felicidade pela qual se possa morrer.

– Mas é preciso morrer por alguma coisa, Lobo da Estepe?

– Creio que sim! Minha felicidade enche-me de contentamento e posso suportá-la ainda por algum tempo. Mas quando a felicidade me permite um pouco de reflexão, aí meu desejo não é de mantê-la para sempre, mas antes voltar a sofrer, só que de maneira mais bela e menos lamentável do que antes. Anseio por uma dor que me prepare e me faça desejar a morte.


O Processo – Kafka (1925): na minha jornada de descobrimento dos clássicos, Kafka bateu forte, inevitável.

TrechoK. mal prestou atenção nesses discursos; não dava muita importância ao direito, que talvez ainda tivesse, de dispor das suas coisas; para ele era muito mais relevante chegar à clareza sobre sua situação, mas na presença dessas pessoas não podia nem ao menos refletir; sem cessar, a barriga do segundo guarda – de fato só poderiam ser guardas – batia literalmente nele, de um modo amistoso, mas quando erguia os olhos via um rosto ossudo, seco, destoante desse corpo gordo, com o nariz forte virado para o lado, que se entendia por cima dele com o outro guarda. Que tipo de pessoas eram aquelas? Do que elas falavam? A que autoridade pertenciam? K. ainda vivia num Estado de Direito, reinava paz em toda parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele em sua casa? Ele tendia a levar as coisas pelo lado mais leve possível, a crer no pior só quando este acontecia, a não tomar nenhuma providência para o futuro, mesmo que tudo fosse ameaça. Aqui porém não parecia acertado; na verdade, tudo podia ser uma brincadeira, uma brincadeira pesada, que os colegas de banco tinham organizado por motivos desconhecidos, talvez porque ele hoje completasse trinta anos de idade; isso naturalmente era possível, talvez ele só precisasse de alguma maneira rir na cara dos guardas para que esses rissem juntos, quem sabe fossem serviçais da esquina, não pareciam diferentes deles – apesar de tudo estava dessa vez formalmente determinado, desde que viu pela primeira vez o guarda Franz, a não ceder a mínima vantagem que por acaso tivesse diante dessas pessoas. K. atribuía um perigo ínfimo ao fato de que mais tarde pudessem dizer que ele não entendia uma brincadeira, mas sem dúvida se lembrava – sem que de resto tivesse sido hábito seu aprender com a experiência – de alguns casos em si mesmos insignificantes nos quais, ao contrário dos amigos, havia se comportado conscientemente de modo descuidado, sem a mínima sensibilidade para as possíveis conseqüências, sendo assim punido pelo resultado. Isso não deveria acontecer de novo, pelo menos não desta vez; se era uma comédia, então iria participar dela.

Herzog – Saul Bellow (1964): a vida que aprendeu a prosperar com o veneno

Trecho (artigo recomendado): “Minha vida – não uma longa enfermidade, mas uma longa convalescença. O organismo que aprendeu a prosperar com o veneno. (…) Mas como continuamos encantadores, apesar de tudo.”

Trópico de Câncer – Henry Miller (1934): como não se envolver com a escrita desse cara?

TrechoNão tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.

E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza…. e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo…

Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.

É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito.


Ulysses – James Joyce (1922): qualquer coisa que se fale sobre Joyce é insuficiente

TrechoSaltou fora da plataforma de tiro e olhou seriamente para o seu observador, juntando em volta das pernas as dobras soltas de seu penhoar. A cara rechonchuda e sombria e a queixada oval e taciturna lembravam um prelado, patrono das artes na idade média. Um sorriso agradável desabrochou em seus lábios.

– A ironia das coisas! – disse ele alegremente. – Seu nome absurdo, um grego antigo!

Ele apontou com o dedo num gesto amigável e se encaminhou para o parapeito rindo consigo mesmo. Stephen Dedalus se aproximou, acompanhou-o e a meio caminho cansado se sentou na beira da plataforma de tiro, observando-o enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, molhava o pincel na tigela e passava a espuma na face e no pescoço.

Cem Anos de Solidão – Gabriel García Marquez (1967): minha definição de “suculento”

Trecho: Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.

Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar (A Aventura da Modernidade) – Marshall Berman (1982): Berman é um teórico incrível. um dos poucos que conseguem passar longe do “rebuscamento” tão forçado e desnecessário de 95% deles, sendo lúcido e brilhante.

TrechoNossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos, para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.

Memórias do Subsolo – Dostoyevsky (1864): pungente como só quem leu sabe

Trecho: “Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor frígido, envenenado e, sobretudo, sempiterno. Há de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa, até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores; e cada vez acrescentará por sua conta novos pormenores, ainda mais vergonhosos, zombando maldosamente de si mesmo e irritando-se com a sua própria imaginação. Ele próprio se envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo lembrará, tudo examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos inverossímeis, com o pretexto de que também estes poderiam ter acontecido, e nada perdoará.”

A Peste – Albert Camus (1947): agonizante

Trecho (artigo recomendado): “A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio.”

Almas Mortas – Gogol (1842): mergulho na sociedade russa, fundamental.

TrechoEu considero inteligente o homem que em vez de desprezar este ou aquele semelhante é capaz de o examinar com olhar penetrante, de lhe sondar por assim dizer a alma e descobrir o que se encontra em todos os seus desvãos. Tudo no homem se transforma com grande rapidez; num abrir e fechar de olhos, um terrível verme pode corroer-lhe as entranhas e devorar-lhe toda a sua substância vital. Muitas vezes uma paixão, grande ou mesquinha pouco importa, nasce e cresce num indivíduo para melhor sorte, obrigando-o a esquecer os mais sagrados deveres, a procurar em ínfimas bagatelas a grandeza e a santidade. As paixões humanas não têm conta, são tantas, tantas, como as areias do mar, e todas, as mais vis como as mais nobres, começam por ser escravas do homem para depois o tiranizarem.

Bem-aventurado aquele que, entre todas as paixões, escolhe a mais nobre: a sua felicidade aumenta de hora a hora, de minuto a minuto, e cada vez penetra mais no ilimitado paraíso da sua alma. Mas existem paixões cuja escolha não depende do homem: nascem com ele e não há força bastante para as repelir. Uma vontade superior as dirige, têm em si um poder de sedução que dura toda a vida. Desempenham neste mundo um importante papel: quer tragam consigo as trevas, quer as envolva uma auréola luminosa, são destinadas, umas e outras, a contribuir misteriosamente para o bem do homem.

O Guardador de Rebanhos – Alberto Caeiro (1925): poema definidor

Trecho:

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo…

(…)

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

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Dos autores tristemente banalizados: Hermann Hesse

Hesse numa nice, numa tranquila, numa boa

Dá uma série. É inevitável que quando se torne “pop” a obra de alguém seja planificada, esquartejada, reproduzida de modo frenético e gratuito, raramente chegando ao cerne da coisa. No caso das letras, é quando as citações são infinitamente mais lidas e conhecidas do que os livros em si. Mal inevitável e antigo que tomou proporção imensurável na internet: o reino por excelência do faz de conta, da projeção.

Entre os autores que “mais gosto”, há uma categoria especial: os que considero pais. Aqueles que tenho cumplicidade tão grande, que mergulhei tão profundamente, que falam tão diretamente à minha alma que não podem ser colocados lado a lado dos demais. Hesse é um deles. Um dos principais. Com ele aprendi a ser alguém melhor. A pensar e olhar o mundo de outra maneira, literalmente. E se conseguisse aplicar 50% do que Hesse passa, seria alguém incomparavelmente melhor do que sou hoje.

De família protestante, Hesse foi estudar as religiões orientais (tendo viajado longamente para alguns países), especialmente o budismo. Ligado ao início da psicanálise na virada do século XIX/XX (Jung, principalmente) e também pelas marcas da Primeira Guerra Mundial, estes três pontos são fundamentais na sua literatura. Com sua vasta cultura autodidata e a incrível lucidez e sensibilidade para o humano – o que mais me toca nele, inevitavelmente – Hesse acabou por se tornar espécie de ícone do movimento hippie, como um dos autores mais “lidos” e referenciais.

Daí as tentativas fracassadas de ligá-lo ao movimento beatnik (um absurdo sem fim) e o início da popularização de sua obra. A espiritualidade tão forte em Hesse – uma espiritualidade profunda e livre de ranços e maniqueísmos – fala de modo único, dada sua incrível capacidade de colocar as coisas sob um prisma transparente ao mesmo tempo que rico e multifacetado.  Seu profundo conhecimento do cristianismo ocidental em colisão com as bases das religiões orientais geram um caldo irresistível. Ler “Demian” na adolescência, como foi o meu caso, faz bastante diferença. “Demian” é uma bela introdução à obra hesseana, recomendado classicamente para adolescentes dado o poder e simplicidade. Tentei exprimir – com as falhas inerentes – a essência de Demian, ligando-o a outras obras de Hesse e George Orwell, escrito e publicado na época que estava descobrindo tudo isso, em 2004, aos 17 anos.

“O Lobo da Estepe”, sua obra mais famosa, é de pungência assustadora. Harry Haller tornou-se um dos maiores outsiders da literatura, por mais que o termo seja clichê e insuficiente. “Siddartha” é onde Hesse expõe mais diretamente sua relação com  o budismo. “Narciso e Goldmund” vai fundo na psicanálise e história, ambientado durante o período da Peste Negra na Europa. Já “O Jogo das Contas de Vidro”, seu último romance (que lhe deu o Nobel de Literatura em 1946) é o ápice da complexidade e da mente de Hesse. Seu romance final, deliberadamente composto para reunir todas as características de sua obra até então, levando-o a outro nível. Diversos estilos literários misturados e uma infinidade de conceitos e dilemas, “Das Glasperlenspiel” tem força assustadora. No mais, recomendo também a biografia, o “Para Ler e Guardar”, compilação de fragmentos de cartas, pensamentos esporádicos e outros comentários de Hesse e seus diversos contos, sempre arrebatadores. Os demais livros até hoje infelizmente ainda não li.

A banalização é cruel porque reduz toda uma concepção de mundo, estética e filosófica, à uma mero fragmento. Rigorosamente, tudo é banalizado. A simplificação e exposição sucinta de conceitos e pensamentos é um problema quase inescapável. Esse próprio texto. Uma das bases do jornalismo, aliás, como sabemos. Piorado por não se tratar do buraco da rua da esquina que causa problema no trânsito – pra citar um caso diário – mas de coisas que demandam tempo, dedicação, interesse real. Que exigem mais que uma passada de olho rápida. Algo quase surreal em tempos tão estéreis.

A opressão do universo criado em torno do trabalho para total e irrestrita dominação da mente já foi discutida aqui nesse artigo. Sem falar na rede nefasta da própria sociedade.  O problema não é o carinho de alguém por uma obra que não gosta de vê-la jogada como qualquer coisa por aí, a exemplo do que costuma acontecer na música, quando algo se torna popular passa necessariamente a ficar pior para certo grupos de pessoas.  Não se trata de ciúme ou falsa sensação de exclusividade.

Como tudo que me é caro, não posso negar a tristeza pela banalização irrestrita. Mais que isso, perdemos o essencial. Ficam só os rótulos. Para pessoas que costumam receber 800 inserções de propaganda por dia desde crianças – em estudo que lamentavelmente não possuo o link, feito pelo pessoal do Adbusters – parece natural que nos guiemos por marcas e definições baratas. Rejeitando tudo que vá além disso.

A obra de Hesse, como de inúmeros outros (por exemplo Nietzsche que virou bottom de estudante universitário), acabam sofrendo desse mal. A capitalização da cultura não é coisa nova e tampouco obrigatoriamente nefasta, desde que acompanhada de estudo e interesse real. 1% dos casos. Daí que, numa provocação sob isso tudo, cabe a famosa frase de Hesse, extraída de “Lobo da Estepe”: só para os raros. Mesmo.

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Salinger e a maldição de Catcher In The Rye

Como esperado, a morte de JD Salinger resultou em lamentações em todos os cantos do mundo, por gente com muita ou nenhuma intimidade com sua obra. Quando li “O Apanhador no Campo de Centeio”, na adolescência, já havia lido Orwell, Huxley, Hesse, Rubem Braga, Hemingway, Fitzgerald, Conrad, Pessoa, Henry Miller, Bellow e diversos outros. “Demian”, de Hesse, outro livro considerado “ideal para ser lido antes dos 20 anos”, “1984” e os autores citados tiveram muito mais influência na minha vida do que Salinger.

“Catcher In The Rye”, claro, já chegou até mim coberto das loas mais extremas possíveis e absolutamente adorado por quase todo mundo que eu conhecia que gostava de literatura. Não bateu. Fechei o livro com a sensação de algo superestimado e abaixo das minhas expectativas. O impacto foi pequeno, soterrado por outros escritores, outras ideias e outros estilos que já tinha tomado contato antes.

Ainda assim, lendo “O Apanhador” é fácil compreender porque o livro é tão importante pra tanta gente boa, porque é considerado um clássico adolescente e porque vendeu tanto (estima-se que 65 milhões de cópias no mundo). Todos os elementos para agradar mentes incipientes estão ali. Holden Caulfield, loser e outsider, era o anti-herói ideal para um mundo em frangalhos após a segunda guerra mundial e com tantas transformações sociais, políticas, familiares, econômicas, comportamentais (etc, etc) acontecendo. Mas minha decepção com “Catcher” foi suficiente para impedir que fosse atrás das outras obras do escritor. Posso estar perdendo muito. Continuo achando que não.

Salinger, aparentemente, era malucão como boa parte dos melhores escritores estadunidenses do século XX. Ainda mais que Bukowski, por exemplo, outro ícone da literatura teen, com seus milhares de escritos (alguns maravilhosos, outros de envergonhar qualquer um). Acredito que dei mais chances para Bukowski por ter lido a biografia dele, escrita por Howard Sounes, livro que recomendo fortemente.

Apesar de não ser dos maiores admiradores de Salinger, ler “Catcher In The Rye” é um exercício interessante, com passagens boas o suficiente para obliterar as aborrecidas, que não são poucas. E o livro é curtinho, não causa grandes danos ou perda de tempo.

Sad but true.

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A liberdade de ver os outros – David Foster Wallace

Lembrei desse texto agora, que aprecio bastante. Já falei de DFW e havia linkado o texto neste post aqui. Como fui conferir e a Piauí passou a exigir cadastro para lê-lo, achei por bem publicar. Vale a pena. E, ah, este foi “apenas” um texto preparado por ele para dar uma palestra que, se não me engano, era a formatura de alguma faculdade (a qual fugiu o nome agora). Imagino a reação da molecada…

A liberdade de ver os outros
por David Foster Wallace
Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

– Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

– Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude – mas
é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.

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Homens Comuns

Estes dias me deparei com o lançamento recente da editora 8Inverso: as correspondências de Dostoiévski entre 1838 e 1880. Na verdade, as cartas são unilaterais. Não há contraponto. As respostas não estão presentes. As cartas traduzidas são endereçadas principalmente ao irmão, Mikhail.

A despeito destas falhas, o livro é obrigatório para os interessados pelo autor russo. Nelas, ficam expostas as entranhas de Dostoiévski. O tanto que um dos maiores gênios da literatura mundial é…um homem comum. Comum e ordinário como todos nós.

Oprimido pelo serviço militar, as doenças, a fome, a prisão, a carência, insegurança, o vício no jogo, a falta de dinheiro. Dostoiévski escreve por diversas vezes desesperado implorando por dinheiro ao pai e ao irmão. Lista todas as suas necessidades básicas, justifica o pedido por cada centavo que ele não tem para a mínima sobrevivência.

Como escritor, narra em detalhes o processo de criação das obras. Para além do perfeccionismo quase comum a todos os autores, Dostoiévski deixa claro a necessidade de fazer dinheiro com os livros. O inegável aspecto comercial. O quanto aguarda que se torne um escritor de sucesso para poder quitar as dívidas. O quanto acompanha, crítica por crítica, texto por texto, o que sai em jornais e periódicos sobre ele. Avalia os amigos. Os escritores do seu tempo: Gogol, já consagrado e Turguenev, a quem admira a princípio, tem uma série de desentendimentos e acaba se reconcicliando já no final da vida.

Definindo-se como vaidoso e ambicioso, Dostoiévski deixa entrever tudo que seria inimaginável a quem não conhece sua história, perceber. É óbvio que isto não invalida em absolutamente nada as obras que escreveu. Pelo contrário, as engrandece.

O trágico permeia o livro: além de todas as privações, o exílio na Sibéria, a prisão por conspirar contra o regime, as doenças, a epilepsia, a ordem de execução cancelada na última hora e posteriormente a crueldade do czar que manda os soldados fazerem todo o processo de execução apenas para “pregar uma peça” nos prisioneiros e anunciar a redução da pena. As mortes da esposa, da filha e do irmão no mesmo ano. O dinheiro ganho nos primeiros anos de seu reconhecimento como escritor perdido no jogo.

A inveja. A infinita insegurança. O quanto se preocupava com a opinião alheia. Um Dostoiévski frágil, atormentado, bestialmente comum. Humano. Tudo está em seus livros: cada trama, personagem, pensamento. Tudo é tirado literalmente da vida que teve.

É assustador, mesmo que óbvio, constatar estas mazelas materiais, espirituais e psicológicas, presentes em todos nós.

Ler as correspondências do autor russo é não só mergulhar no seu inferno pessoal como perceber a grandeza e a desgraça da vida. A eterna ânsia. A estupidez, o desejo e as necessidades primais. O quanto somos ridículos. E como os tais raros conseguem equilibrar isto com uma genialidade sem igual.

Fechei o livro com algumas lágrimas nos olhos e muitas feridas por cicatrizar.

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Recomendado: Acervo de José Mindlin para download

Muita gente tinha inveja do acervo de livros raros do bibliófilo José Mindlin. Não há mais porquê. À partir desta quarta-feira, 17 de junho, parte da coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, formada com o que o empresário doou para a USP, já pode ser acessada virtualmente.

O projeto ‘Brasiliana Digital’, lançado ontem no MASP, pretende digitalizar cerca de 25 mil títulos históricos como, por exemplo, primeiras edições de Machado de Assis e dos relatos de viagem de Hans Staden (1557). Por enquanto, você já pode baixar cerca de 3 mil arquivos no site.

“O usuário verá o livro tal como ele é. Mas a partir desta imagem original, estará disponível uma versão digitalizada, como uma transcrição, que permitirá busca por palavras, frases e trechos”, adianta o organizador da coleção, o professor Pedro Puntoni.

por Rafael Cabral, do Link

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