Política & Economia

Brasília mantém a tradição: manifestante? toma porrada!

Foto de hoje (09.12.2009), da matéria do G1. 2500 manifestantes agredidos nas ruas da capital pela polícia. Nada muito diferente do que ocorre no DF desde a fundação da cidade. Vergonha. Nojo. Democracia da Cosa Nostra. Aceitamos isso com “naturalidade”, como uma chamadinha no meio de jornal. O documentário “Conterrâneos Velhos De Guerra”, de Vladimir Carvalho, absolutamente fundamental, mostra o lado nefasto da fundação de Brasília, o apartheid social instaurado na capital brasileira e o massacre de milhares de operários, mantidos em condições sub-humanas, até hoje negado por quem não pode admitir: Niemeyer e Lúcio Costa.

httpv://www.youtube.com/watch?v=-qIjSCVwflU

httpv://www.youtube.com/watch?v=dA6M_C5vTcI

O eterno ciclo da história se repete na construção da desnecessária e faraônica nova sede do governo de Minas, em Belo Horizonte, novamente projetado por Niemeyer para o “amigo” Aécio Neves. Operários entraram em greve protestando pela comida estragada servida e as condições ruins de trabalho, no último mês (novembro/2009). Este é o belo “comunismo” de Niemeyer.

Orwell, Orwell, Orwell:

“Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma idéia infinda de vitórias sobre a memória. “Controle da realidade”, chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar”.

Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar. (1984, página 36/37, 29º Edição, São Paulo, Brasil, 2004)

GUERRA É PAZ

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

IGNORÂNCIA É FORÇA

Mais fotos aqui.

Padrão
Artigos/Matérias/Opinião, Filmes

Michael Moore e a roupa suja

Sicko – Michael Moore – 2007 – ****

A má-vontade (ou “birrinha”) que muitos “críticos” tem com Michael Moore infelizmente quase nunca é acompanhada de uma avaliação profunda dos principais temas levantados por seus documentários. Manipulador, maniqueísta, apelativo, desonesto, sensacionalista, comediante. A lista é longa. As técnicas de Moore são realmente questionáveis. Há até um documentário sobre isso, que infelizmente ainda não vi.

Para horror de quem se limita a falar besteiras muito maiores que qualquer deslize de MM, o gordinho venceu o Oscar, garantia de sucesso comercial, e Cannes, prova de reconhecimento da crítica, que premia o que de mais “artístico” e contundente o cinema faz. Algo ignorado é que Moore me parece inteligente o bastante para ter ciência dos seus pontos falhos e de que forma ele pode ser atacado a cada documentário que produz. Reconhecer a legitimidade do adversário, aliás, é a melhor maneira de enfraquecê-lo. Isso inclui até a artimanha de enviar um cheque anônimo de 20 mil dólares ao mantenedor do maior site anti-Moore do mundo, porque o sujeito não conseguia pagar o atendimento médico necessário para a esposa. Já o argumento de que em Guantanamo (base militar dos EUA em Cuba) os prisioneiros da Al-Qaeda são tratados com muito mais cuidados que boa parte da população dos EUA é, claro, frágil. Qualquer um sabe que Guantanamo não é exatamente uma filial do paraíso.

Sicko aborda o sistema de saúde no mundo (em especial nos EUA). Difícil imaginar tema mais importante. Os depoimentos e argumentos se sucedem, afim de mostrar que quem não tem cobertura médica nos EUA está literalmente ferrado e quem tem também. Não por acaso Obama tenta, no momento, aprovar um projeto de reforma do sistema de saúde.

Mesmo com todas as restrições de “doenças pré-existentes” possíveis (uma lista infindável), 250 milhões de estadunidenses tem algum tipo de plano. Moore mostra a máfia por trás da indústria médica (e farmacêutica). Que tem o simples objetivo que toda empresa capitalista têm: fazer dinheiro a qualquer custo. Mesmo que isto seja sob a vida dos outros. Apenas um detalhe.

Histórias verídicas de pessoas que perderam familiares e amigos porque os planos negaram os tratamentos necessários sob qualquer pretexto forçoso (um absurdo descomunal) se empilham na tela. Dívidas com hospitais. Instituições que mandam despejar seus doentes na rua enfiando-os num táxi qualquer. Quanto custou para a indústria médica comprar o senado e o presidente Bush, permitindo que nada mudasse e o lucro continuasse a ser gerado como bem entendem. O terrorismo (este sim) feito sob o sistema de saúde socializado. O dinheiro em primeiro lugar, no público ou privado. Se você não tem como pagar, não é atendido. Simples assim. E mesmo quem pode, encontra dificuldade. Basta que o plano avalie que o custo será maior que o ganho. Bye bye. We are america. Self-made man.

Afim de comparar o sistema de saúde dos EUA com o de outros países, Moore vai até o Canadá, a França e a Inglaterra, entrevistando pessoas nativas destes lugares bem como estadunidenses que se mudaram para lá. A diferença gritante – atendimento respeitoso, humano, de ponta, rápido, inclusive com os médicos indo até a casa do paciente, como na França, ou o hospital dando o dinheiro para o transporte, se a pessoa não puder pagar, como na Inglaterra – aparece. Americanos (sic) contam, com os olhos brilhando, que se sentem abençoados por não dependerem do sistema de saúde do seu país de origem.

Moore certamente desconfia que impostos altíssimos devem bancar isto. E escolhe visitar a casa de um médico inglês do serviço público, na esperança dele viver endividado, como a imensa maioria dos estadunidenses. Para “surpresa” o médico ganha muito bem, tem uma casa de três andares e não possui dívidas acumuladas. Seu principal gasto são frutas e férias.

Aqui fica evidente o maniqueísmo de Moore e o mundo encantado fora dos EUA que ele cuidadosamente cria. Parece óbvio que a história não se resume ao dualismo visto na tela. Os confortáveis benefícios conquistados pelos trabalhadores franceses ao custo, literal, de suor e sangue ao longo da história, proporciona um universo de vantagens que pesam, enormemente, no orçamento do governo. A previdência estourada, a bolha crescente difícil de ser contida. E quando o governo tenta, o país pára. Os benefícios são legítimos. Funcionam. Não caíram no colo de ninguém. Mas os problemas atuais enfrentados por este quadro nem de longe são pincelados por Moore.

Assim como é óbvio que ingleses, franceses e canadenses não vivem exatamente no paraíso. Mesmo com essa ressalva, o sistema de saúde nestes países é o que deveria ser o brasileiro se a carga monstruosa de impostos que pagamos fosse bem administrada, não sendo dragada (também) pela corrupção no meio do caminho. Lá eles pagam mas tem o retorno. Aqui…bem, você sabe como é.

O que os exemplos de Moore tem em comum são a imigração explosiva, o desemprego, enfim, todas as mazelas compartilhadas em maior ou menor grau por quase todos os cidadãos do mundo. Exceto pelos 1% daqueles que detém 80% da riqueza do planeta. Aspas para Orwell, por favor:

“Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição – com efeito, de certo modo era a destruição – de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e a aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância.”

Eis a síntese do que realmente importa em Sicko. Em outras palavras, é o mesmo que é dito não por coincidência por um inglês: o governo dos EUA não parece muito interessado em ter pessoas educadas e saudáveis, porque, assim sendo, o seu poder seria questionado e destruído. Como nos EUA, assim é em boa parte do mundo. E Moore demonstra como somos enrolados numa teia de dívidas e preocupações mundanas demais durante toda a vida para não termos o que pensar, argumentar. Para ficarmos reféns do establishment. Não é nenhuma novidade. Eis a base da nossa sociedade. Sem isso, ela se implode.

O que aconteceria na Inglaterra se o sistema de saúde universal fosse alterado? Uma revolução. É o que o senhor diz. E uma estadunidense, morando na França, percebe a diferença básica: aqui (na França), o governo tem receio das pessoas, lá (EUA), as pessoas tem medo do governo. E isto muda tudo. “Não se revoltarão enquanto não tiverem consciência; não terão consciência enquanto não se revoltarem”

Por fim, Moore vai à Cuba. Lá, os “heróis” do 11 de setembro (voluntários que ajudaram o trabalho dos bombeiros e acabaram desenvolvendo uma série de doenças principalmente respiratórias com o passar dos anos) encontram o tratamento adequado – e gratuito – que lhes fora negado nos EUA. Em Cuba, o remédio que custa 120 dólares nos EUA é encontrado por 5 centavos de dólar. Somente na ilha de Fidel (onde você acha que Lúcifer mora, brinca Moore) os “heróis da América” são tratados com a dignidade merecida. Não é preciso ser “herói” para receber o mesmo atendimento.

O paradoxo é o que define o mundo moderno. Como um ilhazinha como Cuba, com todas as restrições comerciais impostas pelo próprio EUA, comunista, consegue ter um dos melhores sistemas de saúde do mundo, gratuito, e os EUA, a nação mais rica do planeta, não? Ora, tanta riqueza precisa vir de algum lugar. A indústria médica (incluindo a farmacêutica) é só um deles.

O próximo filme de Moore (a sair em outubro) é, claro, sobre a crise econômica. A verdade, no entanto, a respeito dessa galhofa toda, é só uma. Como diz Marshal Berman em “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”:

A economia moderna provavelmente continuará em expansão, embora talvez em novas direções, adaptando-se às crises crônicas de energia e do meio ambiente que seu sucesso criou. As adaptações futuras exigirão grandes turbulências sociais e políticas; mas a modernização sempre sobreviveu em meio a problemas, em uma atmosfera de “incerteza e agitação constantes” em que, como diz o Manifesto Comunista, “todas as relações fixas e congeladas são suprimidas”. Em tal ambiente, a cultura do modernismo continuará a desenvolver novas visões e expressões de vida, pois as mesmas tendências econômicas e sociais que incessantemente transformam o mundo que nos rodeia, tanto para o bem como para o mal, também transformam as vidas interiores dos homens e das mulheres que ocupam esse mundo e o fazem caminhar. O processo de modernização, ao mesmo tempo que nos explora e nos atormenta, nos impele a apreender e a enfrentar o mundo que a modernização constrói e a lutar por torna-lo o nosso mundo. Creio que nós e aqueles que virão depois de nós continuarão lutando para fazer com que nos sintamos em casa neste mundo, mesmo que os lares que construímos, a rua moderna, o espírito moderno continuem a desmanchar no ar.

Não lhe parece familiar?

Padrão
Artigos/Matérias/Opinião, Política & Economia

A Eterna Crise

Artigo originalmente publicado no site Duplipensar (www.duplipensar.net) em 26.07.2005.

A Eterna Crise

Foi lendo o artigo “Crise? Que Crise?” do nosso congratulado companheiro Janus Mazursky que me sobreveio o desejo de verificar algumas particularidades da propalada “crise” em que nos encontramos:

Ato I – Velharias mais velhas que outras

“Os olhos não servem de nada a um cérebro cego.” (Provérbio Árabe)

O próprio presidente Lulla deu, numa entrevista, a tônica de toda a galhofa: “Isto é prática comum em todos os partidos”, referindo-se aos recursos não contabilizados usados para financiar campanhas, o chamado caixa dois. E em vista de todas as acusações divulgadas por ele, é apropriado citar novamente Roberto Jefferson no programa Roda Viva: “Qual é a novidade? Até parece que vocês todos não sabiam disso…”. Pronto. De fato, nada do que veio à tona é novo, nada do que é continuamente desmembrado seria capaz de causar algum choque, alguma manifestação de surpresa, mas causa. Então como algo sabido entrementes há muito é capaz de gerar tanto burburinho? Há duas razões: jogo político e combustível midiático. Não me contenho em gargalhar deliciosamente quando vejo na tv políticos de olhos esbugalhados trovejando o ódio salpicado da saliva incestuosa que inevitavelmente escorre por suas bocas, lobos ferozes prontos para devorar seus irmãos e saborear o doce e aureolado prazer de ser “o bom moço”, protegidos pela égide de delatores da corrupção. Convém citar inclusive o impagável dinossauro Ney Suassuna, que declarou: “não sei se é porque eu sou neófito na política, estou apenas no meu segundo mandato de senador, mas todo esse dinheiro, todas essas pessoas, estas denúncias, me impressionam”. PSDB/PFL – e demais currais eleitorais – não se contém de alegria (enquanto nenhum respingo de lama os atinge) e com toda razão. Ser publicitário das campanhas eleitorais de tais partidos ano que vem será uma das tarefas mais fáceis do mundo. Com um banquete destes proporcionado gratuitamente por seus – em tese – adversários, nenhuma criatividade, nenhum esforço se fará necessário, tratará apenas de liberar doses homeopáticas de acusações, rebuscadas pela santidade direitista.

Por seu turno, jornalistas assumem vozes pesarosas, quiçá tétricas, para anunciar as progressivas cenas da atual tragédia encenada em terras tupiniquins. Lembro-me até de um, que, participando do programa Observatório da Imprensa, disse mais uma coisa que todos sabem: “corrupção é a melhor notícia”. Nada satisfaz mais a mídia do que as corruptelas do sistema, nenhum outro assunto é tão voluptuoso. Corrupção vende. Corrupção é a premissa perfeita para que seres baixos almejem o paraíso, ou seja, para que veículos duvidosos conquistem o respeito da população.

Voltando ao nosso escopo inicial, a pergunta martela sem cessar: se a corrupção é algo de conhecimento geral, os mecanismos de como ela se manifesta também, e quem a pratica idem, porque causa tanto alvoroço? Além de alimentar picuinhas partidárias e servir de matéria-prima para a imprensa, ela incomoda porque, sendo um “modus operandi” do capitalismo, deve permanecer compreendida tacitamente sob o arcabouço do covarde senso comum. Enquanto as entranhas permanecem protegidas por sua estrutura óssea e carnuda, podem funcionar sem infortúnio, mas assim que – inapropriadamente – assumem a vanguarda, sua natureza repugnante inquieta seu dono. É como o porco que se indigna quando chamam seu alimento de lavagem. A corrupção pode lubrificar perpetuamente as engrenagens enquanto continuar inaudita, todavia, se assume a forma do todo, deve ser expurgada ferozmente para seu local de origem. É o que todos fazem, mas é inadmissível que se declare isso, é vergonhoso, indecoroso, impopular, é inflamável demais para se praticar pirofagia, é preciso combater teu coração para permanecê-lo inexpugnável. A crise é apenas a forma mais clássica de certificar-se de sua fortitude.

Ato II – Cornucópia Excrementícia

“Fosse o que fosse (o que o homem falava), podia-se ter a certeza de que cada palavra era pura ortodoxia, puro Ingsoc. Olhando a cara sem olhos, a mandíbula mexendo sem parar, Winston teve a sensação curiosa de não se tratar de um legítimo ente humano, mas de uma espécie de manequim. Não era o cérebro do homem que falava, era a laringe. O que saía da boca era constituído de palavras, mas não era fala genuína: era um barulho inconsciente, como o grasnido dum pato”. (George Orwell, 1984, pág 55/56).

Observando o patofalar na boca de nossos pseudo-intelectuais, é impossível não concordar com Orwell, sendo que temos apenas que trocar o “Socialismo Inglês” orwelliano pelo endêmico sistema capital-burguês monopolizador onde nos encontramos. O ódio forçosamente velado da imensa maioria de nossa mídia por ver a esquerda assumir o poder em 2002 – logo apaziguado pelos compromissos familiares assumidos por Lulla – pode agora jorrar sob as condições perfeitas, sem o mínimo risco de parecerem vilões aos olhos do povo. Sob o programa da verborragia, oficializado pela corrupção, encontram o pressuposto ideal para atacar não somente o partido, mas sua ideologia, suas bases, sua militância, sua história, a revolução, o marxismo, o materialismo dialético, a verdade.

Vamos com calma. O PT está chafurdado até o limite na lama, fato. Crimes de todas as naturezas são infindavelmente descobertos, fato. A idéia vendida é de que algum titio tucano resolverá tudo isso. O que afinal isto significa? Que programa estão criticando?

Ora, o que o partido dos trabalhadores tinha de esquerdista e/ou revolucionário, já foi abandonado há muito tempo, mais precisamente no início da década de 90, quando decidiram, enfim, fazer concessões, que se tornaram progressivas, até o ponto de se unificar completamente com o que combatiam, sendo impossível haver distinção. O que o PT pratica é o mesmo que o PSDB pratica, os dois programas já foram executados, os dois são a mesma coisa, os dois falharam miseravelmente. A ideologia que nossa mídia pensa criticar é a sua própria ideologia, a lama lhe é inerente assim como todo o resto. Dessa forma, quanto mais incisivos forem, melhor será. Quanto mais implacáveis, mais duros serão consigo mesmos. A ruína das pretensões petistas é a derrocada inegável das bases neoliberais brasileiramente autenticadas.

Falta que a massa perceba tudo isso. As denúncias propagadas na tv são auto-denúncias, as críticas vorazes são a compromisso público da culpa. Ninguém se arrisca a discutir a raiz, todos querem explorar apenas o episódio em separado. Qualquer nuance de ideologia revolucionária está a anos luz deste abismo medonho. Discutir a essência seria suicídio. Pois a origem de tudo é a mesma.

O círculo vicioso do capitalismo permanecerá intocável seja qual for o desenrolar desta história. A menos que…

Ato III – Um pouco de ar, por favor!

“Ai de mim”, disse o rato, – “o mundo vai ficando dia a dia mais estreito”. – “Outrora, tão grande era que ganhei medo e corri, corri até que finalmente fiquei contente por ver aparecerem muros de ambos os lados do horizonte, mas estes altos muros correm tão rapidamente um ao encontro do outro que eis-me já no fim do percurso, vendo ao fundo a ratoeira em que irei cair”. ” – Mas o que tens a fazer é mudar de direção”, disse o gato, devorando-o.” (Franz Kafka, Fábula Curta, in “Contos”)

A desconcertante precisão kafkiana é exortativa, não axiomática. Trafegamos e nenhum dos caminhos que percorremos nos levou a lugar algum. Caímos sempre no mesmo buraco, seja ele o da ignorância, do mercado, da ansiedade, do despreparo, do engano, da comodidade.

Os políticos se apressam em dizer que “apesar de tudo, as instituições democráticas serão preservadas”, como se isto fosse capaz de prover conforto à população e significasse algo positivo. Que “instituições democráticas”? Instituições democráticas nunca existiram. Nossos governantes fingem não saber o que é isto, preferem não saber, com efeito, não podem agir de acordo. O que você faria se seu funcionário jamais atendesse suas necessidades, desprezasse suas reinvidicações, escarnecesse sua importância, roubasse seus bens e agisse exclusivamente de acordo com seus interesses, fingindo que tu não existes? O demitiria, certo? É uma situação totalmente inaceitável e absurda. Algo que, uma vez identificado, seria extinto de imediato. Pois então. Perdemos tudo, todo respeito, toda importância, será que até nossa capacidade de mudança?

Talvez não estejamos todos mortos, talvez haja um mundo melhor após o eclipse. Como alertou o Pink Floyd na última frase de sua obra prima “The Dark Side Of The Moon”: “e tudo sob o sol está em perfeita harmonia, mas o sol é tapado pela lua.” O eclipse não se originou agora, é decrépito, senil, por trás desta crosta renovada do sistema, que tenta-nos provar que suas engrenagens são passíveis de choque, esconde-se a verdadeira essência putrefata do que nos governa: o capitalismo em sua forma pura. Nossa atualidade é fruto apenas de inúmeras trocas de pele, de “crises” fabricadas pela conspiração favorável ao bem estar do mercado, contudo, viver isso não é nada démodé: respiramos o capitalismo cotidianamente, o sentimos quando percebemos que sempre teremos que pagar mais caro por nossa comida, nosso transporte, nosso lazer, nossos vícios, nossa higiene, nosso estudo, nossa vida, quando temos a consciência de que iremos pagar sempre mais do que as coisas valem e receber menos do que merecemos. Obter sucesso em nossa sociedade significa tão somente canibalismo, pisar sob os demais, uma vitória paliativa e unilateral da oligarquia burguesa. Ter dinheiro não é um crime, conquistá-lo é que o é. Conquista implica vitória, vitória implica derrota, derrota transparece disputa, disputa implica ambição, ambição transparece desigualdade, desigualdade gera luta, luta implica injustiça, injustiça significa a permanência do capitalismo. Qual a última vez que vistes o sol? Acaso lembra-se da última ocasião que desfrutaste a vida? O que estás deixando de fazer para estar aqui pensando?

O predatismo precisa acabar. Os deuses do capital, destituídos. Os valores, restaurados. A verdade, glorificada. O mundo suplica por sua reconstrução. Há muito trabalho para ser feito.

A revolução clama. Atenda ao seu chamado.

Padrão
Artigos/Matérias/Opinião, Política & Economia

Sexo Nunca Mais

Artigo originalmente publicado no site Duplipensar em 06.08.2005.

” – Já fizeste isto antes?

– Naturalmente. Centenas de vezes…quer dizer, muitíssimas vezes.

– Com membros do Partido?

– Sempre com membros do Partido.

– Do Partido Interno?

– Não, com aqueles porcos, não. Mas há uma porção que gostaria de tirar proveito, se tivesse oportunidade. Não são tão santos quanto pretendem.

O coração dele deu um salto. Muitíssimas vezes, dissera ela. Oxalá tivessem sido centenas…milhares. Tudo quanto cheirasse a corrupção o enchia sempre de ardentes esperanças. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre sob a crosta; seu culto da severidade e autonegação podiam ser apenas uma máscara de iniqüidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apodrecer, debilitar, minar!

Ele puxou-a para baixo, fê-la ajoelhar-se à sua frente.

– Escuta. Quantos mais homens tiveste, mais te quero. Compreendes?

– Perfeitamente.

– Odeio a pureza, odeio a virtude. Não quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até os ossos.

– Então eu te sirvo, querido. Sou corrupta até os ossos.

– Gostas de fazer isto? Não me refiro a mim, somente. Gostas da coisa em si?

– Adoro!

Acima de tudo, era o que desejava ouvir. Não somente o amor de uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples, indiscriminado; era a força que faria a derrocada do Partido.

(…)

Antigamente, pensou ele, um homem olhava um corpo de mulher, via que era desejável e pronto. Mas agora não era possível ter amor puro, ou pura lascívia. Não havia mais emoção pura; estava tudo misturado com medo e ódio. A união fora uma batalha, o clímax uma vitória.

Era um golpe desferido no Partido. Era um ato político.”

George Orwell, 1984, pág 121/122.

Durante o processo de releitura de 1984, esta parte em especial acabou por chamar-me a atenção.

A descrição da cópula sexual entre Winston e Júlia, mais exatamente o doloroso labirinto pelo qual percorreram para chegar lá, é surpreendentemente significativo. Minha mente logo conectou-se com uma reportagem de capa da revista Carta Capital de tempos atrás, se me lembro bem, era traçado uma linha do tempo da liberação sexual em nosso planeta nas últimas décadas. A relevância específica desta reportagem é a descrição dos esforços atuais do governo estadunidense no que se refere ao sexo. Nunca na história dos E.U.A têm sido empreendido tanta atenção – e tanto dinheiro – para combater o instinto sexual dos jovens (em especial). Tudo sob a caudilha égide protestante. Patrulhas percorrem os bairros do país dando palestras, enumerando estatísticas, propagando fatos, narrando histórias pavorosas de pessoas que se entregaram ao sexo e sofreram conseqüências terríveis, encenando um horrendo teatro persuasivo, visando adiar – e/ou/porque não? – destruir o instinto, a experiência sexual nas pessoas, tentando, além de doutrinar, atrair mais ativistas para suas falanges. E o sucesso tem sido imenso. É a personificação da Liga Juvenil Anti-Sexo orwelliana. George W. Bush deveria pagar royalties à família de Orwell por isso.

São verdadeiramente repugnantes ações deste tipo. É a imposição de um estatuto governamental que fere todo e qualquer direito individual. Estão vendendo idéias, forjando espetáculos, influenciando ao seu bel prazer uma massa refém (!?) de suas atrocidades. No mundo de 1984, o sexo é algo praticamente inexistente, que foi expurgado brutalmente do seio da sociedade, reprimido, desestimulado, proibido, punido. Com o tempo, todo e qualquer instinto sexual tinha quase que deixado de existir. Não havia esta necessidade. Não havia esta prática. Pois:

“O objetivo do Partido não era simplesmente impedir que homens e mulheres criassem lealdades difíceis de controlar. Seu propósito real, não declarado, era roubar todo o prazer ao ato sexual. Não só o amor como o erotismo eram o inimigo, tanto dentro como fora do casamento. Todos os casamentos entre membros do Partido tinham de ser aprovados por um comitê nomeado para esse fim e – embora o princípio jamais fosse claramente declarado – a permissão era sempre recusada se o casal desse a impressão de haver qualquer atração física. O único fim reconhecido do casamento era procriar filhos para o serviço do Partido. A cópula devia ser considerada uma pequena operação ligeiramente repugnante, como um clister. (…) O Partido estava procurando matar o instinto sexual ou, se não fosse possível matá-lo, distorcê-lo e torná-lo indecente.” (pág. 67)

O sexo deixava de ser natural, saudável, instintivo, prazeroso. Era um dever, uma obrigação horrorosa, insuportável, evitável se possível. Desde a primeira vez que li 1984, penso que um aviso a ser colocado nele seria interessante (que na verdade faz-se desnecessário diante de sua obviedade), algo como: “Esta é uma obra de ficção, contudo, qualquer semelhança com o mundo real NÃO É mera coincidência”. O livro é a mimese – muito mais palpável e verossímil – do apocalipse, do grande caos do autoritarismo velado que governa o planeta. Esta bestialidade inaudita, de proporções gigantescas, torna-se totalmente asquerosa sob a luz de observações necessárias. Ao transpormos a casca de podridão do sistema, o que encontramos é justamente estes esforços incessantes em reduzir o homem à máquina, a inanimação pura e simples, à reles e vis propósitos capitalísticos.

No mundo em que os ocidentais imperialmente rotulam de 2005, devemos encarar o IngSoc de Orwell sob o epíteto generalizador de “sistema”, pois não está restrito a um local especifico, mas sim a todos os continentes. O objetivo do sistema é obliterar nosso id. Destruído este princípio do prazer, ele quer fundir nosso ego (o princípio da realidade reguladora) com o superego (o princípio da consciência), originando uma nova entidade concebida diretamente de suas entranhas, portanto, inescapavelmente impregnada de suas doutrinas. Possuindo esta nova entidade dentro de nós, nos adaptaremos ao nosso meio da forma como está instituído, atendendo diretamente aos princípios sistemáticos. À medida que o tempo passa, o antigo homem – tenham em mente aqui o cunho pejorativo que o termo “antigo” pode ser encarado, pois é assim que ele é manipulado – será aniquilado, extinguido. E as novas gerações nascerão indelevelmente associadas ao grande pai, o grande salvador, o Grande Irmão, que é a figura carismática e sem rosto, mas intensamente sólida, do sistema. O homem pós-moderno, o homem do século XXI (chamem do que quiser) não terá mais nenhum vínculo com sua essência, sintomaticamente, não verá nada de errado no que se apresenta a ele. Tal qual acontece com as figuras do Partido e como também se sucede com os habitantes do “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. A ausência de contato sexual, as novas formas de procriação (pelo processo bokanovsky em “AMN” e por inseminação artificial – predominantemente – em “1984”), a adoção de um novo e transmutado halo humanístico (se é que se conserva algo disso), completamente maligno (grifo derivado apenas de minha qualidade de “antigo”) e fruto de estratégias bem delineadas, postas em prática a longo prazo, são pontos comuns nestas duas distopias sociais.

Diante da perda do halo original e tentando evocá-lo, Winston pragueja: “Odeio a pureza, odeio a virtude. Não quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até os ossos”. Ele queria tudo que “servisse para apodrecer, debilitar, minar”. Tudo que servisse para enfraquecer o Partido. A corruptibilidade da alma, nestas circunstâncias, é o contrário do que o sistema prega, conseqüentemente, esta corrupção é a ação libertadora de nossa essência. É mais do que necessária, é urgente. O coito sexual entre Winston e Júlia, resquícios de uma reminiscência humana, naquelas condições, era um ato de afronta, que ultrajava o Partido, zombava de suas diretrizes. A aspiração de um pouco de ar puro em meio ao torpe e venenoso ambiente do Grande Irmão. A necessidade de ser corrupto neste mundo ganha conotação positiva à medida que este pressuposto significa o inverso do que está estabelecido. Ao invertermos o que está invertido colocamos as coisas no seu devido lugar. Neste sentido, que a praga da corrupção se alastre como fogo nas almas de nossos semelhantes! Que a insatisfação impere! Que o sentimento revolucionário brote incessantemente dentro de nós! Que o sexo continue a ser o que sempre foi: uma necessidade basal, saudável e renovadora para nosso espírito!

Pois “sexo nunca mais” é o que sistema quer, “sexo nunca mais” é o que o governo estadunidense almeja instaurar. Resistiremos bravamente a isto. Pedindo licença artística a Orwell: é fazendo ouvir a nossa voz e permanecendo sãos de mente que preservaremos a herança humana!

Iremos até o fim nesta guerra grande mestre, palavra de um ente verdadeiramente humano, pode confiar.

Padrão