Direto ao ponto: o BBB 9 rendeu à Globo mais de R$ 100 milhões. Isso explica as 10 edições até aqui e sinaliza que teremos que conviver com o programa até que o contrato com a Endemol não seja renovado por algum motivo esdrúxulo, o público canse ou o mundo acabe. Três coisas improváveis. Sorria.
Quando começou, a esperança geral era que a bobagem passasse logo, como a maioria dos reality shows. Não passou. A cada ano somos bombardeados, não raro, pelos mesmos tipos de texto. Análises sociológicas e antropológicas do BBB levadas a sério (Roberto DaMatta acena), um arsenal de experts do senso comum e, claro, os defensores ferrenhos.
A dificuldade em admitir que se interessa pelo BBB apenas para ver as mulheres e homens nus (no programa e nas futuras capas de revistas especializadas) e porque não consegue achar nada mais interessante para fazer é incompreensível. Dizer que a “experiência humana” ali é rica e interessante soa como atestado de estupidez e blefe mal realizado.
A fórmula nunca foi sutil. Pelo contrário. A premissa de juntar uma dúzia de gostosas e gostosões, personalidades explosivas, regiões e origens diferentes, orientações sexuais, formações, etc, sempre foi muito explícita pela própria produção. A divisão da casa em “tribos”, este ano, foi o auge disso. Junte esse povo todo, distribua bebida a vontade, promova festinhas e disputas debéis, crie historinhas de amor, mocinhos e vilões, bla bla bla. Diferente sendo sempre igual. O aspecto novelesco com “pessoas reais” e roteiro ligeiramente improvisado com a decisiva participação do público. Tá feito o estrago.
O BBB é um desses produtos da cultura pop que você simplesmente não consegue passar imune. Em algum canto, algum lugar, vai tomar contato. Mesmo sem nunca assistir pode saber de tudo que se passa na casa. De alguns anos pra cá surgiu outro fenômeno: gostar de BBB tornou-se cult, motivo de orgulho. Assunto comentado com empolgação nas rodas “alternativas”.
Disto, chama atenção a curiosa necessidade de justificar o porquê de assistir e acompanhar o programa. Como que prevendo a “má aceitação” dos amigos e conhecidos (“chatos intelectualóides”), é flagrante externar os motivos incontestáveis da validade do programa, presente em diversos textos internet afora.
O processo pelo qual o que era desprezado e ignorado anos atrás torna-se motivo de orgulho da personalidade e superioridade no mundo alternativo e “crítico” não se restringe, claro, ao BBB. Experimente, por exemplo, dizer que não gosta de Odair José hoje em dia. As chances de ser visto como alguém de “mentalidade menor e preconceituosa” é enorme.
O alternativo, em suma, tem a necessidade de, tempos em tempos, tomar para si o que rejeitava anteriormente. De levantar a bandeira de “vanguarda” e um novo olhar, agora superior, para as coisas do povo. É estranho que uma gama tão grande de pessoas sinta-se compelida a justificar fortemente o seu interesse no BBB. Gostar de algo que você ache ruim parece hipótese inaceitável. Afirmar que adora “Y” mesmo achando Y uma merda não está nas opções listadas. Como se houvesse contradição. E não falamos de guilty pleasure. Com isso, essas pessoas externam a velha divisão entre cultura erudita e cultura popular, o que é do povo e o que é da elite, por mais fundida e ultrapassada que isto esteja.
Quando se apropria de algo tido como “do povo”, a classe média logo precisa justificar com todas as forças e artimanhas o motivo da mudança. Criar um novo “pedestal”, um novo “paradigma”. Como aconteceu com o jazz, por exemplo. Apenas outro ponto em que o duplipensar orwelliano se faz presente.
Orwell, afinal, de quem o título do programa foi chupado, certamente não ficaria surpreso. Se o Grande Irmão do Partido vigiava tudo, sendo a teletela um dos meios principais, não é nada muito diferente do que ocorre dentro da casa do BBB e principalmente fora dela. Leitura já clichê e inescapavelmente verdadeira há umas boas décadas.
Como diz 1984:
Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.
Os que precisam justificar desesperadamente seu interesse pelo BBB, além de escravizados pela “teletela”, se colocam como sua própria Polícia do Pensamento. Aqui o paradoxo perde para a obviedade. No fundo, o BBB não revela nenhuma camada além da superficialidade, das aparências, dos estereótipos e dos joguinhos extensamente conhecidos, não eleva e não rebaixa porcaria nenhuma, não tem qualquer sentido filosófico ou sociológico, como a imensa maioria dos produtos culturais.
Gostar e acompanhar ou não, não é motivo de vergonha nem de orgulho. O fim é o grande espetáculo vazio de sempre. Algo a que já estamos confortavelmente acostumados e não incomoda ninguém.