“Caro leitor: tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”
Este é o aviso que Bernardo Kucinski coloca no início de “K. – Relato de Uma Busca” e que define, em grande parte, a tônica deste livro, mergulhado em experiências pessoais do autor, seja em “Você Vai Voltar Pra Mim e Outros Contos”, todos ambientados no período da ditadura militar brasileira. “K” é um romance “ficcional” de quem perdeu a irmã e o cunhado sequestrados e mortos pelos militares, escrito quase 4 décadas após o acontecido. Maria Rita Kehl, no prefácio, pergunta com propriedade: “quanto tempo é necessário para lidarmos com um trauma?”. Não existem respostas prontas ou fáceis. Kucinski, jornalista com vasta experiência nas mais diferentes funções possíveis, começou a escrever ficção já na casa dos 70 anos. Distanciamento de vida e sabedoria que transparecem tanto em “K” quanto em “Você vai Voltar Pra Mim”. Por mais próximo que esteja dos acontecimentos – a busca incessante do pai pelo corpo da filha, pelo descobrimento sobre quem era aquela pessoa tão íntima e tão insondável ao próprio pai, nos meandros das táticas de intimidação e sabotagem dos militares, da cultura judaica em que está mergulhado, no choque de tradição e necessidade, entre história e amor, enfim – Kucinski constrói uma narrativa brilhante, mesclando as reminiscências de Ana Rosa K e Wilson com a busca do pai e da família.
Impossível não lembrar que, no Brasil, cada vez mais costumamos tratar a ditadura como uma “nódoa menor” na história, uma mancha inconveniente e pálida, um esqueleto no armário que não queremos mexer, um perigoso “não há de ser nada”, especialmente pelas gerações mais novas, uma condescendência covarde. Aqui, cultivamos o respeito pelo horror que ainda tem influência nos alçapões do poder. Mesmo iniciativas relativamente tímidas como a Comissão da Verdade são diminuídas ou escamoteadas. Covardia, por exemplo, comparar com o tratamento que a ditadura teve na Argentina, no âmbito criminal, judiciário e nas artes do país. Não são poucos os livros e filmes que abordagem magistralmente e até hoje as feridas profundas que a ditadura deixou. Como acontece em Portugal, no Chile, na Itália, na Espanha e por aí afora, cada um com as suas particularidades, mas nunca optando pelo caminho fácil do silêncio.
A literatura de Kucinski, no entanto, está longe de ser panfletária. E cresce em importância por ser magistralmente bem escrita. Não alivia para nenhum lado, não é maniqueísta, piegas ou enviesada. Mas sim um testamento ficcional brilhante de quem tem propriedade para relatar seja a dor, o incômodo, as contradições, os abusos, a ausência, a culpa, os confrontos internos e externos e as relações entre Brasil, Alemanha, Polônia, Estados Unidos e Israel, que permeiam a própria história da família, da tradição judaica e dos acontecimentos relatados no livro.
Mais que um autor necessário – e ele o é – o que Kucinski produz é ótima literatura: uma junção cada vez mais rara. Seu novo livro (que ainda não li), “Os Visitantes”, uma “continuação” de “K”, foi lançado em meados de 2016.
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