Literatura

Bernardo Kucinski: a ditadura e os limites borrados entre ficção e realidade

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“Caro leitor: tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”

Este é o aviso que Bernardo Kucinski coloca no início de “K. – Relato de Uma Busca” e que define, em grande parte, a tônica deste livro, mergulhado em experiências pessoais do autor, seja em “Você Vai Voltar Pra Mim e Outros Contos”, todos ambientados no período da ditadura militar brasileira. “K” é um romance “ficcional” de quem perdeu a irmã e o cunhado sequestrados e mortos pelos militares, escrito quase 4 décadas após o acontecido. Maria Rita Kehl, no prefácio, pergunta com propriedade: “quanto tempo é necessário para lidarmos com um trauma?”. Não existem respostas prontas ou fáceis. Kucinski, jornalista com vasta experiência nas mais diferentes funções possíveis, começou a escrever ficção já na casa dos 70 anos. Distanciamento de vida e sabedoria que transparecem tanto em “K” quanto em “Você vai Voltar Pra Mim”. Por mais próximo que esteja dos acontecimentos – a busca incessante do pai pelo corpo da filha, pelo descobrimento sobre quem era aquela pessoa tão íntima e tão insondável ao próprio pai, nos meandros das táticas de intimidação e sabotagem dos militares, da cultura judaica em que está mergulhado, no choque de tradição e necessidade, entre história e amor, enfim – Kucinski constrói uma narrativa brilhante, mesclando as reminiscências de Ana Rosa K e Wilson com a busca do pai e da família.

Trecho de “K”

Impossível não lembrar que, no Brasil, cada vez mais costumamos tratar a ditadura como uma “nódoa menor” na história, uma mancha inconveniente e pálida, um esqueleto no armário que não queremos mexer, um perigoso “não há de ser nada”, especialmente pelas gerações mais novas, uma condescendência covarde. Aqui, cultivamos o respeito pelo horror que ainda tem influência nos alçapões do poder. Mesmo iniciativas relativamente tímidas como a Comissão da Verdade são diminuídas ou escamoteadas. Covardia, por exemplo, comparar com o tratamento que a ditadura teve na Argentina, no âmbito criminal, judiciário e nas artes do país. Não são poucos os livros e filmes que abordagem magistralmente e até hoje as feridas profundas que a ditadura deixou. Como acontece em Portugal, no Chile, na Itália, na Espanha e por aí afora, cada um com as suas particularidades, mas nunca optando pelo caminho fácil do silêncio.

A literatura de Kucinski, no entanto, está longe de ser panfletária. E cresce em importância por ser magistralmente bem escrita. Não alivia para nenhum lado, não é maniqueísta, piegas ou enviesada. Mas sim um testamento ficcional brilhante de quem tem propriedade para relatar seja a dor, o incômodo, as contradições, os abusos, a ausência, a culpa, os confrontos internos e externos e as relações entre Brasil, Alemanha, Polônia, Estados Unidos e Israel, que permeiam a própria história da família, da tradição judaica e dos acontecimentos relatados no livro.

Mais que um autor necessário – e ele o é – o que Kucinski produz é ótima literatura: uma junção cada vez mais rara. Seu novo livro (que ainda não li), “Os Visitantes”, uma “continuação” de “K”, foi lançado em meados de 2016.

Recomendado:

Sobre como cuidar do nosso passado

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“Escrever é meter as mãos na imundície”

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A brilhante estreia de José Castello no Suplemento Pernambuco, resumindo muito do que eu acredito na literatura (e muito do que está errado hoje em dia na nossa eterna obsessão tecnicista). Um trecho:

“Vivemos a era da técnica — vivemos o tempo da perícia, da habilidade e da atuação. O tempo do desempenho e da competência. Flaubert, porém, desprezava enfaticamente os engenhosos. Defendia a força, e não a engenhosidade. No lugar da destreza, preferia a potência. Entendia que a maior característica do artista era justamente ser forte, e não ser hábil. “Logo, o que eu mais detesto nas artes, o que me crispa, é o engenhoso”. Não se trata de fazer bem feito. Tampouco de ostentar autoridade, ou competência. Trata-se de outra coisa bem mais difícil: da doação. Ou o escritor se entrega a sua escrita, ou ele a faz com sangue e com febre, ou nada o salvará. Nem a elegância, nem a correção, nem a habilidade. Nada. Por isso o escritor não deve ser visto como um técnico que desempenha adequadamente seu papel, mas como um homem que, entregue a seus impulsos e à sua desordem interior, simplesmente se deixa fazer. Faz até o que desconhece. Faz até o que não sabe que faz.

É por isso que as palavras deformam e aniquilam aqueles que escrevem. “Estou arrasado de fadigas e de fadiga e de tédio”, diz Flaubert no ano de 1853. No período em que se dedica a escrever sua Bovary, ele desabafa: “Esse livro me mata; nunca mais farei nada semelhante”. Não é fácil lidar com sentimentos e impulsos extremos. Não é nada fácil encarnar o outro. Exausto, retido sob o peso da própria escrita, Flaubert reconhece, porém, que não lhe resta outro caminho. Que escrever é isso: entregar-se, deixar-se aniquilar, submergir. Nada daquela escrita asséptica e “bem editada” que tanto fascina os escritores _ e os editores _ de hoje. Escrever é meter as mãos na imundície. É sujar-se daquilo que se desconhece, ou nada que preste se fará.”

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O brutalismo regional de Edyr Augusto Proença

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Por Maurício Angelo

Quando se fala em “brutalismo”, a referência inevitável no Brasil e para quem o termo foi inicialmente empregado, é Rubem Fonseca. Mas seria o paraense Edyr Augusto Proença apenas mais um entre tantos que buscam emular Fonseca? Ou trata-se de uma influência inevitável do escritor policial onipresente nestas terras nos últimos 60 anos? Logo nas primeiras páginas de “Os Éguas”, objeto deste texto, o primeiro romance de Edyr, lançado em 98, a resposta fica clara.

Ao contrário de Fonseca, dado sempre a digressões filosóficas, referências cinematográficas e da arte em geral, em descrições enciclopédicas de lugares e objetos, Edyr preza pelo texto extremamente exíguo, direto, coloquial, frases curtíssimas e que bebem diretamente do regionalismo próprio do meio em que sempre viveu: Belém do Pará.

E essa é uma característica importantíssima não só em “Os Éguas”, como em toda a obra de Edyr. É ao se apropriar do que conhece tão bem, em apostar na vida característica do que o circunda que a sua literatura ganha contornos mais próprios e interessantes. Já se falou de forma exaustiva que, paradoxalmente, quanto mais regional, mais mundial a arte se torna (minha aldeia é o mundo, disse Pessoa) e o sucesso de Edyr na França, por exemplo, onde vem sendo celebrado como um dos grandes autores contemporâneos, parece confirmar isso.

Sua linguagem seca (mas não rígida), vem do teatro, início da sua carreira como escritor e que o ocupa até hoje (Edyr tem uma companhia de teatro em Belém há 30 anos). O cenário são as ruas de Belém, inundadas de violência, corrupção, estupro, drogas, pedofilia, relações destroçadas e figuras decadentes. O cenário é Belém, mas poderia ser São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Paris, Los Angeles, Tóquio ou São Mateus. Nada que não aconteça desde o início dos tempos. A escrita, de modo surpreendente, flui.

O ritmo sempre frenético e alucinante de Edyr é do tipo que te faz ler o livro quase num fôlego só, parando no meio pra respirar. Sem se expor demais, no entanto, para não levar uma bordoada na cabeça. Tem sexo, sem ser pueril. A putaria não é estilizada ou grandiloquente, mas calcada no dia a dia, real e imediata. Edyr é econômico e preciso, quando acerta ou erra.

“Pssica”, de 2015, bem recebido pela crítica, é outro que segue nessa toada. Há um trecho disponibilizado aqui pela Boitempo. Radialista, jornalista e até redator publicitário, Proença não abre concessões. O seu brutalismo é tão “verdadeiro” quanto uma página de jornal. Assim, entre aspas.

Leia o blog do autor. 

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Sobre Rubem Fonseca, instintos e mediocridade

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Meu primeiro contato com Rubem Fonseca foi pelos livros “Agosto”, “O Caso Morel”, “Feliz Ano Novo” e alguns contos soltos que li ainda na adolescência. Não me impressionou e não teve grande impacto na minha formação. O estilo seco, duro e urbano de Fonseca não bateu tão pesado para alguém que sempre teve certo melindre com a literatura policial, terreno tão caro a Rubem, direta ou indiretamente.

Este artigo define bem:

“Rubem Fonseca inaugurou uma nova corrente na literatura brasileira contemporânea que ficou conhecida, em 1975 através de Alfredo Bosi, como brutalista. Em seus contos e romances utiliza-se de uma maneira de narrar na qual destacam-se personagens que são ao mesmo tempo narradores. Várias das suas histórias (em especial, os romances) são apresentadas sob a estrutura de uma narrativa policial com fortes elementos de oralidade. O fato de ter atuado como advogado, aprendido medicina legal, bem como ter sido comissário de polícia, nos anos 50 no subúrbio do Rio de Janeiro teria contribuído para o escritor compor histórias do submundo dentro dessa linguagem direta. Muito provavelmente devido a isso, vários dos personagens principais em sua obra são (ou foram) delegados, inspetores, detetives particulares, advogados criminalistas, ou, ainda, escritores.”

Com o tempo, resolvi acertar minhas contas com Fonseca. Comprei “Ela e Outras Mulheres”, lançado em 2006, “Amálgama”, o último, de 2013, “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, de 1988 e “Os Prisioneiros”, o livro de contos que foi a sua estreia, de 1963. Um panorama interessante de diversas épocas de um escritor que produz há mais de 50 anos, portanto.

9d5a33d1-3ca8-423c-97e0-f175d3f4e72dImpressiona a solidez da estreia. Há, em “Os Prisioneiros”, praticamente tudo que iria consagrar Rubem Fonseca dali em diante: a concisão narrativa, o estilo cru, sujo e os diálogos diretos, sem empolação, a descrição detalhada de procedimentos médicos como a autópsia (“Duzentos e vinte e cinco gramas”) – relato real de uma das aulas de medicina legal que teve na Escola de Polícia do Rio – a aparente amoralidade dos personagens, as referências enciclopédicas, históricas e da própria literatura, o flerte com a linguagem cinematográfica e o surrealismo,  em suma, o lado mais instintivo e visceral do humano, a métrica afinada, com uma prosa paradoxalmente simples e repleta de camadas possíveis. “Os Prisioneiros”, é de fato, um monumento do conto brasileiro.

Rubem não se preocupa em entregar tudo mastigado para o leitor, em tecer longas digressões filosóficas. O faz com frequencia, mas apenas pincela, pontua – é um contraponto sucinto, uma provocação ensaiada. Seus contos acabam não raro de forma abrupta e inesperada, sem soluções prontas e, com frequencia, desagradáveis para o leitor desavisado: um bebê jogado na lixeira, mortes de todos os tipos imagináveis, prisões e sequelas diversas, amores interrompidos. Os personagens se encontram normalmente em situações degradantes e experimentam a mais profunda miserabilidade da existência, utilizando a violência, o sexo e os vícios como atenuantes.

O pai que guarda segredo do caso entre o filho menor de idade e a professora, a trepada que acaba em esganamento com a vítima gozando em prazer pleno, os amantes que nunca mais se veem, o bandido que prefere matar a namorada ao invés de executar o crime combinado, o sexo estragado pela filosofia, aproveitadores, outsiders e calhordas em geral. O cenário é de perfídia, sordidez, cinismo e desgraça. Me espanta que não tenha me apaixonado por Fonseca antes.

Da mesma forma que foi excessivamente celebrado e reconhecido por crítica, prêmios e público, é fácil acusar Rubem de ser medíocre, raso e limitado. As influências naturalmente são vastas, mas a literatura policial americana (Raymond Chandler e tantos outros) é nítida, ainda que Rubem seja tão brasileiro, tão urbano e tão fincado em nossa oralidade, tragédias e história popular. “O Inimigo” é espetacular nisso.

capa_rubem_fonseca_outras_mulheresRubem também gosta de alfinetar os principais estigmas e linhas de pensamento dos séculos XIX e XX: a psicologia aparece com frequencia, expondo os clichês de Freud e cia (“Os prisioneiros”, conto que dá título ao livro, chega a ser didático), assim como o marxismo e a arte moderna (“Natureza-podre  ou Franz Potocki e o mundo” encerra a questão). Ante a solidão e a aspereza da vida cotidiana, sempre entregues aos próprios demônios, resta o apego à lascívia, devassidão e violência física e “moral”, resta a ausência de padrões, a deglutição das convenções, o delírio, a desesperança.

Do jeito Fonseca de ser, os personagens encontram-se física e psiquicamente nus ante as angústias, os problemas e a sujeira que precisam enfrentar. É Rei Lear catando guimbas de cigarro na rua. Quando acerta, Rubem Fonseca é um monstro da concisão avassaladora. Um tiro na nuca que recebemos sem esperar, ainda que conheçamos suas estratégias. Beirando os 90 anos, Rubem já não conserva a primazia de seus melhores trabalhos. Ainda assim, é um ícone vivo de muito do que de mais interessante a literatura brasileira produziu.

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Conto “Ela”, de “Ela e Outras Mulheres”

 

Na cama não se fala de filosofia.

Peguei na mão dela, coloquei sobre meu coração, disse, meu coração é seu, depois pus sua mão sobre minha cabeça e disse, meus pensamentos são seus, moléculas do meu corpo estão impregnadas com moléculas do seu.

Depois botei a mão dela no meu pau, que estava duro, disse, é seu esse pau.

Ela nada disse, me chupou, depois chupei sua boceta, ela veio por cima, fodemos, ela ficou de joelhos, rosto no travesseiro, penetrei por trás, fodemos. Fiquei deitado e ela de costas para mim sentou-se sobre o meu púbis, enfiou meu pau na boceta.

Eu via meu pau entrando e saindo, via o cu rosado dela, que depois lambi. Fodemos, fodemos, fodemos. Gozei como um animal agonizando.

Ela disse, te amo, vamos viver juntos.

Perguntei, não está tão bom assim? Cada um no seu canto, nos encontramos para ir ao cinema, passear no Jardim Botânico, comer salada com salmão, ler poesia um para o outro, ver filmes, foder.

Acordar todo dia, todo dia, todo dia juntos na mesma cama é mortal. Ela respondeu que Nietzsche disse que a mesma palavra amor significa duas coisas diferentes para o homem e para a mulher. Para a mulher, amor exprime renúncia, dádiva. Já o homem quer possuir a mulher, tomá-la, a fim de se enriquecer e reforçar seu poder de existir.

Respondi que Nietzsche era um maluco.

Mas aquela conversa foi o início do fim.

Na cama não se fala de filosofia.

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Os Negros na América Latina – Henry Louis Gates Jr.

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 Em livro decepcionante, Henry L. G. Jr faz uma viagem pela história negra da região

A história da escravidão na América Latina é marcada por um traço comum: a negação sistemática das raízes negras de todas as formas em virtude da primazia de um suposto orgulho “mestiço”. A celebração da raiz européia e índia, povos mais “evoluídos” e de origem mais “nobre” em detrimento da flagrante, vasta e inegável herança africana não só na pele, mas na cultura, nas artes, na religião, na gastronomia e por aí afora.

É isso que Henry Louis Gates Jr procura mostrar nesse livro. Pesquisador de Harvard e diretor do W. E. B. Du Bois Research Institute no Hutchins Center for African and African American Research, Henry visitou o Brasil, México, Peru, República Dominicana, Haiti e Cuba para investigar a história negra desses países e como cada um lida com essa herança atualmente. Inicialmente dando origem a uma série de tv, as viagens também resultaram nesse livro. E daí talvez resulte no principal problema: a narrativa funciona como um diário de viagem de Henry, que descreve seus encontros com personalidades diversas nos países que visita – de Abdias do Nascimento a MV Bill, no Brasil – e suas impressões sobre o que vê ao seu redor, muitas vezes “fascinado” com o que desconhece.

Assim, o livro perde muito em força e vigor acadêmico, pesquisa sistemática e dialética histórica. Ainda assim, Henry oferece um panorama geral muitíssimo interessante, na teoria e na prática, ao investigar o que teses como a “democracia racial” de Gilberto Freyre, no Brasil e o “orgulho pardo”, de José María Vasconcelos, no México, causaram na população.

Cabe lembrar que, dos 11 milhões de escravos africanos que chegaram ao Novo Mundo entre 1500 e 1866, aproximadamente 5 milhões vieram para o Brasil. Quase metade do total. E fomos o último país a abolir a escravidão. Os Estados Unidos receberam “apenas” 450 mil escravos e o impacto da cultura negra é vasto e evidente. Em suma – e percebe Gates Jr. ao longo da sua viagem – as 134 (cento e trinta e quatro!) categorias de “cor” catalogadas no Brasil para designar os afro-brasileiros (segundo o IBGE) são, não só uma consequencia da extrema mistura racial desse país (intensificada com o branqueamento tardio da população através do incentivo da imigração europeia nos séculos XVIII e XIX), mas também uma tentativa declarada de se eximir da negritude propriamente dita.

Assim, e é um teste que o pesquisador faz nas ruas, ouvimos as mais diversas classificações quando perguntamos que cor determinada pessoa é. “Café com leite”, “queimado de sol”, “burro quando foge”, “morena bem chegada”, “morena cor de canela”, “sapecado” e “branca suja” são alguns exemplos. A história mostra que, quanto mais negro de fato, mais perseguido e mais excluído socialmente.

Justiça feita, Gates Jr. oferece vários insights interessantes: em meados do século XIX, lembra ele, não havia em todo o hemisfério ocidental uma cidade com maior número de escravos que o Rio de Janeiro, cerca de 100 mil. Aqui, com mão de obra farta, sendo o destino mais próximo da África que os demais países da América, a vida era particularmente dura. “Os senhores de escravos podiam sempre substituir africanos mortos por africanos vivos, a custo módico”. O que não acontecia, por exemplo, nos Estados Unidos.

Não é difícil desmistificar a democracia racial de Freyre – teoria segundo o Brasil é tão mestiço que estaria “além do racismo”. Basta viver por aqui. Por mais que seja difícil para nós, classe média-branca-hétero-descendente-de-europeus-profissionais-liberais perceber isso.

Fora do nosso curral – digo, a mania do brasileiro em olhar sempre para o próprio umbigo no continente e esquecer nossa condição de império da América Latina – o livro mostra como é vasto o racismo na região em todas as suas formas. Os quadros de castas no México, personagens como El Negro Mama, no Peru e Memín Pinguín, também no México, o sistemático branqueamento e/ou relativização dos heróis negros que comandaram muitas revoluções e contribuíram de forma decisiva para a história latina. Nós, brasileiros, extremamente preconceituosos em relação aos índios, podemos ver como o orgulho da origem indígena no Peru, no México, na República Dominicana funcionam, por sua vez, para tentar apagar os traços africanos.

Considerados povos “mais evoluídos” que os negros, o orgulho ameríndio sobrepuja fortemente os negros nesses países, encostados em rincões de pobreza e apagados da história da família. É interessante as visitas de Henry Louis Gates Jr. em diferentes regiões dentro de um mesmo país, mostrando a cultura como resistência, as políticas sociais que ainda engatinham, as várias formas de visão de pesquisadores, acadêmicos e personalidades locais, a realidade mutável e diversa.

No fim, fica aquela sensação que conhecemos bem: a história oficial é contada por quem pode contá-la. Por quem tem os meios de fazê-lo. Não pelos vencedores, porque mesmo os vencedores são borrados e menosprezados quando aquilo não interessa para a primazia dos livros. Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai, Venezuela, Equador, etc, são muitos os países ausentes nesta obra e que merecem um escrutínio básico.

“Os Negros na América Latina” serve de boa introdução para o nosso profundo desconhecimento da história local e para a visão contaminada que temos das nossas próprias raízes. Ainda estamos engatinhando quando se trata de igualdade, respeito, isonomia, inclusão social – falsos pleonasmos – e estudo razoavelmente aprofundado daquilo que nos constitui e estamos mergulhados. Começar a se inteirar de verdade sobre isso parece o primeiro passo para mudar essa realidade.

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Jonathan Franzen: internet, o fim do jornalismo e do romance

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Jonathan Franzen é reconhecido como um dos maiores escritores da contemporaneidade. Chegou lá através de obras como “As Correções” e “Liberdade”. Para Nicholas Dames, Franzen é expoente do que ele chama de “Geração Teoria”. Afirma:

No final dos anos 1990, a equação simples oferecida pela Teoria – o realismo é uma ferramenta da racionalidade capitalista, uma ferramenta do status quo; um produto, e não um artefato imaginativo – soava como um truísmo. Mas, quando um argumento torna-se truísmo, é bem provável que uma resposta a ele já se encontre a caminho. As correções forneceu uma versão incipiente dessa resposta. Não é difícil detectar o afeto subjacente pela Teoria no trecho em que Franzen descreve a liquidação radical, promovida por Chip. A Teoria ainda é uma presença constitutiva nesses romances; é evidente que são histórias sobre reificação, alienação e, particularmente, sobre o capitalismo tardio – um termo explorado de forma obsessiva, ainda que cuidadosa. Mas, ao menos para os estudantes, ex-estudantes e acadêmicos, em 2001 a Teoria já havia se tornado parte inseparável de suas vidas – algo que eles não precisavam justificar para ninguém, mas que ao mesmo tempo era vagamente revolucionário. Ela já não era mais uma chave para todas as coisas do mundo, mas meramente uma das coisas do mundo. É precisamente sobre essa banalização que Franzen reflete: ao virar rotina, a Teoria se transformou de objeto de medo, sátira ou veneração em um elemento ficcional. E o romance, especialmente o do tipo que se baseia no detalhamento social e nos destinos individuais (e, no caso de Franzen, no núcleo familiar burguês), estava louco para arrumar briga e tentar reconquistar seu prestígio obscurecido.

Lembrei desse ótimo artigo já no início que serve para contextualizar o trabalho de Jonathan. Recomendo também essa entrevista na Paris Review, sempre com seu nível altíssimo de qualidade. Em seu novo livro, Franzen explora algo que já tinha ficado muito claro: ele não gosta muito da internet. Em especial, das redes sociais. Algo que tem sido criticado por aí (aqui e aqui).

Em The Kraus Project: Essays by Karl Kraus, Franzen aborda um obscuro crítico austríaco que, segundo ele, pode ser considerado “pioneiro” na crítica sobre como a tecnologia pode impactar de modo negativo na produção artística em geral. A “máquina infernal” da citação que ilustra esse post seria, em última instância, a internet, representada pela tecnologia e o consumismo.

O que nos leva para esse longo artigo publicado na The Atlantic. Reunindo as suas observações e referências com o trabalho de Kraus, Franzen oferece um panorama da mídia e da web em nossos tempos de um jeito, digamos, “peculiar”. Kraus, afirma ele, oferece comentários ácidos sobre a imprensa em Vienna na virada do século 19 para o 20.

He particularly attacked a corrupt coupling of two things: that a small number of media magnates were getting extremely rich, and that the newspapers they owned kept reassuring their readers that society was becoming ever more democratic and advanced. More empowered, more enlightened, more communal. And it drove Kraus crazy, because he saw these naked profit-making enterprises masquerading as great equalizers—and succeeding, because people were addicted to them.

Quão familiar isto soa? O consumismo e a tecnologia, afirma Franzen, enquanto nos torna cada vez mais viciados e anestesiados, poderia quase que obliterar nossa capacidade de construir um pensamento relativamente crítico e, sua maior preocupação, acabar de vez com o romance. “Infinite Jest”, o clássico precoce de David Foster Wallace, seria um grande monumento na abordagem desse problema, proclama Franzen. “when I look at social media, it seems like a world that once had adults in it is being changed into the 8th grade junior-high cafeteria. When I look at Facebook, I see a video-poker room in Vegas”, provoca.

Por vezes, Franzen soa como aquele velho rabugento que, bem, gosta de algumas comodidades da internet (o email, por exemplo), mas abomina essa fixação dos jovens em, “só porque tem a possibilidade de fazer algo, acabam fazendo”. A “máquina infernal” de Kraus nada mais é que o capitalismo em sua manifestação mais recente, poderosa e veloz. Na ânsia de processar tudo e todos, nas ferramentas que oferece, de como nos escraviza e como acaba, inevitavelmente, sendo usado também de forma burra e/ou limitadora.

Duas citações são fundamentais aqui. Delimita Franzen:

Kraus was very suspicious of the notion of progress, the idea that things are just getting better and better. In 1912, when he was writing the essays that are in my new book, people were very optimistic about what science was going to do for the world. Everyone was becoming enlightened in a straightforward scientific sense, politics was liberalizing, and the world was going to be a much, much better place—the story went. Well, two years later the most horrible war in the history of humankind broke out, and was followed by an even worse war 25 years after that. Kraus was right about something: He was right to distrust the people who were telling us that technology was going to serve humanity and make things better and better. In the context of the crazy techno-utopianism and crazy techno-boosterism we’re now living through, it seems worth taking a look at a writer who was there at the birth of modern media and tech, being suspicious of the language of the people who were talking about how everything is getting better.

Não poderia concordar mais. Já se foi exaustivamente tratado do quanto a ideia de “desenvolvimento” e “evolução” da humanidade, no seu fetiche pelo “crescimento” constante é algo perigoso, perseguido à todo custo pelos países, não importa como e porquê. Ideia sempre alimentada pela mídia, que abraça a ideia de “crescimento” como uma fórmula mágica, como dados que automaticamente nos dizem que, se crescemos (o PIB, por exemplo), estamos melhorando, estamos “avançando” para um país melhor.

De todas as coisas boas que a internet oferece, lembra Franzen, como ferramenta para pesquisa, na facilidade para fazer compras, no trabalho em conjunto, no compartilhamento de paixões ou de situações difíceis com outras pessoas que passam pelo mesmo, o problema está em compartilhar tudo e na noção de que tudo é relevante, tudo é sensacional. O refúgio e a solidão, lembra ele, é um dos pilares da boa literatura:

Good novels aren’t written by committee. Good novels aren’t collaborated on. Good novels are produced by people who voluntarily isolate themselves, and go deep, and report from the depths on what they find. They do put what they find in a form that’s communally accessible, communally shareable, but not at the production end. What makes a good novel, apart from the skill of the writer, is how true it is to the individual subjectivity. People talk about “finding your voice”: Well, that’s what it is. You’re finding your own individual voice, not a group voice.

É preciso colocar fronteiras bem delimitadas, Franzen afirma, na medida em que “o progresso tecnológico” pode realmente fazer mal para o espírito. E não é difícil compartilharmos desse sentimento de Franzen, por vezes. Não é difícil nos sentirmos sugados por uma certa máquina, palpável ou não. Por uma necessidade besta que somos quase incapazes de identificar de onde vem. Chegamos em um tempo em que precisamos dizer “não” para as coisas. Dizer não para muitas das ofertas que a vida tecnológica nos traz. Para Franzen, a internet está acabando com o jornalismo:

I mean, the Internet has almost destroyed journalism! How can you have a functioning, complicated democracy of 300 million people without professional journalists? The boosters are always saying, well you can crowdsource it, you can leak it, you can take pictures with your iPhone. Bullshit. You can’t crowdsource working the Capitol beat for 20 years. We need to think critically about the consequences of our machines. We need to learn how to say no, and how to support the vital social services, like professional journalism, that we’re destroying.

Faz sentido, até certo ponto, já que todos tentam, exaustivamente, achar um modelo viável, sustentável, rentável. Ou vários deles. Tentar se tornar uma pessoa e não apenas um mero membro da multidão, em suma, desenvolver o seu ego ao máximo – já diria Hermann Hesse que aí está o verdadeiro caminho para o desenvolvimento. Como escritor, Franzen afirma, preservar a privacidade e a consciência interior é fundamental, o que fica bastante comprometido se gastamos boa parte do tempo sendo um alto-falante para os outros. É preciso prestar atenção em coisas que as pessoas não estão prestando.

No mundo de hoje, isso fica cada vez mais difícil. E cada vez mais fácil o escritor, o jornalista, o produtor de conteúdo e, por fim, a própria personalidade, nossa própria ideia do “ser” ficar extremamente abalada. Eis um problema que se manifesta nas mais diversas formas em todos os cantos possíveis. Novamente, eu não poderia concordar mais.

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Simplicíssimo – Textos Selecionados (2005-2011)

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Entre 2005 e 2011 tive a honra de colaborar para o Simplicíssimo, um dos mais antigos e-zines literários do país, projeto de Rafael Reinehr, um dos caras mais inteligentes e bacanas que conheço. Alternando períodos de colaboração intensiva com outros nem tanto, cheguei a lançar uma coluna, intitulada “Convenções Sociais”.

Abaixo, selecionei alguns dos principais textos desse período, para download em arquivo zip, a quem interessar possa. Foi um período muito “rico” da minha vida e, ali, eu tecia delírios “filosóficos”, crônicas, contos, poemas, amores, ilusões, prazeres e agonias. Coisas que valem a pena.

Simplicíssimo – Maurício Angelo – Textos Selecionados (2005-2011)

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