Ao mesmo tempo em que é a cidade maravilhosa descrita no post anterior, Brasília simboliza, precisamente, muito do pior deste país. A desigualdade e o abismo social não está tão escancarada em nenhum outro lugar como em Brasília. Na capital federal, pobre, definitivamente, não se mistura com os ricos e a classe média. Não dividem o mesmo espaço, as mesmas ruas, os mesmos lugares. Brasília é como um enorme condomínio fechado. Nele, só o funcionalismo público e a classe média alta podem permanecer. No Plano Piloto, a total e irrestrita separação social atinge seu ápice e sua manifestação mais flagrante.
De fato, os candangos pioneiros foram literalmente expulsos à força para as cidades satélites (como brilhantemente mostra o documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra”, do Vladimir Carvalho, obrigatório e já lembrado aqui). A “limpeza social” feita em Brasília deliberadamente desde sua fundação nunca fez questão de ser sutil.
Com a especulação imobiliária a níveis extremos desde sempre, a classe média foi cada vez mais empurrada para rincões pós-Plano Piloto como Guará e Águas Claras. A favelização de Brasília tem no nome abjeto de Joaquim Roriz, que conseguiu a façanha de instalar uma oligarquia por 4 mandatos e 16 anos (!!!!), o maior representante. Roriz alcançou o pleno objetivo de instalar o caos social, econômico e urbano. A capital do país entregue nas mãos de uma besta completa por quase 20 anos. Recomendo o ótimo artigo de Leandro Fortes sobre o tema.
Brasília foi concebida e administrada para os ricos. Os milhões de carros que se amontoam pelo DF expressam não só o alto poder aquisitivo da população, como o descaso total com quem não possui veículo. Os parcos e maltratados ônibus, o metrô caríssimo e ineficiente. As passagens para pedestres no Plano (como a que ilustra este texto) totalmente abandonadas, sujas, escuras e perigosas. Brasília não foi feita para que se ande a pé. Nunca. Jamais. Tente fazer isso e terá a experiência máxima da opulência errônea da capital.
Os pobres que se amontoem e se estrepem nos seus grotões de sujeira, violência e falta de infra-estrutura básica. Os cargos e concursos públicos, vocação por excelência, acabaram por criar a maior obsessão e sentido de vida do brasiliense. Não existe vida fora da teta do Estado/Distrito. Não existe possibilidade de se ter uma carreira ou uma vida “normal” fora de um cargo público. É o Estado paquidérmico, lento, pesado, caríssimo, que oferece empregos que pagam substancialmente acima da média do mercado. É dinheiro mal e porcamente gasto. Desperdiçado.
É a corrupção endêmica, enraizada, esperada. Por concepcão, concentra todo o jogo político podre a que estamos acostumados (e anestesiados). São os recursos recebidos indevidamente da União. A sua questionável natureza administrativa e política. O planejamento para abrigar o erro.
Lugar de gente fria, egoísta, não raro ignorante. Que a generalização não ofenda quem não se encaixe no perfil. Toda generalização é arbitrária, falha e – até – provocativa. É o reino do dinheiro fácil. Da meritocracia da coleira. Do aplauso ao adestramento. Ao curral da mente. Do clima insuportável. Da bolha imobiliária, automotiva, inflacionária. Do total e irrestrito abandono aos direitos mais básicos. Da vida fútil e das conversas insuportáveis.
Brasília concentra tudo que está presente em outros lugares do Brasil. De forma drástica, maciça, draconiana. É a utopia que não deu certo. A concepção “humanitária” que fracassou miseravelmente. Entre os paradoxos e as questões expostas aqui – dentre outras fatalmente esquecidas – Brasília se equilibra. Tateia no escuro. Se consola com o belíssimo céu favorecido pela arquitetura e posição geográfica.
Muito pouco para uma cidade que nasceu para ser justamente o oposto do que atualmente é. Ou, na verdade, talvez tenha cumprido seu objetivo verdadeiro, principal. Criar uma ilha de riqueza e qualidade de vida para alguns e manter o povo longe, bem longe de suas estruturas, sem nenhuma capacidade de questionamento, resistência. Parabéns, Brasília!