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60 milhões de pessoas: o planeta nunca teve tantos refugiados

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Um novo recorde negativo acaba de ser registrado pela ACNUR, a agência de refugiados da ONU: 59,5 milhões de pessoas são refugiadas em todo mundo, forçadas a abandonarem suas casas por motivos de guerras, violência generalizada e violação de direitos humanos. Metade destas são crianças.

Nunca, em toda a história da humanidade, houveram tantas pessoas nesta situação. Não, nem na época da segunda guerra mundial. É o que afirma o novíssimo relatório da ACNUR.

O resumo é alarmante.

Esta tendência de crescimento tem sido principalmente verificada desde 2011, quando se iniciou a guerra na Síria – e que se transformou no maior evento individual causador de deslocamento no mundo. Em 2014, uma média de 42,5 mil pessoas por dia se tornaram refugiadas, solicitantes de refúgio ou deslocadas internos – um crescimento quadruplicado em apenas quatro anos. Em todo o mundo, 01 em cada 122 indivíduos é atualmente refugiado, deslocado interno ou solicitante de refúgio. Se fossem a população de um país, representariam a 24º nação mais populosa do planeta.

“Estamos testemunhando uma mudança de paradigma, entrando em uma nova era na qual a escala do deslocamento global e a resposta necessária a este fenômeno é claramente superior a tudo que já aconteceu até agora”, disse o Alto Comissário da ONU para Refugiados, António Guterres. “É aterrorizante verificar que, de um lado, há mais e mais impunidade para os conflitos que se iniciam, e, por outro, há uma absoluta inabilidade da comunidade internacional em trabalhar junto para encerrar as guerras e construir uma paz perseverante”, afirmou o Alto Comissário.

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O relatório do ACNUR mostra que as populações refugiadas e de deslocados internos cresceram em todas as regiões do mundo. Nos últimos cinco anos, pelo menos 15 conflitos se iniciaram ou foram retomados: oito na África (Costa do Marfim, República Centro Africana, Líbia, Mali, nordeste da Nigéria, República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi, neste ano); três no Oriente Médio (Síria, Iraque e Iêmen); um na Europa (Ucrânia); e três na Ásia (Quirguistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão).

Poucas dessas crises foram solucionadas e muitas ainda geram novos deslocamentos. Em 2014, apenas 126,8 mil refugiados conseguiram retornar para seus países de origem – o menor número em 31 anos.

Enquanto isso, conflitos longevos no Afeganistão, Somália e outros lugares fazem com que milhões de pessoas originárias destas regiões permaneçam em movimento, à margem da sociedade ou vivendo a incerteza de continuarem como refugiadas ou deslocadas internas por muitos anos. Entre as mais recentes e visíveis consequências dos conflitos globais está o dramático crescimento de refugiados que, em busca de proteção, realizam jornadas marítimas perigosas no Mediterrâneo, no Golfo de Áden, no Mar Vermelho e no Sudeste da Ásia.

Crianças são a metade – O relatório Tendências Globais mostra que 13,9 milhões de pessoas se somaram ao número de novos deslocados, apenas em 2014 – quatro vezes mais que em 2010. Em todo o mundo, foram contabilizados 19,5 milhões de refugiados (acima dos 16,7 milhões de 2013), 38,2 milhões de deslocados dentro de seus próprios países (contra 33,3 milhões em 2013) e 1,8 milhão de solicitantes de refúgio (em comparação com 1,2 milhão em 2013). Um dado alarmante: metade dos refugiados no mundo é formada por jovens e crianças de até 18 anos de idade.

Confira mais detalhes no release oficial da entidade.

Acesse também todo o material em diversas línguas.

O quanto isto é simbólico em relação ao buraco que nos metemos tanto em políticas internas quanto nas relações internacionais? Impossível mensurar. O que isso tem a ver com a nossa vida aqui no Brasil? Bastante coisa. A realidade é sempre pior que a ficção.

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#BlackLivesMatter e o mundo em que estamos metidos

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 Maurício Angelo

Uma série de acontecimentos similares despertaram protestos pontuais nos Estados Unidos, incluindo a mobilização de celebridades e atletas: o assassinato de negros por policiais em serviço. É o que aconteceu com Michael Brown em Ferguson, com Eric Gardner em Nova York e mais recentemente com Freddie Gray em Baltimore. Uma verdadeira convulsão social e uma discussão intensa da sociedade está acontecendo neste momento.

Pois bem: em SP, só no PRIMEIRO TRIMESTRE de 2015, 185 pessoas morreram em confronto com a PM. CENTO E OITENTA E CINCO. Se você considerar dados estatísticos históricos, verá que aproximadamente 80% desses são negros. Só em São Paulo. Em 3 meses. Aos fatos: em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. Mas o assassinato de jovens negros está tão institucionalizado no Brasil que isso não é capaz de envolver quase ninguém.

O assassinato de Freddie Gray através do uso excessivo da força (seis policiais estão sendo indiciados por terem atacado Gray covardemente na van após a prisão) é algo tão comum por aqui que já acaba entrando na categoria “absurdo, mas não chocante”. Pior: esse tipo de reação é pedida pela sociedade e pelos cães raivosos e acéfalos da mídia. Os exemplos que demonstram isso são abundantes, basta lembrar do caso do rapaz acorrentado nu e severamente castigado de todas as formas (com estrelas da imprensa batendo palma), para ficar no mais notório em tempos recentes.

Fechamos um contrato social bem perverso e distorcido, transformado em naturalidade. Lá fora, o caso Gray desperta protestos incessantes nas ruas e nas redes sociais (a hashtag #BlackLivesMatter ou #VidasNegrasImportam) representa isso, além do intenso debate na mídia e nos órgãos oficiais que está acontecendo neste momento.

David Simon, produtor da premiadíssima série “The Wire”, que durou 5 temporadas na HBO e mostrava justamente, e de forma extremamente crua, meticulosa e detalhista o cotidiano de policiais em Baltimore e da vida na periferia, de jovens negros entregues à própria sorte e as consequencias disso, escreveu um dos melhores artigos dos últimos tempos. Nele, Simon desenvolve de forma brilhante como as situações citadas acima estão conectadas com a brutal desigualdade social e o espírito do capitalismo. Afirma (em trechos selecionados de tradução livre):

Estados Unidos está completamente dividido no que se refere à sociedade, economia e política. Definitivamente: existem dois países. Eu vivo em um deles, um quarteirão em Baltimore que é parte da América viável, a América que está conectada com a sua economia, onde parece plausível um futuro para as pessoas que nela nasceram. Mas 20 quarteirões adiante você encontra uma América completamente diferente. É assustador perceber quão pouco nós temos em comum já que vivemos em tamanha proximidade.

Uma coisa que nós entendemos é o lucro. No nosso país nós medimos todas as coisas pelo lucro. Nós ouvimos os analistas de Wall Street. Eles nos dizem o que supostamente devemos fazer todos os trimestres. Os relatórios trimestrais são deuses. Olhe para Meca, você sabe. Você atingiu o objetivo ou você não atingiu seu objetivo? Você quer o seu bônus ou você não quer o seu bônus?

Os sindicatos importam. Eles são parte da equação. Não interessa que eles não vençam o tempo todo ou que percam sempre, mas importa é que eles vencerão em boa parte do tempo e que colocarão na mesa a parte da equação que nos mostra que os trabalhadores não importam menos, eles importam mais.

Mas agora o que você vê nos Estados Unidos é um show de horror. O que você vê é uma retração da renda familiar, o abandono de serviços básicos, como educação. Você vê uma classe menos privilegiada sendo perseguida no que eles alegam ser uma “guerra contra drogas perigosas” mas que, de fato, é apenas uma guerra contra os pobres que se transformou no maior estado carcerário da história da humanidade, em termos de porcentagem de quantos americanos nós colocamos na cadeia. Nenhum país na face da Terra aprisiona pessoas no número e nas taxas que nós fazemos.

Nos transformamos exatamente no oposto do que uma vez chamamos de “sonho americano” e isso se deve basicamente à nossa incapacidade de dividir, de apenas contemplar um certo impulso socialista.

Estou definitivamente convencido de que o capitalismo precisa ser o caminho pelo qual geraremos riqueza em massa neste século. Isso não se discute. Mas a noção de que isso não vem acompanhado de um impacto social, de como distribuímos os benefícios do capitalismo para incluir a todos numa sociedade razoavelmente justa, é chocante para mim.

E uma das coisas que o capital sem dúvida quer é a desvalorização do trabalho. Eles querem que o trabalho seja desprezado porque o trabalho tem um custo. E se ele é desvalorizado, vamos traduzir isso: no popular, significa que os humanos estão valendo menos.

Em resumo: falhamos. Falhamos lá e falhamos aqui. Aceitamos a perversão completa da vida em sociedade: estamos submissos, não associados. E por séculos e séculos esta condição encontra-se demonstrada de todas as maneiras possíveis. Na desigualdade social instaurada, na pornográfica diferença de qualidade de vida entre as nações, no abismo de salários numa mesma empresa/cidade/etc, no assassinato indiscriminado de jovens negros, na completa invasão de privacidade do cidadão pelos governos e empresas, na opressão contínua e onipresente.

Que esta discussão esteja em voga atualmente (Piketty, Zizek, Paul Krugman, Snowden, etc, etc) já é mais do que se costuma ter e sinal de que as coisas, pelo menos em parte, ainda que de maneira tímida e lenta, começam a mudar. Ver isso tomar as ruas, os noticiários e as redes sociais é fundamental para que essa transformação, de fato, aconteça. Nada disso virá por acaso. Precisamos entender que a revolução não só não será televisionada, nem acontecerá na internet como jamais irá se concretizar. Precisamos superar conceitos obsoletos, ideias viciadas e compreender que a “mudança” acontece na prática, no dia a dia. Agora. E tanto já aconteceu nos últimos anos. Para ir além é preciso estar atento e não ocioso.

Eu acredito na informação como a mais poderosa ferramenta de transformação social do mundo contemporâneo. E justamente por isso é que não podemos aceitar que aqueles que se apropriam dela para disseminar interesses escusos e ao mesmo tempo bem especificados, em distorcer a realidade, em manter o status quo imutável e irredutível, usando para isso técnicas claríssimas de duplipensar, passem graciosamente. Esta é uma guerra de sutilezas e por isto mesmo muito mais difícil de ser travada. Não guardar um silêncio bem parecido com a estupidez, como diria Galeano, parece-me o primeiro passo para tanto.

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A transformação da saúde mental no Brasil

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Por Maurício Angelo*

A mudança da lógica de atendimento ao paciente com transtornos mentais no SUS é fruto de um processo social complexo e inclusivo. O resultado desse amplo debate com especialistas, entidades representativas, os movimentos de luta antimanicomial, incluindo o protagonismo de usuários e familiares, foi a promulgação da Lei 10.2016 em abril de 2011, após mais de uma década de discussão, instituindo efetivamente a Reforma Psiquiátrica como política do Estado Brasileiro.

Substituindo o obsoleto modelo de internação hospitalar, responsável por anos de dor e exclusão para pacientes e suas famílias, a nova política de atenção passou a priorizar serviços comunitários e multidisciplinares, garantindo o cuidado com liberdade e permitindo a efetivação da cidadania das pessoas com transtornos mentais e problemas relacionados ao uso de álcool e drogas.

Esta nova política nacional transformou a saúde mental no Brasil na última década. Neste processo, destaca-se a adoção do território como conceito organizador da atenção, a contínua expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diferentes modalidades – CAPS I, II, III, CAPSad e CAPSi – ampliando o acesso e a interiorização de serviços em todo o Brasil; a redução significativa do número de leitos e de hospitais psiquiátricos; a criação do Programa de Volta para Casa, com o auxílio-reabilitação psicossocial instituído pela Lei 10.708/2003; e a reversão, desde 2006, dos recursos financeiros, anteriormente destinados quase exclusivamente à assistência hospitalar.

Os avanços são notáveis: em 12 anos, o número de CAPS no Brasil aumentou mais de 400%, passando de 424 CAPS em 2002 para 2.209 CAPS atualmente. A criação dos CAPS Álcool e Outras Drogas representa a crescente preocupação da sociedade sobre o tema, com a rede trabalhando na perspectiva de redução de danos.

O Ministério da Saúde, em conjunto com estados e municípios, também criou novos leitos em enfermarias especializadas (hospitais gerais), nos 69 CAPS AD que funcionam 24 horas e nas 61 novas unidades de acolhimento criadas. A rede de atendimento a dependentes químicos ainda é composta por 131 Consultórios na Rua, que atendem aos usuários nos locais de uso e pelos mais de 600 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), implantados para responder às necessidades de moradia de pessoas com transtornos psicológicos graves, que ficaram longo período internadas. Eles garantem residência e ajudam na reinserção dos moradores na rede social existente (trabalho, lazer e educação). No final de 2014, foram lançados diversos protocolos de suporte básico e avançado de vida, voltados para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Entre eles, protocolos para o Manejo da Crise em Saúde Mental, situações de agitação e agressividade, tentativa e risco de suicídio, bem como intoxicação e abstinência alcoólica e intoxicação por drogas estimulantes. Os protocolos serão acompanhados de capacitação para os profissionais do SAMU, o que vai gerar um impacto positivo para o acesso e a assistência.

É de certa forma esperado que setores conservadores e com visão reducionista da questão da saúde mental, acostumados a obter o monopólio intelectual e prático do atendimento, sejam resistentes à mudança. A reforma psiquiátrica, de fato, exige uma profunda transformação das instituições.

Novas diretrizes colidem numa arena em que visões de mundo concorrentes se enfrentam: a garantia da cidadania e de direitos universais, numa construção coletiva permanente, frente o confinamento e o estigma abstrato de “doença” imposto aos pacientes.

No estabelecimento da Rede de Atenção Psicossocial, as ações de saúde mental passaram a fazer parte do conjunto de exigências fundamentais para a instituição das regiões de saúde. A RAPS conta com componentes da atenção básica; atenção psicossocial; atenção de urgência e emergência; atenção residencial de caráter transitório; atenção hospitalar em hospitais gerais; estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial. É nesse contexto que se inserem o Projeto Terapêutico Singular e as diversas formas de ação.

O reconhecimento do sucesso dessa política se dá na prática e também pelo interesse de países como Equador, Paraguai, Costa Rica, Honduras, Haiti e Angola, que já buscaram cooperação técnica com o Brasil para aperfeiçoar as suas políticas de saúde mental.

Somente o constante desenvolvimento dessa política, estabelecida em parceria com todos os principais agentes envolvidos, poderá oferecer a possibilidade de um tratamento verdadeiramente eficaz, com cuidado territorial, humanizado, integral e multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar e intersetorial, com participação e controle social de usuários e de familiares.

Defender o retorno a um modelo arcaico de atenção é pactuar com a barbárie praticada durante décadas pelos manicômios tradicionais, algo impensável e incompatível com a sociedade atual.

* Maurício Angelo é jornalista e foi assessor do Ministério da Saúde, atendendo também a área de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, que inclui o programa “Crack, É Possível Vencer”. 

Leitura recomendada: Holocausto Brasileiro – Daniela Arbex

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“Surpresa”: somos muito melhores do que fomos ensinados a acreditar

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Desde sempre, o brasileiro é ensinado a crer que somos absolutamente incompetentes em organização, administração, em prover infraestrutura adequada, produzimos pouco e que tudo nesse país, resumindo, é uma bandalheira sem limites, que estamos muito abaixo do resto do mundo e que pagamos impostos demais e recebemos de menos.

Esse discurso é muito interessante para uma classe abastada repleta de privilégios – isenção fiscal aos milhões e bilhões, financiamento federal pra lá de generoso, dívidas que são roladas a perder de vista, falta de respeito às leis trabalhistas – gente que sonega, rouba, lucra altíssimo com “essa bandalheira toda que tá aí”, gosta de espernear ao menor sinal de redução de seus ganhos históricos e por aí afora. Taí a desindustrialização que não me deixa mentir, tema para outro post.

Tomamos como exemplo a Copa do Mundo: o fracasso absoluto e a vergonha que passaríamos diante do mundo, alardeado exaustivamente por toda a imprensa durante os últimos anos, “subitamente”, transformou-se num evento de sucesso fora e dentro e dos estádios. Esportivamente já celebrada como uma das melhores Copas de todos os tempos (média de gols, qualidade dos jogos) e também pela estrutura, pelo povo, etc.

Daí que esse editorial da Folha é didático. O “torneio de surpresas” que, opa, tá dando muito certo mas, err, bem, tivemos um probleminha no som, chilenos invadiram a sala de imprensa do Maracanã – coisas minúsculas e irrelevantes e tudo de organização da FIFA, lembrem-se – resultam no famoso engolir à seco a história toda.

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E é preciso que gringos venham para cá para dizer que nossos aeroportos são tão ou mais eficientes e rápidos que os aeroportos mundo afora – taí o Alexis Lalas, referência do futebol dos EUA – para a tigrada reconhecer. Síndrome maior do complexo de vira-lata não há: somente após a validação estrangeira é que passamos a ver certa coisa com outros olhos. Foi sempre assim e há poucos indicativos que passará a ser diferente. Em eventos, serviços e na música, no cinema, no diabo a quatro.

“Só no Brasil” é que erros acontecem, “só no brasil” é que as coisas podem não funcionar perfeitamente, “só aqui” é que isso e aquilo ocorre, “o horror”, “o horror”, se apressa em gritar a elite dominada pelo senso comum mais rasteiro e previsível. E aí qualquer mínimo problema, qualquer contratempo, por mais irrelevante que seja, é tratado com alarde e ranger de dentes. A mesma mídia está aí nos oferecendo exemplos diários e fartos disso.

Nos Estados Unidos, o ápice do capitalismo funcional por excelência e ficando na esfera esportiva, sempre tido como exemplo máximo de competência e organização, conseguiu, na final do Super Bowl, tido como o evento esportivo mais importante do país, vitrine pro mundo, ACABAR A ENERGIA, atrasando e muito o espetáculo midiático todo. Há pouquíssimo tempo, nas finais da NBA, maior liga de alcance mundial dos EUA, o sistema de ar-condicionado do San Antonio Spurs DEU PANE e jogadores foram obrigados a disputar a partida acima dos 30 graus (quando se joga abaixo dos 18), fazendo com que Lebron James, maior astro da NBA, passasse mal de desidratação, com cãibras, saindo do jogo carregado.

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Caso algo minimamente parecido acontecesse por aqui, o escarcéu seria geral e infinito, textos e mais textos, comentários e mais comentários seriam gerados sobre o “vexame histórico”, a “inaceitável” organização, o maldito “jeitinho brasileiro”, tascando o selo vira-lata de inferioridade perante o mundo. Mas não. Foi lá. Em momentos chaves das ligas esportivas mais milionárias e visadas do planeta, no país exemplar “que deve servir de modelo sempre”. Acontece, né? Nem um pio.

Luiz Caversan, na Folha, pergunta:

“”Algum caro economista aí é capaz de me dizer como faço para calcular o prejuízo que os arautos do pessimismo e do mau humor, ‘black blocks’ e cia. à frente, causaram ao país?

Por conta de tudo o que não foi feito, tudo o que deixou de ser investido para gerar receita, com tudo o que se poderia ter sido oferecido, vendido para torcedores, turistas, comitivas e quetais, tendo como temática a Copa, e não foi. Quanto?”

Bota na conta da mídia. Pode botar na nossa conta. O terrorismo incansável – e acéfalo, com pouquíssima base no mundo real – é grande responsável por tudo isso. Não foi a primeira vez e não será a última. As eleições de 2002 são outro exemplo óbvio.

E você, talvez, está revoltado com “os gastos abusivos realizados pelo governo brasileiro com a Copa do Mundo”? Saiba que os 11.5 bilhões de dólares gastos em projetos de transporte, infraestrutura e nos próprios estádios, representam somente 0.7% – ZERO PONTO SETE PORCENTO – do que foi investido no Brasil entre 2010 e 2014. Matéria do Wall Street Journal. 

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Governos municipais e estaduais, no entanto, excederam bastante sua previsão de gastos para a Copa. Caso de Belo Horizonte e Mato Grosso, como mostra a matéria. De vez em quando é bom entender um pouco de gestão compartilhada – ou tripartite, em termos oficiais.

Óbvio, tudo isso não significa que todos os nossos problemas se resolveram e nossa abissal desigualdade social, etc, etc, etc. Não se trata de ser mero ufanista e pacheco. Muitas outras coisas estão sendo feitas para mudar isso. Significa somente reconhecer o estado das coisas em que estamos metidos. O desserviço prestado pela imprensa, que coloca o público e o cidadão como o último interessado do que produz, porque tem muitos outros interesses prévios para atender – e sabemos muito bem quais são.

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O problema da educação no Brasil é (também) falta de recursos

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Eu leio muita atrocidade sobre educação publicada nesse país todos os dias, especialmente de 1 ano pra cá, quando passei a acompanhar diariamente o tema, na mídia, na Câmara, no Senado, nas reuniões das entidades oficiais, eventos, enfim. Os números, esse bicho complicado, sempre são usados para comprovar uma tese, sustentar um argumento, etc.

E aí eis que o ex-ministro da fazenda e economista Maílson da Nóbrega publicou na sua coluna quinzenal na revista Veja esta pérola. Afirma Maílson:

“Daí o equivocado projeto de lei que aumenta os gastos em educação para 10% do PIB. Proporcionalmente, nossos gastos em educação equivalem à média dos países ricos. Passamos os Estados Unidos (5,5% do PIB), investimos mais do que o Japão, a China e a Coreia do Sul, todos abaixo de 5% do PIB”.

O “equivocado projeto de lei” a que o economista se refere é o Plano Nacional de Educação 2011-2020, discutido exaustivamente em todas as instâncias possíveis, com a participação de especialistas e da sociedade civil. Conheça o PNE aqui. O projeto estabelece 20 metas principais que deveriam ser alcançadas até 2020. Entre elas, a destinação de 10% do PIB para a educação pública e também “Universalizar, até 2016, o atendimento escolar da população de 4 e 5 anos, e ampliar, até 2020, a oferta de educação infantil de forma a atender a 50% da população de até 3 anos” e “oferecer educação em tempo integral em 50% das escolas públicas de educação básica”, para citar só duas.

Ao afirmar que nosso problema não é falta de dinheiro, Maílson esquece dois dados fundamentais: o professor brasileiro é um dos mais mal pagos do mundo e o investimento médio por aluno está entre os piores dos países da OCDE.

Vejamos:

Professores brasileiros em escolas de ensino fundamental têm um dos piores salários de sua categoria em todo o mundo e recebem uma renda abaixo do Produto Interno Bruto (PIB) per capita nacional. É o que mostram levantamentos realizados por economistas, por agências da ONU, Banco Mundial e Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Em um estudo realizado pelo banco UBS em 2011, economistas constataram que um professor do ensino fundamental em São Paulo ganha, em média, US$ 10,6 mil por ano. O valor é apenas 10% do que ganha um professor nesta mesma fase na Suíça, onde o salário médio dessa categoria em Zurique seria de US$ 104,6 mil por ano.

Em uma lista de 73 cidades, apenas 17 registraram salários inferiores aos de São Paulo, entre elas Nairobi, Lima, Mumbai e Cairo. Em praticamente toda a Europa, nos Estados Unidos e no Japão, os salários são pelo menos cinco vezes superiores ao de um professor do ensino fundamental em São Paulo. (FONTE)

Talvez por isso – surpresa! – os professores da educação básica tem abandonado cada vez mais o ofício para se dedicar a outras tarefas, como mostra essa ótima matéria especial da Revista Educação.

Sobre o custo aluno:

Mesmo sendo um dos países que mais aumentaram os gastos com educação entre os anos 2000 e 2009, o Brasil ainda não investe o recomendado do PIB (Produto Interno Bruto) em educação e está longe de aplicar o valor anual por aluno indicado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), com base na média dos países membros. Os dados fazem parte do relatório sobre educação divulgado pelo órgão.

Os gastos por aluno na educação primária e secundária cresceram 149% entre 2005 e 2009, mas o Brasil ainda está entre os cinco países que menos investem por aluno, entre os avaliados pela OCDE.

INVESTIMENTOS FINANCEIROS EM EDUCAÇÃO – GASTO ANUAL POR ALUNO

Nível Brasil Média da OCDE Posição do Brasil no ranking
Ensino pré-primário USD 1,696 USD 6,670 3º pior colocado de 34 países
Ensino primário USD 2,405 USD 7,719 4º pior colocado de 35 países
Ensino secundário USD 2,235 USD 9,312 3º pior colocado de 37 países

(FONTE)

Sobre a destinação das receitas dos royalties do petróleo para a educação, Maílson afirma que é um “duplo equívoco”, porque: 1) o problema não é da insuficiência de recursos, como vimos (rs) 2) não é correto financiar políticas públicas permanentes com recursos finitos e voláteis.

 

É verdade. Faz sentido. A destinação dos royalties do petróleo para áreas específicas é um imbróglio que está em pleno debate político há algum tempo, já passou por vetos da presidenta Dilma, discussões acaloradas na Câmara e agora enfrenta grande resistência do governo no Senado, por apoiar a proposta do senador José Pimentel, que alterou muita coisa da proposta original da Câmara, que é defendida por todas as entidades da educação e contou com acirrado debate em comissões especiais.

 

Cabe lembrar que, mesmo que o projeto da Câmara seja aprovado, esse “recurso extra” acrescentaria aproximadamente 1% do PIB nas verbas para a educação, ainda longe dos 10% requeridos. Entenda.

 

Por fim, o ponto principal de Maílson é melhorar a qualidade da gestão dos recursos para a educação. Ponto pacífico em que ninguém é capaz de discordar. Melhorar a gestão dos recursos públicos num todo, com melhor controle dos gastos e ações pontuais de melhorias estruturais do processo todo é algo que o governo vem buscando. Ainda que, claro, de maneira tímida ou um tanto “lenta”. É sempre lento para quem está de fora.

 

Carimbar os recursos dos royalties é um pequeno passo nesse sentido. Já que, até hoje, esse dinheiro tem sido praticamente desperdiçado, como mostra esse estudo.  É preciso muito cuidado ao usar números de maneira leviana para defender uma tese falaciosa. Isso vale não só para Maílson mas para grande parte da cobertura que a mídia faz, seja para a educação, seja em outros assuntos. Evite construir teses que podem ser desmanchadas em 1 minuto.

 

Recomendado:

 

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Marx, Berman, capitalismo, democracia e modernidade

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Artigo publicado originalmente em 16.06.2005, no site Duplipensar. Época em que, como demonstra o texto, eu era tomado por um sentimento revolucionário.

Marx, Berman, capitalismo, democracia e modernidade

O conceito de democracia significa basicamente que o poder é outorgado pelo povo. Só que o simples fato de conceder não é garantia de controle do poder proporcionado. Segundo a lógica, os mandatários deste poder deveriam retribuir a confiança que lhes é dada, governando para o povo. Contudo, esta lógica é invertida e o resultado final quase sempre é um pastiche de populismo, neoliberalismo, capitalismo autofágico, egocentrismo, aristocracia e um conluio de interesses que raramente colocam a população em primeiro lugar. As definições de capitalismo e democracia, em separado, não se antagonizam, não revelam atrito entre elas. O fato de o capital ser o início, meio e fim do objetivo global não impede que o poder de cada Estado-Nação seja concedido por seu povo. O ato de votar é inócuo por si próprio. O problema são seus desdobramentos. Se considerarmos que grande parte da população não dispõe de recursos suficientes para uma vida plena, e por extensão, não fazem parte do núcleo do sistema, assumindo posição periférica de meros espíritos fornecedores de material humano para o metabolismo do capital, ou seja, uma existência torturante (sintomatizada na massacrante rotina de trabalho) que traz alienação quanto ao próprio meio em que estão inseridos e que a democracia é comumente utilizada como sinônimo de liberdade, aí sim temos um problema gigantesco que o establishment não é capaz de explicar e/ou solucionar, porque na verdade, simplesmente não pode. Estamos na ditadura do capital. Que se subdivide, principalmente, na ditadura do pensamento. Vivemos num mundo majoritariamente democrático, sim, mas carente de liberdade, tão carente que passou a desconhecer o sentido de tal palavra e se contentar com muito pouco para dá-la como presente. Tornamo-nos medíocres porque isto passou a fazer sentido, é um sintoma clássico do homem moderno.

Patologia expressa na dinâmica capitalista de Marx e Engels em seu Manifesto Comunista:

A burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção, e com eles todas as relações sociais. (…) Revolução ininterrupta da produção, contínua perturbação de todas as relações sociais, interminável incerteza e agitação, distinguem a era burguesa de todas as anteriores.

E continuam:

De um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e científicas de que nenhuma época anterior, na história da humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os horrores dos últimos tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário. O maquinário, dotado do maravilhoso poder de amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, só faz, como se observa, sacrificá-lo e sobrecarregá-lo. As mais avançadas fontes de saúde, graças a uma misteriosa distorção, tornaram-se fontes de penúria. As conquistas da arte parecem ter sido conseguidas com a perda do caráter. Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar de vida intelectual às forças materiais, estupidificando a vida humana ao nível da força material.

O capitalismo eleva a democracia, mas apenas para obliterá-la. Evoca a noção de liberdade, mas não a pode manter. Dá conforto material a população, para em seguida, acorrentá-la. A época burguesa, sem precedentes em termos de evolução industrial, tecnológica, econômica, propagação cultural, a verdadeira criadora de um novo mundo, capaz de tantas transformações prodigiosas, criou, igualmente, em seu segundo ato, uma geração de empedernidos inanimados. Trouxe o complexo conceito materialista para o centro das atenções, relegou o desenvolvimento humano – em seu sentido mais pleno – para segunda instância. Por isso o materialismo dialético de Marx se faz necessário. A paradoxal sístole e diástole moderna, a introdução do niilismo no cotidiano, a brutal lógica do sistema capitalista destruiu não só com a verdadeira democracia (tal qual postulava Montesquieu) e a verdadeira liberdade, mas com todas as relações sócio-metabólicas que inescapavelmente construímos.

Procurou se apegar a nossa essência, impregnar nossa alma, fazer-nos escravos de nós mesmos, introduziu a indelével sensação de insignificância pessoal e absoluta impotência diante do grande nada em que vivemos. Criou uma horda infindável de seres massificados, sem personalidade, condicionados cegamente ao sistema que seguem. São estes seres que devemos libertar, destruindo a ilusão da democracia, construindo a realidade da revolução.

Ademais, é preciso lembrar, antes de prosseguirmos, que o capitalismo transformou todas as relações humanas, em todas as esferas existentes. E ao contrário do que nossa incompetente observação histórica nos diz – fruto de nosso egocentrismo mor – a era do capital não é onipresente. Como teve um início, terá um fim. É indubitavelmente o sistema mais poderoso, dinâmico e abrangente que já existiu, contudo, não passa de uma criação humana. Tal regime não está em nossa natureza, não é parte intrínseca da constituição societal e não há motivos para acreditar que seja.

Não apenas gosto de pensar, como também o termo é incrivelmente adequado, de que estamos na sobre-vida deste sistema. Ele já está morto, só não foi enterrado. A aniquilação deste cadáver deve ser nosso próximo objetivo. Um ótimo meio de fazê-lo é expor suas entranhas fétidas, para que o choque de sua repugnância natural desperte em seus elos adormecidos o inquietante sentimento revolucionário. Não utópico, mas palpável. Não alienado, mas fundamentado numa sólida base técnica e teórica. E saindo da inércia para a ação transformadora.

Por ser irracional e auto-destrutiva, sua lógica também o é. Por reduzir o homem a mero reprodutor de capital, acabamos por nos tornar apenas produtos. Não criamos, somos criados. Nosso desenvolvimento é condicionado pelas artimanhas do capitalismo. Seu maior trunfo é nos fazer crer que somos iguais a ele. Tentando convencer-nos de sua paternidade, para que nos enxerguemos nele e o adotemos como manifestação natural e necessária de nossa época.

Tudo, absolutamente tudo o que vivemos hoje poderia ser resumido desta forma: o império aparentemente inextinguível do poderio capitalista no mundo. Todo o resto é conseqüência: a indústria cultural, as manifestações midiáticas, o sistema político, econômico, social, bélico, a personalidade sacrificada de cada indivíduo. Tudo isto é um mal necessário à permanência do capitalismo, pois é disso que ele se alimenta e é disso que suas engrenagens se constituem.

Não existe democracia. Pois não é possível existir democracia na ditadura do capital. A primeira mentira que nos contam é que o poder é concedido por nós, uma tentativa barata de jogar a culpa no povo. Já que os governantes escolhidos são de responsabilidade popular, as conseqüências deste regime também o serão. Como o resultado nunca é o esperado, cria-se a ilusão de que na próxima eleição tudo será diferente. E continuamos a viver neste contínuo fluxo e refluxo de pseudo-esperança que nos é concedido. Apenas uma das artimanhas do sistema. Não há a possibilidade de mudança porque a raiz continua a mesma, o comprometimento idem e o deus mercado reina soberano sob o combalido planeta Terra. Como diria Marx: “O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Nosso tempo clama por insurreição. É a necessidade basal do renascimento humano. Iria além, diria que é vital expurgar toda experiência pré-estabelecida que temos, nos despir da casca asquerosa comum que se forma ao longo da vida. Somente nus, verdadeiramente livres, revestidos de isenção mental e da acuidade crítica é que teremos condições de reconstruir a sociedade em que vivemos.

Revolução lenta, dolorosa, recheada de derrotas parciais, momentos de puro desespero, vitórias paliativas, desencanto, revésses. Pensar historicamente é o primeiro passo. Ter a consciência pura e simples de que a verdadeira e efetiva revolução social durará séculos para acontecer torna nossa luta muito mais aprazível. Não devemos deixar que esta eterna mania de querer resultados rápidos emperre a transformação pessoal. Você não precisa ser comunista (até porque o conceito anda muito desgastado e perscrutar suas peculiaridades não cabe neste artigo) para vislumbrar um novo mundo se formando, para se sentir compelido a engajar-se nesta luta. O próprio capitalismo te empurra a isso, a própria civilização, em seu auge, ao atingir seu clímax, inserida no torpor insaciável de suas vísceras, cria a revolução. Recorro ao que diz Marshall Berman em sua obra “Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade”:


Nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos, para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma. (p. 94)

O capitalismo não teme crises, guerras, instabilidade. Porque como os últimos cinqüenta anos nos provam, é justamente dessas perturbações que ele retira matéria vital para continuar existindo. A sua notável capacidade em se renovar constantemente, e por extensão, solidificar-se e fortalecer-se, mesmo sob as mais duras crises, é o que o difere de todos os outros sistemas que vigoraram antes. Por isso ele nunca fica obsoleto, nunca exala um odor suficientemente desagradável para que seja definitivamente destruído. Mas, paradoxalmente, é ao nos espelharmos nesta característica do sistema que podemos extinguir sua dialética pseudo-indestrutível. A inquietação resultante de tal metabolismo, a forçosa sensação de renovação; é isto que precisamos absorver e é isso que causará sua ruína. Enquanto as constituições capitalísticas continuam renascendo indefinidamente, o homem moderno vê-se igualmente obrigado a se reestruturar, aprender, desenvolver-se, desapegar, evoluir.

O proletariado capta os meandros da burguesia, entretanto, apenas para continuar a sustentá-la. O capitalismo fomenta o desenvolvimento humano, mas instaura fronteiras cuidadosamente delineadas para ele. O faz não porque enxerga no autodesenvolvimento uma qualidade de vida melhor para seus subordinados e sim porque precisa de melhorias em sua máquina. Suga tudo que lhe interessa e reprime o resto (função exercida pela indústria cultural de Adorno, pelas convenções sociais, pela ditadura do pensamento citada aqui e num contexto “moderno”, até pelo superego freudiano), ao mesmo tempo em que cria revoluções, não se esquece de inventar mecanismos para que tais chamas sejam apaziguadas, o mínimo de liberdade e isenção concedidas são logo soterradas para não oferecem perigo. Todavia, o establishment não é suficientemente bem sucedido neste ponto para manter sua existência intacta e é justamente ao brincar com fogo que ele acaba se queimando.

O nivelamento rasteiro é outro mal necessário à sua permanência, embora saiba que não deve subestimar as capacidades humanas, ele fá-lo porque almeja, com esta mentira, nos renegar a subprodutos de sua linha de produção. São nestes atos falhos (um problema aterrorizantemente insolúvel para o capital) que encontramos a brecha perfeita para sua combustão. A eloqüência imensurável da impetuosidade burguesa acaba por voltar-se contra ela na tênue linha entre a dominação e a liberdade, a manutenção e a revolução, a massificação e a idiossincrasia, a necessidade e a potencialidade. Enquanto muitos permanecem cegos pela eficácia parcial da máquina, outros tantos renascem e se fazem livres. E isto (assim como sua derrocada póstuma) é incontrolável, já que o sistema não conseguiu atingir o “status” de “hermeticamente fechado”.

Marx já provou como as incessantes exigências transformativas burguesas, que precisam ser cada vez mais violentas, torturantes, desiguais, inumanas e irracionais (pois só assim seu capital pode ser sustentado) levarão à sua autodestruição iminente. Como dissemos, estamos na sobre-vida deste sistema (um dos poucos erros de Marx se referem á questão temporal). Em nossa época, não há a necessidade de ser “profeta do caos”, pois se o fizermos, seríamos apenas “profetas do acontecido”. O lodaçal caótico das constituições capitalísticas apresenta-se evidente a todos, fomos obrigados a aprender como se locomover nele, em seguida, a interpretá-lo, enfim chega o momento de o sobrepujar.

Marshall Berman, no supracitado livro, chega a uma conclusão interessante no término de seu capítulo sobre Marx:

Ele (Marx) sabia que o caminho para além das contradições teria de ser procurado através da modernidade, não fora dela. Ele sabia que precisamos começar do ponto onde estamos: psiquicamente nus, despidos de qualquer halo religioso, estético ou moral, e de véus sentimentais, devolvidos à nossa vontade e energia individuais, forçados a explorar aos demais e a nós mesmos para sobreviver; e mesmo assim, a despeito de tudo, reunidos pelas mesmas forças que nos separam, vagamente cônscios de tudo o que poderemos realizar juntos, prontos a nos distendermos na direção de novas possibilidades humanas, a desenvolver identidades e fronteiras comuns que podem ajudar-nos a manter-nos juntos, enquanto o selvagem ar moderno explode em calor e frio através de todos nós. (p. 125)

Toda a história foi composta por lutas. Conflitos de todas as naturezas, relativos a qualquer coisa existente, resultado de questões indissociáveis do ser humano. A que se apresenta neste artigo é a mais visceral da atualidade. Todos são bem vindos para se juntar nesta luta. Não há nada mais a perder, temos um mundo a ganhar.

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A farra dos royalties do petróleo no Brasil

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Matéria da Exame, baseada num estudo da Macroplan, mostra o que está acontecendo nas principais cidades que receberam os royalties do petróleo no Brasil na última década. Surpresa: podendo fazer o que bem entendem com o recurso, explodem casos de corrupção pura e simples, de desvio de verbas, de dinheiro mal aplicado, de nenhuma distribuição social da riqueza, de índices precários de infra-estrutura, educação, emprego, etc.

A matéria da Exame está aqui. E o estudo completo da Macroplan, fundamental para o entendimento amplo da situação, aqui.

O tema me é especialmente caro por um motivo simples: sou do norte do Espírito Santo, região de grande atividade petrolífera.

Mas o importante é o quadro geral das 25 cidades analisadas que ela mostra. Foram 16 do Rio de Janeiro, 4 de São Paulo e 5 do Espírito Santo. Segundo a Macroplan, a seleção dos municípios seguiu dois critérios: municípios com receita anual de royalties e participações especiais acima de R$ 20 milhões e a receita de royalties per capita acima de R$300, em 2010. O período de análise é a década de 2000. As cidades foram escolhidas pela importância dos royalties em suas contas públicas e da atividade petrolífera em suas economias, além de apresentarem diferentes grandezas demográficas e estarem distribuídas nos três estados participantes do estudo.

Chama atenção essa análise:

“Em geral, o modelo de gestão utilizado não apresenta inovações. Não foi evidenciada a utilização das modernas ferramentas de gestão para ampliar a capacidade institucional e melhorar a elaboração, execução e monitoramento dos projetos prioritários, em particular de infraestrutura, educação e saúde, para atender às exigências impostas pela necessidade de ampliar e melhorar a disponibilidade da oferta de qualidade dos serviços prestados.

É reduzida a transparência na alocação dos recursos e os mecanismos de controle são precários. No campo da gestão financeira não há evidências da formação de fundos permanentes de poupança e investimento, para mitigar problemas decorrentes da evolução cíclica dos royalties ou de seu declínio no futuro. Os municípios analisados também não apresentam estratégias consistentes de desenvolvimento sustentável no longo prazo. A existência de planos de governo voltados para a construção do futuro não foi detectada nestes municípios. O direcionamento dos recursos para políticas públicas que viabilizem a diversificação produtiva e o desenvolvimento sustentado das economias não ocupa um espaço significativo na agenda dos governos municipais, com raras exceções.”

De modo geral, os municípios aumentaram o gasto com receitas de pessoal, investiram mal ou ainda reduziram o nível de investimento, comprometendo os recursos dos royalties com folha de pagamento e ignorando completamente a infra-estrutura. O crescimento populacional trago em função da indústria do petróleo não representou desenvolvimento local como deveria, já que a maior parte da mão de obra qualificada precisou vir de fora. Ao contrário, o desemprego aumentou nestas cidades.

Chama a atenção o caso de Campos, no Rio de Janeiro, que recebeu quase 2 bilhões de royalties na última década, ficando em primeiro no ranking de recursos. A reportagem destaca a construção de um sambódromo que consumiu R$ 80 milhões, enquanto escolas da cidade sofrem com a estrutura precária e a falta de contratação de professores. Atualmente, Campos é governada por Rosinha Garotinho, esposa de Anthony Garotinho, ex-governador do Rio de Janeiro, investigado por inúmeros casos de corrupção.

Especificamente sobre educação, o estudo afirma:

“A grande maioria das cidades tem um desempenho educacional, medido pelo Índice da Educação Básica (IDEB) 3, abaixo do brasileiro e do estadual. Em termos de evolução deste indicador dos anos finais do Ensino Fundamental, avanços mais lentos do que a média dos Estados foram verificados em 9 municípios, sendo que 3 registraram queda no indicador: São João da Barra, Silva Jardim e Cachoeiras de Macacu. Observa-se resultado positivo e superior aos Estados em 16 municípios, com destaque para os municípios do ES (com exceção de Presidente Kennedy).

A situação é mais crítica nos anos finais do ensino fundamental. Como representado no gráfico, 7 cidades apresentaram variação negativa e em 3 municípios o índice ficou estagnado (todos no Estado do Rio de Janeiro e Presidente Kennedy). São também os que apresentam menores índices.

A taxa de analfabetismo entre pessoas com mais de 15 anos, medida pelo Censo (IBGE) para o ano de 2010, mostrou, em 20 das 25 cidades, um patamar mais elevado do que seus respectivos Estados (as exceções são Rio das Ostras, Macaé, Mangaratiba, Aracruz e Anchieta).”

O resultado é considerado igualmente crítico em saúde, segurança, desenvolvimento sócio-econômico, percentual de pobreza extrema mais alta que a média dos estados, acesso à tecnologia e informação, cultura, lazer e meio-ambiente, serviços básicos e estrutura.

Em suma, o estudo deixa claro o quanto os recursos dos royalties do petróleo vem sendo desperdiçados, mal investidos ou simplesmente desviado na imensa maioria dos municípios. Perante o atual debate da nova distribuição sobre os royalties entre estados produtores e não produtores e os novos cálculos, parece urgente estabelecer regras rígidas e fiscalização permanente sobre a maneira como os municípios devem investir esses recursos.

A parte final do estudo contém propostas de melhorias possíveis para as cidades que recebem royalties, listando algumas medidas a serem implementadas e também tenta pensar o futuro dessas cidades, do pré-sal e dos royalties.

A presidenta Dilma e o ministro da educação, Aloizio Mercadante, defendem a aplicação de 100% dos royalties em educação para cumprir o compromisso de investimento de 10% do PIB do Brasil na área até 2020. Estabelecendo diretrizes claras e mecanismos eficazes para a prestação de contas, parece uma das soluções possíveis para a farra sem nenhum controle que é praticada nessas cidades atualmente. Riqueza finita que não pode ser desperdiçada.

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