Por Maurício Angelo*
A mudança da lógica de atendimento ao paciente com transtornos mentais no SUS é fruto de um processo social complexo e inclusivo. O resultado desse amplo debate com especialistas, entidades representativas, os movimentos de luta antimanicomial, incluindo o protagonismo de usuários e familiares, foi a promulgação da Lei 10.2016 em abril de 2011, após mais de uma década de discussão, instituindo efetivamente a Reforma Psiquiátrica como política do Estado Brasileiro.
Substituindo o obsoleto modelo de internação hospitalar, responsável por anos de dor e exclusão para pacientes e suas famílias, a nova política de atenção passou a priorizar serviços comunitários e multidisciplinares, garantindo o cuidado com liberdade e permitindo a efetivação da cidadania das pessoas com transtornos mentais e problemas relacionados ao uso de álcool e drogas.
Esta nova política nacional transformou a saúde mental no Brasil na última década. Neste processo, destaca-se a adoção do território como conceito organizador da atenção, a contínua expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diferentes modalidades – CAPS I, II, III, CAPSad e CAPSi – ampliando o acesso e a interiorização de serviços em todo o Brasil; a redução significativa do número de leitos e de hospitais psiquiátricos; a criação do Programa de Volta para Casa, com o auxílio-reabilitação psicossocial instituído pela Lei 10.708/2003; e a reversão, desde 2006, dos recursos financeiros, anteriormente destinados quase exclusivamente à assistência hospitalar.
Os avanços são notáveis: em 12 anos, o número de CAPS no Brasil aumentou mais de 400%, passando de 424 CAPS em 2002 para 2.209 CAPS atualmente. A criação dos CAPS Álcool e Outras Drogas representa a crescente preocupação da sociedade sobre o tema, com a rede trabalhando na perspectiva de redução de danos.
O Ministério da Saúde, em conjunto com estados e municípios, também criou novos leitos em enfermarias especializadas (hospitais gerais), nos 69 CAPS AD que funcionam 24 horas e nas 61 novas unidades de acolhimento criadas. A rede de atendimento a dependentes químicos ainda é composta por 131 Consultórios na Rua, que atendem aos usuários nos locais de uso e pelos mais de 600 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), implantados para responder às necessidades de moradia de pessoas com transtornos psicológicos graves, que ficaram longo período internadas. Eles garantem residência e ajudam na reinserção dos moradores na rede social existente (trabalho, lazer e educação). No final de 2014, foram lançados diversos protocolos de suporte básico e avançado de vida, voltados para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Entre eles, protocolos para o Manejo da Crise em Saúde Mental, situações de agitação e agressividade, tentativa e risco de suicídio, bem como intoxicação e abstinência alcoólica e intoxicação por drogas estimulantes. Os protocolos serão acompanhados de capacitação para os profissionais do SAMU, o que vai gerar um impacto positivo para o acesso e a assistência.
É de certa forma esperado que setores conservadores e com visão reducionista da questão da saúde mental, acostumados a obter o monopólio intelectual e prático do atendimento, sejam resistentes à mudança. A reforma psiquiátrica, de fato, exige uma profunda transformação das instituições.
Novas diretrizes colidem numa arena em que visões de mundo concorrentes se enfrentam: a garantia da cidadania e de direitos universais, numa construção coletiva permanente, frente o confinamento e o estigma abstrato de “doença” imposto aos pacientes.
No estabelecimento da Rede de Atenção Psicossocial, as ações de saúde mental passaram a fazer parte do conjunto de exigências fundamentais para a instituição das regiões de saúde. A RAPS conta com componentes da atenção básica; atenção psicossocial; atenção de urgência e emergência; atenção residencial de caráter transitório; atenção hospitalar em hospitais gerais; estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial. É nesse contexto que se inserem o Projeto Terapêutico Singular e as diversas formas de ação.
O reconhecimento do sucesso dessa política se dá na prática e também pelo interesse de países como Equador, Paraguai, Costa Rica, Honduras, Haiti e Angola, que já buscaram cooperação técnica com o Brasil para aperfeiçoar as suas políticas de saúde mental.
Somente o constante desenvolvimento dessa política, estabelecida em parceria com todos os principais agentes envolvidos, poderá oferecer a possibilidade de um tratamento verdadeiramente eficaz, com cuidado territorial, humanizado, integral e multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar e intersetorial, com participação e controle social de usuários e de familiares.
Defender o retorno a um modelo arcaico de atenção é pactuar com a barbárie praticada durante décadas pelos manicômios tradicionais, algo impensável e incompatível com a sociedade atual.
* Maurício Angelo é jornalista e foi assessor do Ministério da Saúde, atendendo também a área de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, que inclui o programa “Crack, É Possível Vencer”.
Leitura recomendada: Holocausto Brasileiro – Daniela Arbex
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