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#BlackLivesMatter e o mundo em que estamos metidos

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 Maurício Angelo

Uma série de acontecimentos similares despertaram protestos pontuais nos Estados Unidos, incluindo a mobilização de celebridades e atletas: o assassinato de negros por policiais em serviço. É o que aconteceu com Michael Brown em Ferguson, com Eric Gardner em Nova York e mais recentemente com Freddie Gray em Baltimore. Uma verdadeira convulsão social e uma discussão intensa da sociedade está acontecendo neste momento.

Pois bem: em SP, só no PRIMEIRO TRIMESTRE de 2015, 185 pessoas morreram em confronto com a PM. CENTO E OITENTA E CINCO. Se você considerar dados estatísticos históricos, verá que aproximadamente 80% desses são negros. Só em São Paulo. Em 3 meses. Aos fatos: em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. Mas o assassinato de jovens negros está tão institucionalizado no Brasil que isso não é capaz de envolver quase ninguém.

O assassinato de Freddie Gray através do uso excessivo da força (seis policiais estão sendo indiciados por terem atacado Gray covardemente na van após a prisão) é algo tão comum por aqui que já acaba entrando na categoria “absurdo, mas não chocante”. Pior: esse tipo de reação é pedida pela sociedade e pelos cães raivosos e acéfalos da mídia. Os exemplos que demonstram isso são abundantes, basta lembrar do caso do rapaz acorrentado nu e severamente castigado de todas as formas (com estrelas da imprensa batendo palma), para ficar no mais notório em tempos recentes.

Fechamos um contrato social bem perverso e distorcido, transformado em naturalidade. Lá fora, o caso Gray desperta protestos incessantes nas ruas e nas redes sociais (a hashtag #BlackLivesMatter ou #VidasNegrasImportam) representa isso, além do intenso debate na mídia e nos órgãos oficiais que está acontecendo neste momento.

David Simon, produtor da premiadíssima série “The Wire”, que durou 5 temporadas na HBO e mostrava justamente, e de forma extremamente crua, meticulosa e detalhista o cotidiano de policiais em Baltimore e da vida na periferia, de jovens negros entregues à própria sorte e as consequencias disso, escreveu um dos melhores artigos dos últimos tempos. Nele, Simon desenvolve de forma brilhante como as situações citadas acima estão conectadas com a brutal desigualdade social e o espírito do capitalismo. Afirma (em trechos selecionados de tradução livre):

Estados Unidos está completamente dividido no que se refere à sociedade, economia e política. Definitivamente: existem dois países. Eu vivo em um deles, um quarteirão em Baltimore que é parte da América viável, a América que está conectada com a sua economia, onde parece plausível um futuro para as pessoas que nela nasceram. Mas 20 quarteirões adiante você encontra uma América completamente diferente. É assustador perceber quão pouco nós temos em comum já que vivemos em tamanha proximidade.

Uma coisa que nós entendemos é o lucro. No nosso país nós medimos todas as coisas pelo lucro. Nós ouvimos os analistas de Wall Street. Eles nos dizem o que supostamente devemos fazer todos os trimestres. Os relatórios trimestrais são deuses. Olhe para Meca, você sabe. Você atingiu o objetivo ou você não atingiu seu objetivo? Você quer o seu bônus ou você não quer o seu bônus?

Os sindicatos importam. Eles são parte da equação. Não interessa que eles não vençam o tempo todo ou que percam sempre, mas importa é que eles vencerão em boa parte do tempo e que colocarão na mesa a parte da equação que nos mostra que os trabalhadores não importam menos, eles importam mais.

Mas agora o que você vê nos Estados Unidos é um show de horror. O que você vê é uma retração da renda familiar, o abandono de serviços básicos, como educação. Você vê uma classe menos privilegiada sendo perseguida no que eles alegam ser uma “guerra contra drogas perigosas” mas que, de fato, é apenas uma guerra contra os pobres que se transformou no maior estado carcerário da história da humanidade, em termos de porcentagem de quantos americanos nós colocamos na cadeia. Nenhum país na face da Terra aprisiona pessoas no número e nas taxas que nós fazemos.

Nos transformamos exatamente no oposto do que uma vez chamamos de “sonho americano” e isso se deve basicamente à nossa incapacidade de dividir, de apenas contemplar um certo impulso socialista.

Estou definitivamente convencido de que o capitalismo precisa ser o caminho pelo qual geraremos riqueza em massa neste século. Isso não se discute. Mas a noção de que isso não vem acompanhado de um impacto social, de como distribuímos os benefícios do capitalismo para incluir a todos numa sociedade razoavelmente justa, é chocante para mim.

E uma das coisas que o capital sem dúvida quer é a desvalorização do trabalho. Eles querem que o trabalho seja desprezado porque o trabalho tem um custo. E se ele é desvalorizado, vamos traduzir isso: no popular, significa que os humanos estão valendo menos.

Em resumo: falhamos. Falhamos lá e falhamos aqui. Aceitamos a perversão completa da vida em sociedade: estamos submissos, não associados. E por séculos e séculos esta condição encontra-se demonstrada de todas as maneiras possíveis. Na desigualdade social instaurada, na pornográfica diferença de qualidade de vida entre as nações, no abismo de salários numa mesma empresa/cidade/etc, no assassinato indiscriminado de jovens negros, na completa invasão de privacidade do cidadão pelos governos e empresas, na opressão contínua e onipresente.

Que esta discussão esteja em voga atualmente (Piketty, Zizek, Paul Krugman, Snowden, etc, etc) já é mais do que se costuma ter e sinal de que as coisas, pelo menos em parte, ainda que de maneira tímida e lenta, começam a mudar. Ver isso tomar as ruas, os noticiários e as redes sociais é fundamental para que essa transformação, de fato, aconteça. Nada disso virá por acaso. Precisamos entender que a revolução não só não será televisionada, nem acontecerá na internet como jamais irá se concretizar. Precisamos superar conceitos obsoletos, ideias viciadas e compreender que a “mudança” acontece na prática, no dia a dia. Agora. E tanto já aconteceu nos últimos anos. Para ir além é preciso estar atento e não ocioso.

Eu acredito na informação como a mais poderosa ferramenta de transformação social do mundo contemporâneo. E justamente por isso é que não podemos aceitar que aqueles que se apropriam dela para disseminar interesses escusos e ao mesmo tempo bem especificados, em distorcer a realidade, em manter o status quo imutável e irredutível, usando para isso técnicas claríssimas de duplipensar, passem graciosamente. Esta é uma guerra de sutilezas e por isto mesmo muito mais difícil de ser travada. Não guardar um silêncio bem parecido com a estupidez, como diria Galeano, parece-me o primeiro passo para tanto.

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