Protestos na Grécia durante a terceira greve geral dos últimos meses. Nouriel Roubini "é só a ponta do iceberg"
No auge da crise econômica mundial de 2008, escrevi este artigo. O nome, sugestivo: “Requiem Para Um Pesadelo”. Nele, me debruçava sobre os recentes acontecimentos, os precedentes, o que significava e quais seriam as possíveis implicações a partir dali. Cito porque este texto anterior é fundamental para a compreensão deste. Afinal, a crise atual da qual a Grécia é o primeiro sintoma visível, é fruto direto das trapalhadas pós setembro de 2008.
A explosão do endividamento do setor privado, menos de 2 anos atrás, foi “remediado” com toneladas de dinheiro público, despejados por quase todos os governos, comprando as empresas falidas e apostando numa solução “simples” para salvar a economia. Diz o clichê que reconhecer a doença é o primeiro passo para se recuperar dela. Não foi exatamente o que aconteceu.
Chegou a hora, novamente, da incompetência cobrar seu preço. Literalmente. Quem avisa não são “comunistas lunáticos” ou profetas do apocalipse loucos para ver o mundo implodir. É menos ideologia e mais realidade. A atual edição da revista Exame (número 969, 02/06/2010, ano 44), traz na capa a matéria “O mundo no vermelho”, de Tiago Lethbridge. Fundamental para entender o que está acontecendo e de uma fonte longe de suspeitas de “inclinações esquerdistas”. O argumento mais fácil dos acéfalos para descartar alguma análise.
Ironia das ironias e nova tragédia anunciada: ao garantir a sobrevida dos preciosos bancos, seguradoras e demais instituições financeiras privadas com a farra irrestrita do dinheiro público, os governos – advinhe! – colocaram seus países em dívidas astronômicas. Pequeno exemplo de como o desespero é capaz de destruir a inteligência.
A relação entre a dívida pública dos países ricos e seu produto interno bruto, na média, subiu de 73% em 2007 para 103% na previsão para 2011. São recordes históricos e indesejáveis: no Japão bate nos 214,3 %, 147,6% no Líbano, 125,6% na Grécia, 117,7% na Itália, 116,3% na Irlanda, 111,3% na Islândia, 100,9% na Bélgica, 87,5% nos Estados Unidos. Nos emergentes, a situação é menos pior mas não confortável: 81,2% na Índia, 70,2% no Brasil e 66% na Argentina.
O que isto significa? Que o alto endividamento coloca estes países em situação crítica para tentar qualquer ação de recuperação econômica nos próximos anos, dificultando brutalmente o crescimento interno e espalhando terror no mercado financeiro. Terror este antes restrito apenas aos países médios que, curiosamente, agora são considerados mais seguros para se investir.
Segundo estudo do Citigroup, que analisou a história das finanças mundiais da Revolução Industrial até os dias de hoje, citado na reportagem da Exame, nunca, excetuando-se períodos de Guerras Mundiais, deveu-se tanto. E nunca a dívida global cresceu de forma tão descontrolada. O medo de um calote soberano – dado por um país que simplesmente resolve não pagar sua dívida – é imenso. Só que desta vez esta ameaça parte das nações ricas. A situação fiscal dos EUA é a pior desde a Segunda Guerra Mundial.
A zona do euro arde em conflitos e numa crise profunda e endêmica. A moeda já se desvalorizou 15% em relação ao dólar em 2010. A relação truncada entre seus participantes, que sempre foi tensa, piora a cada dia e o euro já não é mais visto como uma moeda sólida capaz de representar um porto seguro para o capitalismo financeiro.
Na tentativa de evitar os calotes soberanos generalizados, o FMI e a União Europeia anunciaram o maior plano de resgate da história, com 1 trilhão de dólares para os países mais problemáticos da zona do Euro. Parece que nunca aprendem a lição. A instabilidade no mercado é gritante: ninguém sabe o que virá. Ninguém tem uma solução simples. O que foi tentado antes fracassou, a situação piorou e restam poucas alternativas para um último suspiro.
Como isto impacta no Brasil? Somente em maio as empresas brasileiras perderam 200 milhões de reais na bolsa. Para além disso, tudo indica que o “crescimento chinês” visto no primeiro semestre desse ano não seguirá. A alta dependência das commodities (em 2000 os produtos industrializados representavam 59% das exportações, caindo para 44% atualmente, níveis de 1980) é um ponto frágil para o Brasil, mal que o governo não conseguiu melhorar. Numa economia altamente interligada, parece óbvio que a falência de outros países, especialmente os ricos, tem impacto direto nos planos de crescimento dos emergentes. Nas exportações, nos indíces diversos que regem a economia e, por extensão, no mercado interno. A Europa representa 22% das exportações brasileiras.
Ninguém sai ileso. A incompetência contínua respinga em todos. Para a Europa não resta solução: reajustes fiscais, arrocho salarial, corte de benefícios, renegociação da dívida (como se fosse possível). Cortar parte dos direitos trabalhistas historicamente acumulados à custa de muita coisa. Medidas naturalmente impopulares que causam reações extremas como as vistas na Grécia e já vistas largamente na França (ou alguém se esqueceu dos inúmeros conflitos advindos disso ocorridos no país nos últimos 5 anos?). Mobilização de milhões de pessoas, greves gerais. Vários países europeus já anunciaram corte de custos nos últimos tempos, o que configura o maior reajuste fiscal da história.
Novamente se afundando em suas próprias engrenagens, fica cada vez mais difícil para o capitalismo superar o que seria “apenas uma de suas crises cíclicas”. O rombo nos Estados Unidos supera 1 trilhão de dólares de 2008 pra cá. Só na Espanha, a taxa de desemprego supera os 20%. As “soluções” cada vez mais raras forçam medidas como o aumento do tempo de serviço para aposentadoria. Crise generalizada, endividamento recorde, envelhecimento significativo da população, déficit brutal das contas públicas. Grécia, Reino Unido e Espanha já anunciaram a elevação da idade mínima para aposentadoria. Parece não haver outro caminho para França (que já tentou isto e o resultado foi uma das maiores mobilizações sociais da sua história), Espanha e cia.
Nos próximos dez anos, a previsão é de que os juros responderão por 20% do orçamento dos EUA e o déficit fiscal alcance os 9 trilhões de dólares. A China (e boa parte da Ásia), tida como a “nova fronteira”, terra onde o crescimento é “geral e irrestrito”, para onde dezenas de empresas dos EUA e Europa migraram em busca de mão de obra barata (escrava), incentivos mil e custo reduzido, gera aberrações como o caso da Foxconn. Apenas um exemplo de uma realidade pouco discutida. É esta a salvação do capitalismo? É disso que o mundo depende para continuar com seu padrão de vida atual? Tentar igualar o “estilo de vida” dos ricos, origem direta de muito do nosso mal, e não transformar o padrão é um erro crasso dos emergentes.
“Crescimento” a todo custo e como sinônimo de “evolução” e melhora não parece mais ser uma alternativa (e uma mentalidade) aceitável. Nouriel Roubini, economista que atingiu “auge de popularidade” em 2008, por ter previsto a crise, dá um panorama concreto: “dinheiro não é o bastante para resolver o problema europeu. Os países estão endividados demais. A solução proposta no pacote é levá-los a um longo período de cortes draconianos e recessão. A Grécia sairá dessa temporada com uma dívida muito maior. Os problemas são muito sérios e resolvê-los da maneira proposta pela União Européia me parece ser uma missão impossível, além de politicamente inviável.”
Com a repetição dos erros anteriores e a multiplicação dos governos insolventes, pergunta ele: quem vai resgatar a União Européia e o FMI? Roubini resume o cenário: “os países encrencados tem três opções: dar um calote, ligar suas gráficas e imprimir dinheiro e/ou cortar gastos, aumentando os impostos e colocar a casa em ordem. Mas os políticos – principalmente os estadunidenses – parecem não reconhecer o problema. É preciso ir muito além disso”.
No jogo de empurra-empurra, cabra-cega e soluções paliativas todos saem perdendo. Por fim, Roubini não é tão pessimista sobre países emergentes como o Brasil, mas sinaliza que a crise terá efeito inevitável e que os próximos anos precisarão vir acompanhados de reformas estruturais e tributárias sérias.
Como se vê, a Grécia soa realmente como apenas o primeiro sintoma crítico. A série de incríveis trapalhadas dos últimos anos não têm fim. Insistindo em propostas caducas, evasivas e natimortas, que apenas pioram a situação a longo prazo, os governos criam uma bolha dentro da bolha, explodindo numa infecção grave de cura extremamente complicada.
Para quem achou que as coisas já estavam superadas, vale a mesma frase de Peer Streinbueck, ministro das finanças da Alemanha, em 2008: “todos os que enxergavam uma luz no fim do túnel agora se dão conta de que essa luz é uma locomotiva que está indo em sua direção”.
O resultado da socialização da desgraça e dos prejuízos do setor privado estão claros. Continuam a fazer as mesmas coisas inócuas de antes. O “crescimento” de alguns se dá em meio ao caos completo de outros e da instabilidade generalizada. Qual será o próximo passo?