Sicko – Michael Moore – 2007 – ****
A má-vontade (ou “birrinha”) que muitos “críticos” tem com Michael Moore infelizmente quase nunca é acompanhada de uma avaliação profunda dos principais temas levantados por seus documentários. Manipulador, maniqueísta, apelativo, desonesto, sensacionalista, comediante. A lista é longa. As técnicas de Moore são realmente questionáveis. Há até um documentário sobre isso, que infelizmente ainda não vi.
Para horror de quem se limita a falar besteiras muito maiores que qualquer deslize de MM, o gordinho venceu o Oscar, garantia de sucesso comercial, e Cannes, prova de reconhecimento da crítica, que premia o que de mais “artístico” e contundente o cinema faz. Algo ignorado é que Moore me parece inteligente o bastante para ter ciência dos seus pontos falhos e de que forma ele pode ser atacado a cada documentário que produz. Reconhecer a legitimidade do adversário, aliás, é a melhor maneira de enfraquecê-lo. Isso inclui até a artimanha de enviar um cheque anônimo de 20 mil dólares ao mantenedor do maior site anti-Moore do mundo, porque o sujeito não conseguia pagar o atendimento médico necessário para a esposa. Já o argumento de que em Guantanamo (base militar dos EUA em Cuba) os prisioneiros da Al-Qaeda são tratados com muito mais cuidados que boa parte da população dos EUA é, claro, frágil. Qualquer um sabe que Guantanamo não é exatamente uma filial do paraíso.
Sicko aborda o sistema de saúde no mundo (em especial nos EUA). Difícil imaginar tema mais importante. Os depoimentos e argumentos se sucedem, afim de mostrar que quem não tem cobertura médica nos EUA está literalmente ferrado e quem tem também. Não por acaso Obama tenta, no momento, aprovar um projeto de reforma do sistema de saúde.
Mesmo com todas as restrições de “doenças pré-existentes” possíveis (uma lista infindável), 250 milhões de estadunidenses tem algum tipo de plano. Moore mostra a máfia por trás da indústria médica (e farmacêutica). Que tem o simples objetivo que toda empresa capitalista têm: fazer dinheiro a qualquer custo. Mesmo que isto seja sob a vida dos outros. Apenas um detalhe.
Histórias verídicas de pessoas que perderam familiares e amigos porque os planos negaram os tratamentos necessários sob qualquer pretexto forçoso (um absurdo descomunal) se empilham na tela. Dívidas com hospitais. Instituições que mandam despejar seus doentes na rua enfiando-os num táxi qualquer. Quanto custou para a indústria médica comprar o senado e o presidente Bush, permitindo que nada mudasse e o lucro continuasse a ser gerado como bem entendem. O terrorismo (este sim) feito sob o sistema de saúde socializado. O dinheiro em primeiro lugar, no público ou privado. Se você não tem como pagar, não é atendido. Simples assim. E mesmo quem pode, encontra dificuldade. Basta que o plano avalie que o custo será maior que o ganho. Bye bye. We are america. Self-made man.
Afim de comparar o sistema de saúde dos EUA com o de outros países, Moore vai até o Canadá, a França e a Inglaterra, entrevistando pessoas nativas destes lugares bem como estadunidenses que se mudaram para lá. A diferença gritante – atendimento respeitoso, humano, de ponta, rápido, inclusive com os médicos indo até a casa do paciente, como na França, ou o hospital dando o dinheiro para o transporte, se a pessoa não puder pagar, como na Inglaterra – aparece. Americanos (sic) contam, com os olhos brilhando, que se sentem abençoados por não dependerem do sistema de saúde do seu país de origem.
Moore certamente desconfia que impostos altíssimos devem bancar isto. E escolhe visitar a casa de um médico inglês do serviço público, na esperança dele viver endividado, como a imensa maioria dos estadunidenses. Para “surpresa” o médico ganha muito bem, tem uma casa de três andares e não possui dívidas acumuladas. Seu principal gasto são frutas e férias.
Aqui fica evidente o maniqueísmo de Moore e o mundo encantado fora dos EUA que ele cuidadosamente cria. Parece óbvio que a história não se resume ao dualismo visto na tela. Os confortáveis benefícios conquistados pelos trabalhadores franceses ao custo, literal, de suor e sangue ao longo da história, proporciona um universo de vantagens que pesam, enormemente, no orçamento do governo. A previdência estourada, a bolha crescente difícil de ser contida. E quando o governo tenta, o país pára. Os benefícios são legítimos. Funcionam. Não caíram no colo de ninguém. Mas os problemas atuais enfrentados por este quadro nem de longe são pincelados por Moore.
Assim como é óbvio que ingleses, franceses e canadenses não vivem exatamente no paraíso. Mesmo com essa ressalva, o sistema de saúde nestes países é o que deveria ser o brasileiro se a carga monstruosa de impostos que pagamos fosse bem administrada, não sendo dragada (também) pela corrupção no meio do caminho. Lá eles pagam mas tem o retorno. Aqui…bem, você sabe como é.
O que os exemplos de Moore tem em comum são a imigração explosiva, o desemprego, enfim, todas as mazelas compartilhadas em maior ou menor grau por quase todos os cidadãos do mundo. Exceto pelos 1% daqueles que detém 80% da riqueza do planeta. Aspas para Orwell, por favor:
“Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição – com efeito, de certo modo era a destruição – de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e a aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância.”
Eis a síntese do que realmente importa em Sicko. Em outras palavras, é o mesmo que é dito não por coincidência por um inglês: o governo dos EUA não parece muito interessado em ter pessoas educadas e saudáveis, porque, assim sendo, o seu poder seria questionado e destruído. Como nos EUA, assim é em boa parte do mundo. E Moore demonstra como somos enrolados numa teia de dívidas e preocupações mundanas demais durante toda a vida para não termos o que pensar, argumentar. Para ficarmos reféns do establishment. Não é nenhuma novidade. Eis a base da nossa sociedade. Sem isso, ela se implode.
O que aconteceria na Inglaterra se o sistema de saúde universal fosse alterado? Uma revolução. É o que o senhor diz. E uma estadunidense, morando na França, percebe a diferença básica: aqui (na França), o governo tem receio das pessoas, lá (EUA), as pessoas tem medo do governo. E isto muda tudo. “Não se revoltarão enquanto não tiverem consciência; não terão consciência enquanto não se revoltarem”
Por fim, Moore vai à Cuba. Lá, os “heróis” do 11 de setembro (voluntários que ajudaram o trabalho dos bombeiros e acabaram desenvolvendo uma série de doenças principalmente respiratórias com o passar dos anos) encontram o tratamento adequado – e gratuito – que lhes fora negado nos EUA. Em Cuba, o remédio que custa 120 dólares nos EUA é encontrado por 5 centavos de dólar. Somente na ilha de Fidel (onde você acha que Lúcifer mora, brinca Moore) os “heróis da América” são tratados com a dignidade merecida. Não é preciso ser “herói” para receber o mesmo atendimento.
O paradoxo é o que define o mundo moderno. Como um ilhazinha como Cuba, com todas as restrições comerciais impostas pelo próprio EUA, comunista, consegue ter um dos melhores sistemas de saúde do mundo, gratuito, e os EUA, a nação mais rica do planeta, não? Ora, tanta riqueza precisa vir de algum lugar. A indústria médica (incluindo a farmacêutica) é só um deles.
O próximo filme de Moore (a sair em outubro) é, claro, sobre a crise econômica. A verdade, no entanto, a respeito dessa galhofa toda, é só uma. Como diz Marshal Berman em “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”:
A economia moderna provavelmente continuará em expansão, embora talvez em novas direções, adaptando-se às crises crônicas de energia e do meio ambiente que seu sucesso criou. As adaptações futuras exigirão grandes turbulências sociais e políticas; mas a modernização sempre sobreviveu em meio a problemas, em uma atmosfera de “incerteza e agitação constantes” em que, como diz o Manifesto Comunista, “todas as relações fixas e congeladas são suprimidas”. Em tal ambiente, a cultura do modernismo continuará a desenvolver novas visões e expressões de vida, pois as mesmas tendências econômicas e sociais que incessantemente transformam o mundo que nos rodeia, tanto para o bem como para o mal, também transformam as vidas interiores dos homens e das mulheres que ocupam esse mundo e o fazem caminhar. O processo de modernização, ao mesmo tempo que nos explora e nos atormenta, nos impele a apreender e a enfrentar o mundo que a modernização constrói e a lutar por torna-lo o nosso mundo. Creio que nós e aqueles que virão depois de nós continuarão lutando para fazer com que nos sintamos em casa neste mundo, mesmo que os lares que construímos, a rua moderna, o espírito moderno continuem a desmanchar no ar.
Não lhe parece familiar?