Publico abaixo a matéria que foi capa da revista Movie de janeiro de 2010, época de lançamento do filme “Lula, O Filho do Brasil”, contendo uma entrevista que fiz com Glória Pires durante o 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e uma crítica da película. Pela primeira vez na web. Revi o filme esses dias e a impressão permanece a mesma.
Glória Pires: a grande dama do cinema nacional
Atriz, presente nos maiores sucessos de bilheteria nos últimos anos, faz seu papel principal no cinema ao interpretar a mãe de Lula
Sem ignorar outras inegáveis grandes atrizes brasileiras, é inquestionável que Glória Maria Cláudia Pires de Moraes tem cheiro de povo. Os números não mentem: nesta década, os filmes protagonizados por ela levaram mais de 10 milhões de brasileiros ao cinema. Especialmente nas parcerias com Daniel Filho: A Partilha, de 2001 e os blockbusters Se Eu Fosse Você, de 2006, e sua continuação, de 2009.
Impressionante, porém pouco se comparado aos 20 milhões de espectadores que são esperados para “Lula, O Filho do Brasil”. Pelo menos este é o desejo e a expectativa de Luiz Carlos Barreto, produtor do longa. Não sem motivo. A popularidade mundial de Lula ancora o lançamento em mais de 500 salas e facilita acordos de distribuição sendo costurados em toda América Latina. A marca, se alcançada, será quase o dobro do até agora campeão absoluto que é “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de 1976, com aproximadamente 11 milhões.
Para Glória, atriz acostumada a ser assistida por milhões de brasileiros todos os dias durante décadas na tela da Globo, esse tamanho assusta? “Assusta. Acho que se a gente fica pensando nisso, essas possibilidades que estão surgindo, travaria. Ainda bem que só estamos tendo acesso a isso agora com o filme pronto, porque se fossemos fazer sabendo de todo esse peso…não dava pra fazer nada, seria um bloqueador.”
Realmente, levar a mãe de um dos personagens mais icônicos da história do Brasil para as telas é um trabalho complicado. Dona Lindu, magistralmente interpretada por Glória, é nitidamente o eixo por onde “Lula, O Filho do Brasil” se move. Lindu personifica não só o estereótipo da mãe aguerrida, batalhadora, que teve de assumir boa parte da criação dos filhos sozinha, a exemplo de tantas histórias de outras brasileiras, como é a principal influência de Luiz Inácio. A quem o atual presidente deve parte fundamental de seu caráter. Como interpretar uma personagem real de tamanha importância mas sem muitos registros de sua personalidade? “Foi muito com os familiares. As informações foram só com eles. Não havia nada escrito sobre ela, nada gravado, apenas algumas fotos. Fomos buscar tudo nos relatos familiares: filhos, primos, sobrinhos netos.”
Os olhos de Glória brilham numa quase devoção ao papel. Nota-se, na fala da atriz, a paixão pela essência de Lindu, a profundidade com que se entregou a ela: “Eu não sabia nada dessa história. Então foi uma grande surpresa descobrir como tudo surgiu. E o que me encantou muito foi a forma como as pessoas que conheceram a Dona Lindu até hoje se emocionam ao falar dela. Do jeito dela, da positividade que ela tinha, da forma surpreendente de lidar com as adversidades, que não foram poucas.”
Dentre todas as personagens marcantes em mais de 40 anos de carreira, o que mais fascina em Lindu? “A positividade, essa forma de olhar pro futuro e caminhar, apesar de tudo. A capacidade de surpreender em suas atitudes. Ela não tinha estudo, mas uma grande intuição, uma inteligência emocional muito forte. E é maravilhoso porque tudo isso é verdade. As coisas realmente aconteceram: a enchente, a viagem de 13 dias e 13 noites, a morte dos filhos, ainda bebês, tudo isso aconteceu de fato e ela sempre com a sua maneira positiva, valente, destemida. Ela tinha um orgulho, mas não era orgulhosa. Uma retidão sem ser prepotente. Uma força sem ser resmungona. Sempre rindo, bem humorada. O resultado dessas qualidades é que a torna forte, capaz de encaminhar todos os filhos bem, com suas vidas organizadas. O amor, que é tudo que a gente pensa quando falamos de ‘mãe’, essa coisa do amor incondicional, fazer das tripas coração. Sempre com alto-astral e acho que isso tá no filme. Muito nítido”.
E como é interpretar um personagem real? Mais difícil que o comum? Como equilibrar as coisas? “Na verdade, acho que é difícil porque você tem um resultado que é real. Quando você interpreta uma pessoa real, tá recriando algo que aconteceu. Por um lado é mais fácil justamente por causa dos testemunhos que você recebe, tem um peso diferente. O tempo todo ficava pensando, enquanto fazia, que os filhos dela irão assistir ao filme. Então queria da melhor forma resgatar essa mulher para que eles tivessem um desdobramento da imagem que ficou lá atrás. Afinal de contas, o tempo cria um distanciamento muito grande e não queria interferir de uma forma contrária, oposta ao que eles me narraram. Fiz muito para os filhos. Pensando nos filhos. Respeitando o que me passaram.”
O trabalho ao lado de Cléo e Fábio Barreto, a popularidade e a retomada do cinema
“Lula” também marca a primeira que vez que Glória e sua filha, Cléo, atuam juntas, dividindo a cena. O que não estava previsto: “Na verdade atuamos juntas por acaso. Não tinha no roteiro nenhuma sequencia junta, onde houvese um diálogo. O Fábio (Barreto, diretor) que criou. Era o último dia de filmagem e ele me disse ‘não posso fazer um filme com vocês duas e não ter um diálogo’. A cena acontece depois do casamento da Lourdes com o Lula. Fiquei feliz, porque claro que tem toda uma coisa afetiva. O Fábio é muito amoroso, ele se preocupa com umas coisas que ninguém se preocuparia. Ele tem essa qualidade: dentro da loucura toda ele lembrar, pensar, que não tinha nenhum diálogo nosso e criar isso. Fiquei muito feliz, acho que ela tá muito bem no filme.”
A parceria de Glória e Fábio, na verdade, é antiga. “Índia, A Filha do Sol”, de 1982, marcou a estreia dos dois no cinema. Fábio estreando na direção e Glória consagrada por sucessos recentes na TV da época como “Dancin’ Days”, de 1978 e Cabocla, de 79. A parceria se repetiria anos depois em “O Quatrilho”, de 1995, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Glória relata a proximidade entre os dois: “O Fábio é muito fácil de conviver, porque ele quer todo mundo feliz. É muito difícil isso, a não ser que as pessoas entrem nessa. E ele tem essa preocupação. Ele é muito sensível, inteligente. É um amigo querido e assim tudo fica mais fácil. Temos bastante intimidade. Ele ouve muito, não tem nenhum problema de ego. Se alguém tem uma ideia boa, qualquer pessoa que seja, e a ideia for mesmo boa, ele vai usar. Não tem esse negócio de ‘eu sou o diretor e a bola é minha’, sabe? Tem sido ótimo ao longo destes anos todos”.
E qual é, afinal, a posição de glória sobre o aspecto “político” de “Lula, O Filho do Brasil”? “Eu não acho que seja um filme político. Existe uma expectativa muito grande, que é normal. E as pessoas veem o Lula como um homem político. Mas o filme não conta esta história. Conta o que vem antes, o que ninguém conhece. Acho que é só um alarde, a maioria das pessoas sequer viu, não sabem do que se trata. Na ânsia de ter que falar alguma coisa, acabam soltando isso.”
Após ficar alguns anos sem participacões no cinema, Glória começou a acumular um filme atrás do outro, justo no período crescente de participação do cinema nacional em termos de público nas salas, que passou de 5% a uma média de 15% do mercado, chegando a 23%. A que se deve esta constante (e bem vinda) aparição de Glória no cinema? “Esse retorno é culpa do Daniel Filho (risos). Fiquei um tempo muito grande de jejum de cinema. E, a partir de A Partilha (de 2001), que tava com o Daniel há muitos anos, ele acabou me convidando pra fazer. Era uma grande fã da peça, que ficou muitos anos em cartaz e adorava a Selma, que é a personagem que ele me convidou. E depois veio Se Eu Fosse Você (2006), Primo Basílio (2007), Se Eu Fosse Você 2 (2009), todos com a direção do Daniel. Ele foi muito responsável por isso, por me trazer de volta ao cinema. E é um trabalho mais intenso, até porque dura menos tempo, dá pra fazer vários. Fiz praticamente três filmes num ano (2008): Se Eu Fosse Você 2 em abril, É Proibido Fumar (de Anna Muylaert) em julho e em dezembro comecei a preparação do ‘Lula’. Três filmes totalmente diferentes, com propostas diferentes , o que foi muito bom.”
E como ela se sente sendo uma das responsáveis por alguns dos maiores sucesso de público dos últimos anos? Ela não seria o grande ícone do cinema nacional na atualidade? “Ah, eu me sinto uma sortuda. Porque foram meus amigos que me chamaram para fazer esses filmes. Pessoas que trabalharam comigo e eu tive a sorte de ser convidada e ter esse sucesso todo. O que eu levo em conta mesmo (na hora de escolher o projeto de um filme) é o roteiro, a possibilidade daquele roteiro virar um bom filme, quem dirige, a história que estamos contando e tudo. Na verdade os temas vão de encontro a determinado momento pessoal. No cinema é mais difiícil ter essa coisa de repetir personagem, normalmente não se faz filme toda hora. Na televisão é mais normal, mas no cinema é mais difícil. O que é determinante mesmo pra mim é quem me chama e a história que será contada”
Com 9 filmes no currículo desde a chamada “retomada”, sendo parte importante dela pelo próprio “O Quatrilho”, de 95, como Glória observa o desenvolvimento do cinema nacional, a mudança da recepcão do público e da própria mídia? “Eu vejo que existe esse crescimento, até com relação a imprensa, porque ela também tem uma série de ranços, vamos dizer. Fazendo filmes com o Daniel, eu vi demais isso, porque ele mesmo já fala, a imprensa vai dizer ‘ah, lá vem o cara fazer novela no cinema’. Que é um discurso batido, velho, rançoso e que não tem nada a ver. Cinema é cinema. Se você quer ter mercado, não pode falar com uma parcela do público, tem que falar com todo mundo. É muito simplista falar que o cara faz televisão no cinema. É meio burro isso. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.”
Iniciando 2010 com o maior lançamento da história do cinema brasileiro e num papel forte e marcante como é Dona Lindu, Glória tem toda a propriedade do mundo para falar. Enquanto observa a trajetória de “Lula, O Filho do Brasil” nas telas, Glória pode analisar com calma os diversos convites que recebe para novos projetos. Uma das maiores atrizes da dramaturgia brasileira em todos os tempos se despede com um sorriso no rosto e a satisfação de ter pleno domínio da carreira. Todos querem um pouco de Glória Pires. E ela sabe muito bem o que faz.
Lula: apoteótico, brega, problemático e popular como o Brasil
Filme busca sem cessar o “melodrama épico” forjado por Fábio Barreto
O que as palmas protocolares de um teatro apinhado com quase 2 mil pessoas, numa sessão tensa, turbulenta, repleta de políticos dos mais elevados cargos do país até o povão, curioso, ansioso, depois de duas horas do filme mais caro, de maior lançamento e mais esperado do cinema brasileiro recente significam? Exatamente o que “Lula, O Filho do Brasil” é. Um filme mediano, com problemas crônicos e lapsos de cinematografia artística. Uma obra que deixa um gosto estranho na boca. As palmas, que deveriam ser efusivas, são apenas frias, corretas. A consagração absoluta não vem.
O público, cansado pelas quase 4 horas que a sessão levou (incluindo o atraso) parece mais preocupado em sair logo do Teatro Nacional, acotovelando-se com outras centenas de pessoas na saída, que saudar o elenco, a produção e a primeira dama, Marisa, ali presente. Assim foi a premiére mundial de “Lula”, em Brasília. Como o próprio Barreto admitiu na coletiva do dia seguinte, o público riu quando “tinha” que rir, se emocionou quando “tinha” que se emocionar e assistiu tudo com profundo interesse e respeito. Os objetivos, afinal, foram cumpridos com louvor. A película entrega exatamente o que se espera dela: a epopéia real de um homem pobre, imigrante, que se formou em meio a uma família destruída, enormes privações financeiras, descobriu o amor, perdeu a esposa e o filho, foi preso, assistiu a morte da mãe, batalhou, viu-se líder sindical quase por acaso e acabou como presidente do Brasil.
A teimosia. A persistência. Perseverança. Características apregoadas quase com messianismo. Dentre todas as expectativas possíveis que a produção de “Lula” gerou, na verdade, algumas são principais. Tecnicamente, os R$ 12 milhões gastos são evidentes: a fotografia consegue dar a exata medida dos cenários: do sertão ao porto de Santos. Cenas como as da enchente pela qual a família sobrevive são realistas e fogem do padrão “duvidoso” que as produções às vezes carregam. Ao mesmo tempo em que atinge resultado aceitável e com algum brilho na maioria das cenas (Fábio nunca foi exatamente um mestre das câmeras), alguns momentos extrapolam o limite da pieguice. Como o beijo entre Lula e Cléo Pires com um coração brilhante de fundo. No extremo oposto, está o ápice que é a reunião sindical de inesperadas 80 mil pessoas, reproduzida com cuidado, de criação difícil (3 dias), mesclada com computação gráfica, material de arquivo e a presença de figurantes que realmente viveram a ocasião décadas antes.
A cena é, por si só, talvez a maior representante da alma de Lula. O homem que atinge e tem a multidão na mão pelo carisma, a capacidade de liderança, de fazer com que um estádio inteiro ouça o que tem a dizer em colaboração mútua. O que teima diante de todas as adversidades, imagináveis ou não. A música, de Jaques Morelenbaum e Antonio Pinto (mesma dupla de Central do Brasil), vai na esteira da intenção obsessiva de provocar emoções, sendo bela em alguns momentos e massante na maior parte do longa.
Milhem Cortaz, como o pai, Aristides, tem participação curta porém fundamental. Glória Pires sobra em cena. É ela toda a estabilidade de Lula e, por consequencia, do filme. Entre o ainda menino que perde o dedo e corre para os braços da mãe e o líder sindicalista capaz de domar multidões, Lula perde a esposa, o filho, o pai e a mãe. É pelo trauma, pelos golpes mais duros, que a personalidade e a trajetória de Luiz Inácio se forma. Para além de seus problemas artísticos, da superficialidade e planificação com que tudo é contado (35 anos em 2 horas), de algumas escolhas infelizes, “Lula” se impõe pelos inúmeros temas relevantes que toca: imigração, darwinismo social (depois demolido), alcoolismo, família, perseverança, amor, mercado, repressão e…política.
“Lula” é um filme político? A interminável pergunta. Aquilo que os produtores são obrigados a responder incessantemente. O ponto preferido da mídia, da oposição. Não do público. “Lula” é um filme “apolítico” no máximo que a história de um personagem como Luiz Inácio dá para ser. No entanto, é importante ressaltar que jamais o caráter minimamente político da obra é no sentido eleitoreiro. A princípio, inclusive, Lula é mostrado como alguém que, se não chega a ter repúdio pela política, não se interessa por ela. Esnoba, foge, teme, desconfia. É empurrado pelo irmão, Chico. O tempo todo advertido que “esse negócio de sindicato não presta”.
Após a morte da esposa é que Lula, no filme, adquire outro tom. Outra postura. Ante a política e todo o resto. Ali ele quebra o mundo da infância, a timidez, o conforto. Assume a liderança do sindicato, “pra ocupar a cabeça”. A obra é nítida em mostrar que Lula entra na política pelo escapismo. Com o objetivo inicial de superar uma perda. O que, em tese, pode soar como algo não muito positivo para o público. Assim como a acusação de que Barreto mostra Lula como “um herói sem falhas” não encontra razão. Sim, ele é tido como estudioso, adepto da não-violência, defensor da mãe, romântico, etc. Mas aparece sempre bebendo, fumando. Também xinga, se exalta. Tem comportamentos dúbios. O mínimo de humanidade está ali.
Goste-se ou não de Lula, o presidente, há que se admitir que ele nunca precisou de filme algum para vencer dois mandatos e ter o nível de popularidade altíssimo e constante. Para não dizer que a transferência de votos (para Dilma ou qualquer outro candidato) é ciência complexa, longe do simplismo que a maioria parece acreditar e que já se provou tremendamente falha no passado.
O filme termina com o salto histórico e as imagens reais da posse do primeiro mandato, em 2002, em Brasília. Nos braços do povo. Ali o melodrama épico encontra seu auge. Autêntico e cambaleante como todo o resto. Dentre todos os problemas, como filme, que “Lula, O Filho do Brasil” possui, a história é forte por si mesma. Errática e torta. Por isso, mais humana. A sensação do dever realizado se confunde com o que poderia ser e não foi. Daí a necessidade de assisti-lo como ser humano, não partidário, não ideológico. Algo que, no fim, vale a pena fazer.
Maurício Angelo