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Marx, Berman, capitalismo, democracia e modernidade

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Artigo publicado originalmente em 16.06.2005, no site Duplipensar. Época em que, como demonstra o texto, eu era tomado por um sentimento revolucionário.

Marx, Berman, capitalismo, democracia e modernidade

O conceito de democracia significa basicamente que o poder é outorgado pelo povo. Só que o simples fato de conceder não é garantia de controle do poder proporcionado. Segundo a lógica, os mandatários deste poder deveriam retribuir a confiança que lhes é dada, governando para o povo. Contudo, esta lógica é invertida e o resultado final quase sempre é um pastiche de populismo, neoliberalismo, capitalismo autofágico, egocentrismo, aristocracia e um conluio de interesses que raramente colocam a população em primeiro lugar. As definições de capitalismo e democracia, em separado, não se antagonizam, não revelam atrito entre elas. O fato de o capital ser o início, meio e fim do objetivo global não impede que o poder de cada Estado-Nação seja concedido por seu povo. O ato de votar é inócuo por si próprio. O problema são seus desdobramentos. Se considerarmos que grande parte da população não dispõe de recursos suficientes para uma vida plena, e por extensão, não fazem parte do núcleo do sistema, assumindo posição periférica de meros espíritos fornecedores de material humano para o metabolismo do capital, ou seja, uma existência torturante (sintomatizada na massacrante rotina de trabalho) que traz alienação quanto ao próprio meio em que estão inseridos e que a democracia é comumente utilizada como sinônimo de liberdade, aí sim temos um problema gigantesco que o establishment não é capaz de explicar e/ou solucionar, porque na verdade, simplesmente não pode. Estamos na ditadura do capital. Que se subdivide, principalmente, na ditadura do pensamento. Vivemos num mundo majoritariamente democrático, sim, mas carente de liberdade, tão carente que passou a desconhecer o sentido de tal palavra e se contentar com muito pouco para dá-la como presente. Tornamo-nos medíocres porque isto passou a fazer sentido, é um sintoma clássico do homem moderno.

Patologia expressa na dinâmica capitalista de Marx e Engels em seu Manifesto Comunista:

A burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção, e com eles todas as relações sociais. (…) Revolução ininterrupta da produção, contínua perturbação de todas as relações sociais, interminável incerteza e agitação, distinguem a era burguesa de todas as anteriores.

E continuam:

De um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e científicas de que nenhuma época anterior, na história da humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os horrores dos últimos tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário. O maquinário, dotado do maravilhoso poder de amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, só faz, como se observa, sacrificá-lo e sobrecarregá-lo. As mais avançadas fontes de saúde, graças a uma misteriosa distorção, tornaram-se fontes de penúria. As conquistas da arte parecem ter sido conseguidas com a perda do caráter. Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar de vida intelectual às forças materiais, estupidificando a vida humana ao nível da força material.

O capitalismo eleva a democracia, mas apenas para obliterá-la. Evoca a noção de liberdade, mas não a pode manter. Dá conforto material a população, para em seguida, acorrentá-la. A época burguesa, sem precedentes em termos de evolução industrial, tecnológica, econômica, propagação cultural, a verdadeira criadora de um novo mundo, capaz de tantas transformações prodigiosas, criou, igualmente, em seu segundo ato, uma geração de empedernidos inanimados. Trouxe o complexo conceito materialista para o centro das atenções, relegou o desenvolvimento humano – em seu sentido mais pleno – para segunda instância. Por isso o materialismo dialético de Marx se faz necessário. A paradoxal sístole e diástole moderna, a introdução do niilismo no cotidiano, a brutal lógica do sistema capitalista destruiu não só com a verdadeira democracia (tal qual postulava Montesquieu) e a verdadeira liberdade, mas com todas as relações sócio-metabólicas que inescapavelmente construímos.

Procurou se apegar a nossa essência, impregnar nossa alma, fazer-nos escravos de nós mesmos, introduziu a indelével sensação de insignificância pessoal e absoluta impotência diante do grande nada em que vivemos. Criou uma horda infindável de seres massificados, sem personalidade, condicionados cegamente ao sistema que seguem. São estes seres que devemos libertar, destruindo a ilusão da democracia, construindo a realidade da revolução.

Ademais, é preciso lembrar, antes de prosseguirmos, que o capitalismo transformou todas as relações humanas, em todas as esferas existentes. E ao contrário do que nossa incompetente observação histórica nos diz – fruto de nosso egocentrismo mor – a era do capital não é onipresente. Como teve um início, terá um fim. É indubitavelmente o sistema mais poderoso, dinâmico e abrangente que já existiu, contudo, não passa de uma criação humana. Tal regime não está em nossa natureza, não é parte intrínseca da constituição societal e não há motivos para acreditar que seja.

Não apenas gosto de pensar, como também o termo é incrivelmente adequado, de que estamos na sobre-vida deste sistema. Ele já está morto, só não foi enterrado. A aniquilação deste cadáver deve ser nosso próximo objetivo. Um ótimo meio de fazê-lo é expor suas entranhas fétidas, para que o choque de sua repugnância natural desperte em seus elos adormecidos o inquietante sentimento revolucionário. Não utópico, mas palpável. Não alienado, mas fundamentado numa sólida base técnica e teórica. E saindo da inércia para a ação transformadora.

Por ser irracional e auto-destrutiva, sua lógica também o é. Por reduzir o homem a mero reprodutor de capital, acabamos por nos tornar apenas produtos. Não criamos, somos criados. Nosso desenvolvimento é condicionado pelas artimanhas do capitalismo. Seu maior trunfo é nos fazer crer que somos iguais a ele. Tentando convencer-nos de sua paternidade, para que nos enxerguemos nele e o adotemos como manifestação natural e necessária de nossa época.

Tudo, absolutamente tudo o que vivemos hoje poderia ser resumido desta forma: o império aparentemente inextinguível do poderio capitalista no mundo. Todo o resto é conseqüência: a indústria cultural, as manifestações midiáticas, o sistema político, econômico, social, bélico, a personalidade sacrificada de cada indivíduo. Tudo isto é um mal necessário à permanência do capitalismo, pois é disso que ele se alimenta e é disso que suas engrenagens se constituem.

Não existe democracia. Pois não é possível existir democracia na ditadura do capital. A primeira mentira que nos contam é que o poder é concedido por nós, uma tentativa barata de jogar a culpa no povo. Já que os governantes escolhidos são de responsabilidade popular, as conseqüências deste regime também o serão. Como o resultado nunca é o esperado, cria-se a ilusão de que na próxima eleição tudo será diferente. E continuamos a viver neste contínuo fluxo e refluxo de pseudo-esperança que nos é concedido. Apenas uma das artimanhas do sistema. Não há a possibilidade de mudança porque a raiz continua a mesma, o comprometimento idem e o deus mercado reina soberano sob o combalido planeta Terra. Como diria Marx: “O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Nosso tempo clama por insurreição. É a necessidade basal do renascimento humano. Iria além, diria que é vital expurgar toda experiência pré-estabelecida que temos, nos despir da casca asquerosa comum que se forma ao longo da vida. Somente nus, verdadeiramente livres, revestidos de isenção mental e da acuidade crítica é que teremos condições de reconstruir a sociedade em que vivemos.

Revolução lenta, dolorosa, recheada de derrotas parciais, momentos de puro desespero, vitórias paliativas, desencanto, revésses. Pensar historicamente é o primeiro passo. Ter a consciência pura e simples de que a verdadeira e efetiva revolução social durará séculos para acontecer torna nossa luta muito mais aprazível. Não devemos deixar que esta eterna mania de querer resultados rápidos emperre a transformação pessoal. Você não precisa ser comunista (até porque o conceito anda muito desgastado e perscrutar suas peculiaridades não cabe neste artigo) para vislumbrar um novo mundo se formando, para se sentir compelido a engajar-se nesta luta. O próprio capitalismo te empurra a isso, a própria civilização, em seu auge, ao atingir seu clímax, inserida no torpor insaciável de suas vísceras, cria a revolução. Recorro ao que diz Marshall Berman em sua obra “Tudo que é Sólido Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade”:


Nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos, para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma. (p. 94)

O capitalismo não teme crises, guerras, instabilidade. Porque como os últimos cinqüenta anos nos provam, é justamente dessas perturbações que ele retira matéria vital para continuar existindo. A sua notável capacidade em se renovar constantemente, e por extensão, solidificar-se e fortalecer-se, mesmo sob as mais duras crises, é o que o difere de todos os outros sistemas que vigoraram antes. Por isso ele nunca fica obsoleto, nunca exala um odor suficientemente desagradável para que seja definitivamente destruído. Mas, paradoxalmente, é ao nos espelharmos nesta característica do sistema que podemos extinguir sua dialética pseudo-indestrutível. A inquietação resultante de tal metabolismo, a forçosa sensação de renovação; é isto que precisamos absorver e é isso que causará sua ruína. Enquanto as constituições capitalísticas continuam renascendo indefinidamente, o homem moderno vê-se igualmente obrigado a se reestruturar, aprender, desenvolver-se, desapegar, evoluir.

O proletariado capta os meandros da burguesia, entretanto, apenas para continuar a sustentá-la. O capitalismo fomenta o desenvolvimento humano, mas instaura fronteiras cuidadosamente delineadas para ele. O faz não porque enxerga no autodesenvolvimento uma qualidade de vida melhor para seus subordinados e sim porque precisa de melhorias em sua máquina. Suga tudo que lhe interessa e reprime o resto (função exercida pela indústria cultural de Adorno, pelas convenções sociais, pela ditadura do pensamento citada aqui e num contexto “moderno”, até pelo superego freudiano), ao mesmo tempo em que cria revoluções, não se esquece de inventar mecanismos para que tais chamas sejam apaziguadas, o mínimo de liberdade e isenção concedidas são logo soterradas para não oferecem perigo. Todavia, o establishment não é suficientemente bem sucedido neste ponto para manter sua existência intacta e é justamente ao brincar com fogo que ele acaba se queimando.

O nivelamento rasteiro é outro mal necessário à sua permanência, embora saiba que não deve subestimar as capacidades humanas, ele fá-lo porque almeja, com esta mentira, nos renegar a subprodutos de sua linha de produção. São nestes atos falhos (um problema aterrorizantemente insolúvel para o capital) que encontramos a brecha perfeita para sua combustão. A eloqüência imensurável da impetuosidade burguesa acaba por voltar-se contra ela na tênue linha entre a dominação e a liberdade, a manutenção e a revolução, a massificação e a idiossincrasia, a necessidade e a potencialidade. Enquanto muitos permanecem cegos pela eficácia parcial da máquina, outros tantos renascem e se fazem livres. E isto (assim como sua derrocada póstuma) é incontrolável, já que o sistema não conseguiu atingir o “status” de “hermeticamente fechado”.

Marx já provou como as incessantes exigências transformativas burguesas, que precisam ser cada vez mais violentas, torturantes, desiguais, inumanas e irracionais (pois só assim seu capital pode ser sustentado) levarão à sua autodestruição iminente. Como dissemos, estamos na sobre-vida deste sistema (um dos poucos erros de Marx se referem á questão temporal). Em nossa época, não há a necessidade de ser “profeta do caos”, pois se o fizermos, seríamos apenas “profetas do acontecido”. O lodaçal caótico das constituições capitalísticas apresenta-se evidente a todos, fomos obrigados a aprender como se locomover nele, em seguida, a interpretá-lo, enfim chega o momento de o sobrepujar.

Marshall Berman, no supracitado livro, chega a uma conclusão interessante no término de seu capítulo sobre Marx:

Ele (Marx) sabia que o caminho para além das contradições teria de ser procurado através da modernidade, não fora dela. Ele sabia que precisamos começar do ponto onde estamos: psiquicamente nus, despidos de qualquer halo religioso, estético ou moral, e de véus sentimentais, devolvidos à nossa vontade e energia individuais, forçados a explorar aos demais e a nós mesmos para sobreviver; e mesmo assim, a despeito de tudo, reunidos pelas mesmas forças que nos separam, vagamente cônscios de tudo o que poderemos realizar juntos, prontos a nos distendermos na direção de novas possibilidades humanas, a desenvolver identidades e fronteiras comuns que podem ajudar-nos a manter-nos juntos, enquanto o selvagem ar moderno explode em calor e frio através de todos nós. (p. 125)

Toda a história foi composta por lutas. Conflitos de todas as naturezas, relativos a qualquer coisa existente, resultado de questões indissociáveis do ser humano. A que se apresenta neste artigo é a mais visceral da atualidade. Todos são bem vindos para se juntar nesta luta. Não há nada mais a perder, temos um mundo a ganhar.

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