Jonathan Franzen é reconhecido como um dos maiores escritores da contemporaneidade. Chegou lá através de obras como “As Correções” e “Liberdade”. Para Nicholas Dames, Franzen é expoente do que ele chama de “Geração Teoria”. Afirma:
No final dos anos 1990, a equação simples oferecida pela Teoria – o realismo é uma ferramenta da racionalidade capitalista, uma ferramenta do status quo; um produto, e não um artefato imaginativo – soava como um truísmo. Mas, quando um argumento torna-se truísmo, é bem provável que uma resposta a ele já se encontre a caminho. As correções forneceu uma versão incipiente dessa resposta. Não é difícil detectar o afeto subjacente pela Teoria no trecho em que Franzen descreve a liquidação radical, promovida por Chip. A Teoria ainda é uma presença constitutiva nesses romances; é evidente que são histórias sobre reificação, alienação e, particularmente, sobre o capitalismo tardio – um termo explorado de forma obsessiva, ainda que cuidadosa. Mas, ao menos para os estudantes, ex-estudantes e acadêmicos, em 2001 a Teoria já havia se tornado parte inseparável de suas vidas – algo que eles não precisavam justificar para ninguém, mas que ao mesmo tempo era vagamente revolucionário. Ela já não era mais uma chave para todas as coisas do mundo, mas meramente uma das coisas do mundo. É precisamente sobre essa banalização que Franzen reflete: ao virar rotina, a Teoria se transformou de objeto de medo, sátira ou veneração em um elemento ficcional. E o romance, especialmente o do tipo que se baseia no detalhamento social e nos destinos individuais (e, no caso de Franzen, no núcleo familiar burguês), estava louco para arrumar briga e tentar reconquistar seu prestígio obscurecido.
Lembrei desse ótimo artigo já no início que serve para contextualizar o trabalho de Jonathan. Recomendo também essa entrevista na Paris Review, sempre com seu nível altíssimo de qualidade. Em seu novo livro, Franzen explora algo que já tinha ficado muito claro: ele não gosta muito da internet. Em especial, das redes sociais. Algo que tem sido criticado por aí (aqui e aqui).
Em The Kraus Project: Essays by Karl Kraus, Franzen aborda um obscuro crítico austríaco que, segundo ele, pode ser considerado “pioneiro” na crítica sobre como a tecnologia pode impactar de modo negativo na produção artística em geral. A “máquina infernal” da citação que ilustra esse post seria, em última instância, a internet, representada pela tecnologia e o consumismo.
O que nos leva para esse longo artigo publicado na The Atlantic. Reunindo as suas observações e referências com o trabalho de Kraus, Franzen oferece um panorama da mídia e da web em nossos tempos de um jeito, digamos, “peculiar”. Kraus, afirma ele, oferece comentários ácidos sobre a imprensa em Vienna na virada do século 19 para o 20.
He particularly attacked a corrupt coupling of two things: that a small number of media magnates were getting extremely rich, and that the newspapers they owned kept reassuring their readers that society was becoming ever more democratic and advanced. More empowered, more enlightened, more communal. And it drove Kraus crazy, because he saw these naked profit-making enterprises masquerading as great equalizers—and succeeding, because people were addicted to them.
Quão familiar isto soa? O consumismo e a tecnologia, afirma Franzen, enquanto nos torna cada vez mais viciados e anestesiados, poderia quase que obliterar nossa capacidade de construir um pensamento relativamente crítico e, sua maior preocupação, acabar de vez com o romance. “Infinite Jest”, o clássico precoce de David Foster Wallace, seria um grande monumento na abordagem desse problema, proclama Franzen. “when I look at social media, it seems like a world that once had adults in it is being changed into the 8th grade junior-high cafeteria. When I look at Facebook, I see a video-poker room in Vegas”, provoca.
Por vezes, Franzen soa como aquele velho rabugento que, bem, gosta de algumas comodidades da internet (o email, por exemplo), mas abomina essa fixação dos jovens em, “só porque tem a possibilidade de fazer algo, acabam fazendo”. A “máquina infernal” de Kraus nada mais é que o capitalismo em sua manifestação mais recente, poderosa e veloz. Na ânsia de processar tudo e todos, nas ferramentas que oferece, de como nos escraviza e como acaba, inevitavelmente, sendo usado também de forma burra e/ou limitadora.
Duas citações são fundamentais aqui. Delimita Franzen:
Kraus was very suspicious of the notion of progress, the idea that things are just getting better and better. In 1912, when he was writing the essays that are in my new book, people were very optimistic about what science was going to do for the world. Everyone was becoming enlightened in a straightforward scientific sense, politics was liberalizing, and the world was going to be a much, much better place—the story went. Well, two years later the most horrible war in the history of humankind broke out, and was followed by an even worse war 25 years after that. Kraus was right about something: He was right to distrust the people who were telling us that technology was going to serve humanity and make things better and better. In the context of the crazy techno-utopianism and crazy techno-boosterism we’re now living through, it seems worth taking a look at a writer who was there at the birth of modern media and tech, being suspicious of the language of the people who were talking about how everything is getting better.
Não poderia concordar mais. Já se foi exaustivamente tratado do quanto a ideia de “desenvolvimento” e “evolução” da humanidade, no seu fetiche pelo “crescimento” constante é algo perigoso, perseguido à todo custo pelos países, não importa como e porquê. Ideia sempre alimentada pela mídia, que abraça a ideia de “crescimento” como uma fórmula mágica, como dados que automaticamente nos dizem que, se crescemos (o PIB, por exemplo), estamos melhorando, estamos “avançando” para um país melhor.
De todas as coisas boas que a internet oferece, lembra Franzen, como ferramenta para pesquisa, na facilidade para fazer compras, no trabalho em conjunto, no compartilhamento de paixões ou de situações difíceis com outras pessoas que passam pelo mesmo, o problema está em compartilhar tudo e na noção de que tudo é relevante, tudo é sensacional. O refúgio e a solidão, lembra ele, é um dos pilares da boa literatura:
Good novels aren’t written by committee. Good novels aren’t collaborated on. Good novels are produced by people who voluntarily isolate themselves, and go deep, and report from the depths on what they find. They do put what they find in a form that’s communally accessible, communally shareable, but not at the production end. What makes a good novel, apart from the skill of the writer, is how true it is to the individual subjectivity. People talk about “finding your voice”: Well, that’s what it is. You’re finding your own individual voice, not a group voice.
É preciso colocar fronteiras bem delimitadas, Franzen afirma, na medida em que “o progresso tecnológico” pode realmente fazer mal para o espírito. E não é difícil compartilharmos desse sentimento de Franzen, por vezes. Não é difícil nos sentirmos sugados por uma certa máquina, palpável ou não. Por uma necessidade besta que somos quase incapazes de identificar de onde vem. Chegamos em um tempo em que precisamos dizer “não” para as coisas. Dizer não para muitas das ofertas que a vida tecnológica nos traz. Para Franzen, a internet está acabando com o jornalismo:
I mean, the Internet has almost destroyed journalism! How can you have a functioning, complicated democracy of 300 million people without professional journalists? The boosters are always saying, well you can crowdsource it, you can leak it, you can take pictures with your iPhone. Bullshit. You can’t crowdsource working the Capitol beat for 20 years. We need to think critically about the consequences of our machines. We need to learn how to say no, and how to support the vital social services, like professional journalism, that we’re destroying.
Faz sentido, até certo ponto, já que todos tentam, exaustivamente, achar um modelo viável, sustentável, rentável. Ou vários deles. Tentar se tornar uma pessoa e não apenas um mero membro da multidão, em suma, desenvolver o seu ego ao máximo – já diria Hermann Hesse que aí está o verdadeiro caminho para o desenvolvimento. Como escritor, Franzen afirma, preservar a privacidade e a consciência interior é fundamental, o que fica bastante comprometido se gastamos boa parte do tempo sendo um alto-falante para os outros. É preciso prestar atenção em coisas que as pessoas não estão prestando.
No mundo de hoje, isso fica cada vez mais difícil. E cada vez mais fácil o escritor, o jornalista, o produtor de conteúdo e, por fim, a própria personalidade, nossa própria ideia do “ser” ficar extremamente abalada. Eis um problema que se manifesta nas mais diversas formas em todos os cantos possíveis. Novamente, eu não poderia concordar mais.
Bacana o seu post, Maurício! Ainda não li o volume do Kraus que o Franzen lançou, mas acho que algumas considerações podem ser feitas aqui. Primeiro, Kraus não foi um “crítico obscuro”, mas uma das figuras públicas mais amadas e odiadas da Viena imperial e do entreguerras. Kraus é obscuro na América ignorante e populista de Franzen, também por ser um escritor resistente à tradução. De qualquer modo, dou-lhe parabéns por querer apresentar Kraus a uma nova geração de leitores.
A crítica krausiana ao jornalismo de seu tempo não foi somente ideológica: foi uma crítica filosófica que guarda pontos de contato com a própria analítica de Wittgenstein, que admirava Kraus. Isto porque o método de Kraus é, para utilizar a expressão maravilhosa de Otto Maria Carpeaux (que, salvo engano, conheceu-o pessoalmente), uma “filologia da moral”; em seus inúmeros artigos, ele selecionava trechos de reportagens jornalísticas contemporâneas, e dissecava os estilos dos autores, mostrando como eles tratavam de empregar joguetes linguísticos, truques lógicos, e manipulavam a sintaxe para gerar ambiguidades onde elas precisariam ser evitadas, e vice-versa. Em suma, Kraus percebeu que o jornalismo (leia-se: mídia) tinha um poder quase demoníaco sobre o real: conseguia produzir e ocultar fatos a partir de uma técnica que o Kraus chamou, caracteristica e apropriadamente, de Schwarzmagie, “magia negra”. Não se trata somente portanto de um ultraje moral em relação aos magnatas 171s, embora Kraus de fato o sentisse. Quando perguntado sobre o que de mais valioso havia aprendido com Kraus, Elias Canetti disse: a responsabilidade. Isso se reflete no título mesmo de um dos grandes livros de Canetti, “A consciência das palavras”.
Por essa razão ele foi continuamente ostracizado pelo establishment midiático de seu tempo, e passou décadas editando o próprio veículo, Die Fackel (A Tocha), completamente sozinho. Em uma análise superficial poderíamos até dizer que Kraus tenha sido o primeiro “blogueiro”, o primeiro grande independente dessa fase do jornalismo que nós vivemos hoje. Será que ele teria a mesma opinião de Franzen?
Há um aforismo dele que eu gosto muito: “O dano causado à língua alemã em um dia de publicações jornalísticas é maior do que os benefícios promovidos pela obra inteira de Goethe”.
A visão de Franzen sobre o papel do jornalismo na consolidação da democracia é um tanto quanto americana, e seu medo de que o romance vá desaparecer na era da tecnologia, um tanto quanto histérico. Krausianamente falando, o jornalismo é um dos agentes da des-democratização da América. Acho que isso está mais do que óbvio hoje, quando a mídia é capaz de botar um candidato à presidência no poder e administrar as polaridades ideológicas da mais populosa nação multi-cultural do mundo hoje.
Eu também acho que o desrespeito, a indiferença à verdade, que aparece no jornalismo e no otimismo das ideologias progressistas, têm também um étimo na própria arte do romance, que se assemelha à realidade por necessidade estrutural, e não moral. Eu discordo completamente de que um grande romance deva refletir a “subjetividade individual” do autor (também vai refletir a subjetividade do quê, do coletivo?). Acho que o leitor está mais interessado em ver a si próprio refletido na obra de outro do que em ver a expressão autêntica (ou não) do eu do outro. Na verdade, as redes sociais já fazem precisamente isso.
Portanto, só quis registrar meu ceticismo em relação ao Franzen. Embora eu compreenda, é ÓBVIO, a frustração com o uso da tecnologia nos dias de hoje. Mas o fato é que ele ainda irá faturar muita grana vendendo seus livros para o Kindle. Você não acha que há um problema nesse tipo de posicionamento dele? O cara quer ser um “Autor”, e isso só pode acontecer hoje com o suporte da mídia, do mercado e das tecnologias de comunicação, tudo isso dentro do contexto da classe média, que acredita em coisas como democracia e papel democrático da literatura. É óbvio que a literatura não “precisa” disso para existir. Ela nasceu sem isso e deverá sobreviver sem isso. Mas aí é uma questão de nos perguntarmos se o Franzen consegue conceber viver sem ser o Autor que ele deseja ser (voltamos à tal da subjetividade individual!). O romance não vai acabar, mas o Romance do Autor talvez vá. O Autor está desesperado para fazer a sua “epoch-making publication”, sem perceber que não há época a ser feita, porque estamos enfiados em um processo de hiper-aceleração que não dá a ninguém tempo para compreender contextos, relações, problemas. Amanhã o sucessor do Franzen aparecerá e o grande livro “epoch-making” de Franzen não fará parte da História, mas de um gigantesco e solitário Arquivo. Lembrarão dele dependendo de quantos “likes” ele receber no Facebook… o que isso tem a ver com literatura propriamente eu não faço idéia.
E é justamente a essa problemática complexa e enorme que eu quero ver um escritor ser capaz de dar forma.
De outro modo, fica parecendo discurso conservador para leitores americanos de classe média, faixa etária variando entre 40 de 55 anos, cujos filhos passam mais tempo no Facebook do que eles gostariam: pode até estar completamente certo, mas não é necessariamente boa literatura.
Brilhante comentário, Nelson, como sempre. Engraçado que eu resgatei uns livros de Orwell e estava lendo uma crítica dele publicada na segunda metade da década de 30 sobre a morte do romance, a sua banalização, o jornalismo de resenha, etc. hehe. Pretendo escrever sobre.
Tu devia ter um blog. Mas sei que tens coisas mais importantes pra fazer 🙂