Em maio de 2007 estudantes paulistas da maior universidade do país decidiram fazer uma greve, que acabou se espalhando para outros setores da USP e também para vários estados do Brasil, contra uma medida do governador de São Paulo, José Serra, que previa a criação de uma secretaria superior que se tornaria a decisão final à tudo que concerne ao ambiente universitário de certas instituições, “administrando” estes locais. Com isso, o medo era que se perdesse a autonomia e o controle ficasse na mão de interesses escusos, de gente que, além de tudo, não estaria diretamente envolvida no que ocorreu dentro dos campus.
A greve, que durou mais de um mês, acabou bem sucedida pois fez que Serra recuasse em seus objetivos preliminares e fizesse várias concessões que atenderam às reinvidicações feitas. A mídia brasileira, em sua maioria, fez uma cobertura parcial e duvidosa do movimento, centrando-se nos pontos negativos da greve e de tom claramente reacionário, com algumas honrosas exceções, como programas de debate na TV que trouxeram várias partes para serem ouvidas e a Carta Capital.
Entrevista – Daniel M. Delfino
30 anos, formado em sociologia, cursando o oitavo período de filosofia da USP, Daniel Delfino, marxista assumido, sempre esteve envolvido em movimentos sociais e grupos de resistência: é um pensador que sai da teoria e vai para as ruas, demonstrar na prática o que seus escritos denunciam e os objetivos que apregoa. “”Não se revoltarão enquanto não tiverem consciência e não terão consciência enquanto não se revoltarem”, é com esta passagem de Orwell em mente que Delfino produz seus escritos. Uma conversa franca com quem esteve por dentro do movimento.
– Quais os antecedentes históricos da ocupação da USP realizada este ano?
Os antecedentes mais gerais do movimento que teve seu foco na ocupação da reitoria da USP estão na política geral de sucateamento do ensino público em curso no Brasil. As Universidades públicas estão sendo asfixiadas por cortes de verbas que impossibilitam a contratação de professores e servidores, submetem esses profissionais ao arrocho salarial, precarizam as condições de moradia e assistência estudantil, rebaixam as próprias condições de ensino, pesquisa e extensão da universidade, seus laboratórios, bibliotecas, etc. Ao mesmo tempo, os empresários da educação estão sendo premiados com a compra de vagas ociosas na rede privada com dinheiro público por meio de programas de “inclusão social” como o PROUNI. Esse conjunto de medidas configura uma concepção de educação e de serviços públicos em geral em que o “mercado” deve ser a instância capaz de atender às necessidades da sociedade, ao passo em que o Estado se omite de sua tarefa de, através das Universidades, projetar estrategicamente o futuro da sociedade, sua infra-estrutura científica e tecnológica, sua formação cultural, a capacidade crítica de seus cidadãos, etc.
Esse processo geral de sucateamento da educação pública está em curso no Brasil há mais de uma década e as universidades estaduais paulistas não são exceção a ele. O movimento estudantil já estava atento a essas medidas e tentava combatê-lo. A última grande greve na USP aconteceu em 2002 reivindicando justamente a contratação de professores para repor as vagas daqueles que se aposentavam.
– Na visão de alguém que esteve envolvido diretamente no ocorrido, como os estudantes se organizaram para fazer suas reinvidicações? A direção da universidade foi flexível e aberta para a negociação?
O processo de organização tradicional são as assembléias por curso, por unidade e a assembléia geral dos estudantes. As assembléias votam uma pauta de reivindicações e elegem uma comissão de negociação encarregada de discutir com as autoridades. A reitora da USP, entretanto, se recusou a receber a comissão eleita pelos estudantes.
Uma vez que a direção máxima da USP se recusou a defender a universidade contra os ataques do governo, os estudantes legitimamente tomaram essa defesa nas próprias mãos e ocuparam a reitoria. A reitora “fugiu” da USP e um número significativo de estudantes permaneceu acampado no prédio da administração por 51 dias. A partir da ocupação, desencadeou-se a greve dos estudantes, professores e funcionários. O governo ameaçou usar a tropa de choque para desocupar a reitoria pela força, mas os estudantes decidiram ficar. A tropa de choque permaneceu fora do campus, e a partir daí o movimento se fortaleceu. A reitora foi forçada a negociar a pauta dos estudantes para encontrar uma saída para o impasse.
– O que ocorria nas assembléias? Foi algo organizado e uno no sentido de uma direção comum das diversas partes envolvidas ou houveram focos de discordância, pelegos e interesses escusos reunidos?
No auge do movimento as assembléias eram massivas e representativas. Havia sempre algo em torno de 2 ou 3 mil estudantes, sendo que o segmento mais numeroso era composto pelos estudantes de ciências humanas. A direção “oficial” das atividades caberia ao DCE (Diretório Central dos Estudantes), entidade hierarquicamente superior aos Centros Acadêmicos de cada curso. Entretanto, os partidos políticos que dirigem o DCE (PT, PCdoB e MR8-PMDB) estavam contra a luta e tentavam encaminhar propostas contrárias à greve e à ocupação. Acabaram, portanto, sendo desconhecidos pelo conjunto dos estudantes, que deu continuidade ao movimento à revelia de sua direção oficial. Foram praticamente expulsos das assembléias.
O movimento dos estudantes da USP se estruturou de forma “clandestina”. Na ausência do DCE e dos CAs, os estudantes na ocupação se organizaram em comissões encarregadas de tarefas específicas (segurança, limpeza, alimentação, comunicação, etc), descentralizadas, horizontais, autônomas e auto-geridas. A ausência de uma liderança oficial dificultou o trabalho da repressão. Por outro lado, esse modelo de organização foi resultado de uma improvisação e se manteve sempre funcionando de maneira problemática.
Ao longo do processo, identificaram-se diversas divergências táticas e estratégicas entre os representantes de diferentes linhas políticas nele envolvidos. Havia as linhas particulares dos diferentes agrupamentos políticos engajados na ocupação e na greve, como PSOL, PSTU, PCO, LER, etc., e a linha dos estudantes “independentes”, não ligados a nenhum partido, os anarquistas, etc. Esse segmento independente teve bastante peso nas atividades do movimento e da ocupação em particular, mas muitas vezes desconhecia resoluções de assembléia, descumpria tarefas, descuidava das atividades, esvaziava as comissões, etc. A continuidade da greve e da ocupação em cada assembléia era a resultante do debate entre essas correntes. E o debate nem sempre era cordial, mas pelo contrário, expunha disputas que iam além da divergência política e resvalavam na rivalidade física entre as diversas correntes (vício recorrente da esquerda brasileira). No final do movimento, cada organização acusava a outra de haver errado na condução da luta, de haver feito reivindicações irreais, de haver recuado quando ainda não era a hora, de haver traído, etc.
– O que você identifica como os principais problemas encontrados durante o episódio e quais frutos ele gerou? Foi válido, num todo?
O principal problema do movimento é a despolitização geral e a falta de participação do conjunto dos estudantes. Nem todos os cursos da USP aderiram à greve e nem todos apoiavam a ocupação. O setor engajado no movimento foi sempre minoritário. A diferença em relação aos anos anteriores é que essa minoria constituía uma massa suficientemente grande para dar vida ao movimento. Faltou, porém, capacidade de articulação política das lideranças estudantis entre si e de maior integração com o conjunto dos estudantes.
Apesar de todas essas debilidades, o movimento teve força suficiente para fazer o governador recuar. Os decretos foram “reinterpretados” e acabaram não sendo plenamente implantados. Nesse sentido, o movimento obteve uma vitória extraordinária. A pauta de reivindicações não foi atendida no seu conjunto e ficaram várias questões pendentes, mas no geral os estudantes saíram fortalecidos.
O saldo mais importante do movimento foi o exemplo organizativo legado aos estudantes de outras universidades.
A “moda” da ocupação de reitorias se espalhou pelas universidades do país naquele período e desencadeou uma série de processos de luta direta como há muito tempo não se via. Esse processo teve reflexos tardios que se prolongaram até recentemente, com episódios semelhantes na Fundação Santo André (entre setembro e outubro) e na PUC (agora em novembro). O movimento estudantil saiu nacionalmente fortalecido e rompeu a estagnação em que a UNE o havia deixado. Nesse sentido, o saldo foi extremamente positivo.
– Como você analisa a cobertura da mídia sobre o processo? Ela foi isenta?
A mídia exercitou uma aparência de imparcialidade, pois chegou a mostrar a justeza de algumas das reivindicações dos estudantes e criticar a ameaça de Serra de usar a tropa de choque no campus, coisa que aconteceu pela última vez na época da ditadura militar (1968). Essa tentativa de parecer imparcial se justifica também pelo fato de que a maioria dos estudantes da USP (e especificamente os que permaneciam na ocupação) ser de extração social pequeno-burguesa e burguesa, camadas que constituem também o público consumidor dos grandes jornais e revistas (os trabalhadores que freqüentam a USP, no geral uma minoria e geralmente em cursos noturnos, por mais que desejassem apoiar e participar do movimento, evidentemente não podiam ficar acampados na reitoria, nem infelizmente participar de assembléias prolixas que se arrastavam meia-noite adentro).
Em função dessa extração social, os estudantes não podiam ser atacados diretamente. Tinham que ser desgastados indiretamente. Foram expostos como “rebeldes sem causa”, nostálgicos de uma época que não viveram, “revolucionários de araque”, pálidos reflexos de 1968, etc. As debilidades, incoerências, inexperiência, das organizações de esquerda foram fartamente ridicularizadas pelos articulistas de direita.
O que a mídia jamais aceitou, porém, foi o método de luta. A via da luta direta (ocupação) era tratada como atividade criminosa, na mesma linha com a qual se condenam as ações dos sem-terra ou sem-teto. O respeito à propriedade é o valor fundamental que pauta a mídia. Toda ação com conteúdo de transgressão, invasão, ocupação, expropriação, precisa ser devidamente demonizada, descaracterizada e combatida. Mesmo que esse método tenha sido o único que restou.
– Você considera que o movimento estudantil no Brasil ainda é forte e atuante? Se sim, quais as principais frentes de luta hoje em dia? E, se não, o que ele perdeu ao longo do tempo e quais seriam alguns dos caminhos para se reestruturar?
O movimento estudantil foi fortíssimo nos anos 1960 (até ser reprimido pela ditadura) e 1980 (colaborando para o fim da ditadura) e atualmente vive uma fase embrionária de retomada, cujo principal marco foram os acontecimentos da USP em 2007. A ocupação da reitoria durou 51 dias e acabou se constituindo no principal foco de atenção; mas no geral o movimento era muito mais amplo e mais rico do que o fato de que um grupo de estudantes permaneceu acampado na reitoria. Esse movimento se constituiu de assembléias massivas, de piquetes diários para garantir a greve e a paralisação das aulas, de atividades de greve, como palestras, debates, apresentações culturais; e de atividades exteriores à universidade, como as passeatas. Tudo isso consumiu o esforço de uma ampla camada de ativistas, cada um com maior ou menor grau de engajamento.
Esses ativistas, muitos dos quais recém-despertaram para a luta política, estão defrontados com a duríssima tarefa de enfrentar os ataques à educação superior, que prosseguem. Depois do PROUNI, é a vez do REUNI, que generaliza para o conjunto das universidades federais uma série de medidas de arrocho financeiro e perda de autonomia semelhantes àquelas que desabaram sobre a USP. Para fazer frente a esse processo de sucateamento o movimento carece de uma urgente reestruturação, que passa pela superação das direções tradicionais (como a UNE, que repete no plano nacional a postura fatídica do malfadado DCE da USP).
A superação dessa direção é uma tarefa para a qual será decisiva a atuação da vanguarda organizada. No interior da camada mais ampla de ativistas localizam-se os militantes das correntes políticas, que são geralmente os dirigentes dos CAs de cada curso. Caberia a esse núcleo militante a tarefa de integrar o conjunto dos estudantes ao movimento. Essa tarefa deveria ser uma prática cotidiana dos militantes e das entidades estudantis, mas já não é realizada há muito tempo. Desse modo, as entidades e as correntes políticas que nelas atuam acabam aparecendo apenas na época das greves (nas universidades públicas a greve praticamente faz parte do currículo) e das eleições dos dirigentes.
A quase inoperância prática das entidades estudantis é um reflexo das debilidades acumuladas das organizações da esquerda. De modo geral, as organizações se perdem em discussões bizantinas nos conventículos “revolucionários” e não desenvolvem trabalho de base, não dialogam com a massa dos estudantes na sala de aula, expressam-se numa linguagem à parte, desconhecem as questões cotidianas dos cursos. As mediações pelas quais as questões imediatas poderiam ser relacionadas às questões gerais das universidades e da sociedade são ignoradas e com isso se perde a possibilidade de mobilizar um número maior de estudantes. As entidades estudantis aparecem já com uma pauta pronta, que parece estranha à massa dos estudantes, que por não se sentirem representados por aquele discurso, afastam-se do movimento.
De modo geral, é saudável que existam diversas posições diferentes contribuindo na construção do movimento. O problema é que boa parte das organizações da esquerda está mais preocupada em impor sua própria linha política do que em fortalecer o movimento no seu conjunto. As propostas das diferentes organizações são apresentadas e defendidas pelos respectivos militantes como se sua aprovação fosse questão de vida ou morte, mesmo quando tais propostas nem sequer manifestam diferenças substanciais, como acontece muitas vezes. O que importa para cada organização é aparecer mais que a outra e fazer uso do microfone mais vezes nas assembléias. Consolidou-se assim no senso comum da maioria dos estudantes uma certa consciência “anti-partido”, hostis às organizações políticas, materializada no segmento dos estudantes “independentes”. De acordo com essa forma de consciência, toda e qualquer organização política ou partido somente se forma em função de interesses escusos e como tal precisa ser combatida.
A reestruturação do movimento estudantil exigirá portanto uma revolução metodológica na atuação dos militantes e dirigentes das entidades, de modo a readquirir a confiança das bases, superar o pensamento anti-partido e incorporar a massa mais ampla dos estudantes ao movimento.
– Numa abertura mais ampla, enxerga a sociedade brasileira cônscia de seus problemas, empenhada no debate político e preparada para efetuar uma mudança no processo histórico? O que se anuncia no horizonte e, neste momento ímpar da história nacional – onde as forças políticas se aglutinam praticamente numa única via – como a luta de classes atua e qual o nosso papel nisto tudo?
Numa visão mais ampla a sociedade está num compasso de espera, mas com sombras de inquietação. Cada classe e setor de classe vê as coisas de uma maneira e reage de modo particular. A burguesia segue faturando alto no governo Lula, especialmente os segmentos dos banqueiros e do agronegócio. Entretanto, os partidos tradicionais da direita procedem uma tentativa de “despetização” do Estado, tentando arrancar os neopelegos do PT das sinecuras onde foram alojados por Lula, através dos escândalos de corrupção sistematicamente jogados ao ventilador. Enquanto isso, no dia a dia das lutas sociais, a repressão se abate sobre os ativistas da classe trabalhadora, com mortes, criminalização, prisões, perseguição, demissões. Os diversos segmentos da classe trabalhadora mostram-se ainda incapazes de uma ação coordenada contra essa ofensiva da burguesia.
Parte dos setores organizados da classe trabalhadora, como servidores públicos, professores, metalúrgicos, bancários, que (junto com a pequena-burguesia e a intelectualidade) constituíam a sustentação eleitoral e política do PT, desmobilizaram-se ao longo do governo Lula, seja por decepção com os rumos que foram tomados e desencanto com a luta; seja por adesão ao projeto de administração “em fogo brando” do capitalismo periférico brasileiro e suas misérias.
Um dos métodos de administração consiste justamente na cooptação dos setores desorganizados da classe, os pobres da cidade e do campo, que via bolsa-esmola, tornam-se materialmente dependentes e ideologicamente anestesiados pelo assistencialismo, portanto incapazes de reagir e lutar contra a miséria em que estacionaram.
Por outro lado, parte dos setores organizados partiu para a luta. E na luta, defrontaram-se exatamente com o PT como seu maior obstáculo. As entidades “oficiais” do movimento sindical e popular (CUT, UNE, MST, pastorais sociais da Igreja) são dirigidas por integrantes do PT e estão mais preocupadas em defender o governo Lula do que em encaminhar de fato lutas de interesse da classe trabalhadora (pois essas lutas necessariamente teriam que se chocar contra Lula). Nesse caso, as lutas (das quais o movimento dos estudantes da USP é um reflexo) tiveram que ser encaminhadas por entidades paralelas, improvisadas, “clandestinas” ou ainda embrionárias, como a Conlutas (Coordenação Nacional de Lutas).
Essa reorganização embrionária da classe trabalhadora é ainda incipiente diante da imensa tarefa de enfrentar aquele projeto de gestão do capitalismo periférico, sustentado por um amplo e coeso bloco de forças sociais (bloco que além da burguesia, seus partidos, seus gerentes de plantão no governo Lula e no PT, conta com o apoio maciço da grande mídia). Entretanto dada a própria natureza desse capitalismo periférico, a sua gestão tende a se tornar extremamente problemática, tão logo se esgote o atual ciclo periódico de expansão da economia capitalista mundial (ciclo cujo início coincide com o do próprio governo Lula) e tenha início o próximo ciclo de recessão. Nesse momento, os ataques da burguesia e do governo deixarão de ser levados “em fogo brando” e serão desencadeados celeremente com toda sua virulência.
A tarefa que se coloca para enfrentar esses ataques é fortalecer as novas instâncias paralelas, improvisadas e embrionárias de articulação da classe trabalhadora, agregar a elas os setores ainda dispersos e confusos da classe, furar o bloqueio da mídia, do senso comum, das direções neopelegas e difundir o mais amplamente possível a consciência da necessidade de se organizar e lutar.