Foto: Bruno Domingos/Reuters/The Big Picture
Situações extremas acabam revelando o pensamento mais íntimo e sincero das pessoas. Neste contexto, os recentes acontecimentos no Rio de Janeiro serviram para revelar a mentalidade canhestra e de barbárie de muita gente. Defesas eloquentes da higienização social, o massacre puro e simples, o mais perigoso e rasteiro senso comum possível. Pretexto para um sem fim de atrocidades.
A invasão autoritária do Complexo do Alemão pelas forças policiais do estado do Rio de Janeiro, com apoio dos militares, é sintomática. “Vamos revistar todas as casas e o morador que se negar a nos receber é mais suspeito ainda, porque foram eles mesmos que pediram uma resposta nossa”. Foi a frase que ouvi de um comandante da polícia tentando justificar a invasão. Uma “lógica” asquerosa, distorcida, que destrói a constituição, as leis, o bom senso e séculos de luta pelo respeito ao ser humano.
É inadmissível que algo desse tipo aconteça sem o menor embate da mídia e da sociedade. Mais: pra mim, por mais que seja uma questão do estado do Rio, o presidente Lula (ou quem lá estivesse), como chefe maior da nação e pelo apoio concedido, deveria ser contra. E se desrespeitado, deveria deixar bem claro sua postura. Nada disso aconteceu. Tudo é feito com a chancela dos representantes políticos.
Parece que a ânsia de dar uma resposta para a população passa por cima de todo o arcabouço legislativo e do respeito que deveríamos ter. Para atender a vontade do “bandido bom é bandido morto” permitimos que o estado cometa crimes. E aplaudimos isto. Simples assim. Já disse aqui e repito: a discussão sobre segurança pública tem uma capacidade única de cair em soluções fáceis, rasas, opiniões grosseiras, absurdos e clichês fartos. Vide o que o twitter proporcionou nos últimos dias. É um desfile de descalabros. Alimentado pela mídia, em seu show costumeiro, prestando um desserviço à polícia e ao povo, contaminando com seu discurso banal, seu mundo de Polyanna, seu ufanismo barato.
O “consenso” parece ser que a “solução” é invadir, aniquilar, ocupar. Se os direitos de cidadãos forem violados por causa disso, se civis morrerem no confronto, é apenas um “mal necessário”. Não é de se espantar que o desejo da classe média seja o uso da violência irrestrita para combater o tráfico e outras mazelas mais. Muitos deles, inclusive, pouco se importariam se as favelas fossem literalmente destruídas. Tudo que é distante da realidade de alguém – por mais que o tráfico e a violência estejam integradas totalmente aos grandes centros urbanos – tem a separação necessária para acontecer. É legitimado. Seria aceitável que a polícia decidisse revistar todas as casas de um bairro de classe média? Não, porque não há justificativa pra isso. Da mesma maneira que não há no Alemão. E mesmo com a comparação forçada, sabemos bem que encontrar drogas e armas ilegais em bairros fora das favelas não seria nada difícil.
Eu já morei por alguns anos no Vista Alegre, em Belo Horizonte, que fica entre o Cabana e o Nova Cintra, duas das maiores favelas da capital mineira. O Vista Alegre é, por si, uma favela. Tenho familiares e amigos que moram lá até hoje. Em caso semelhante, seria perfeitamente possível que eu tivesse minha casa revistada e violada, bem como da minha família e amigos, pela zona em que se encontra o bairro. Falo isso não para me colocar como vítima, mas apenas para ilustrar que o abuso é muito mais próximo e real do que pode parecer. E certas coisas, infelizmente, só sentimos quando podemos nos conectar de alguma forma com aquilo. Quando nos atinge direta ou indiretamente.
Sabemos muito bem que a “revista” da polícia não é feita de forma “educada” e “respeitosa”. Como o relato deste homem, roubado e com a casa destruída. Não posso afirmar que é 100% verdade mas tampouco questionar o seu caráter. E a experiência diz que coisas assim acontecem, mesmo. É legitimo agredir e cometer todo tipo de abuso possível para pegar meia dúzia de traficantes e apreender grandes quantidades de droga? Será mesmo que o Alemão foi “devolvido” aos seus moradores? Até quando? Até que ponto a situação foi resolvida?
É de uma ilusão grosseira cair em contos de fada. A mídia alardear que “apenas em 2 horas a polícia devolveu aos moradores a região que durante décadas foi tomada pelo tráfico”, como os apresentadores do Jornal Hoje fizeram. Aceitamos tudo com uma voracidade irracional iludidos com a promessa do “bem maior”. Estamos de volta à barbárie. Como diz uma passagem de Rousseau de 1761 que já citei aqui “tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo (…)”.
Ao aplaudir o uso irrestrito da força abandonamos toda conquista que levamos muito tempo para alcançar. Apoiamos crimes, massacres, torturas, espetáculos de catarse irracional coletiva. E com muito pouco em troca. Não há nada maior a se temer do que o autoritarismo do ser humano. Ao que parece, não aprendemos nada com a história.