Minha relação com o som, talvez, seja a coisa mais importante e vital que existe. [Este é o meu hiperbolismo falando alto]. Mas um hiperbolismo nem tão exagerado assim. Minha mãe diz que cantou para mim desde os primeiros dias de vida. Que contava histórias quando ainda estava no ventre. E, não só estudos científicos comprovam o quanto isto influencia positivamente e tem influência sobre um bebê, como eu acredito e sinto isto, intensamente. Minha vida, sem som, não existiria. E não é só porque “gosto muito” – eufemismo – de música. Não falo somente de notas musicais, de estruturas, arranjos e harmonias diferentes que suscitam as mais variadas sensações, gostos e impressões.
Talvez o parágrafo mais feliz que eu tenha escrito foi este, quando tentei “resumir”, brevemente, o que “música” significa:
Música, para mim, é extensão do corpo, dos sentidos, da mente, das angústias, desejos, aspirações. É inquieta por natureza. É uma linguagem ampla, poderosa e universal. É puramente matemática ao mesmo tempo que abstrata. Rígida porém livre. Organizada em sua estrutura apenas para ser decomposta e digerida por cada um de maneira peculiar. Mexe com o racional e as emoções. O cérebro e a alma. Traz infindas possibilidades, deixando sempre um impacto por onde passa. É nossa face mais metódica, mas também indefinível e ilimitada. É D’us, em sua essência. É a maior força que tenho notícia.
Este aforismo exemplifica, em parte, aquilo que é a essência dessa relação tão íntima, bem como do modo como enxergo, hoje, o “trabalho” de “crítico”. É absurdo, inimaginável e incompreensível, para Maurício Gomes Angelo, ficar limitado a um único estilo. Ter, em seu cardápio, seus momentos, sua vida, tipos limitados de manifestação sonora. Se criamos rótulos, não só por uma necessidade humana de compreensão, organização, manipulação e parâmetros mínimos de referências, bem como para a indústria, é apenas para nos guiar, para “dar um nome” aquilo.
Há tanta coisa para ser explorada, tanto para se descobrir, degustar, sentir. Uma música para cada tempo. Muitos sentimentos para cada música. Há que se ter cuidado em se ouvir determinadas obras: elas mudam, drasticamente, de acordo com o momento, a hora, a iluminação, as cores, os sentimentos prévios, o aparato técnico usado para, se de olhos fechados ou abertos, se de fone de ouvido ou não, se mecanicamente ou ao vivo, se sozinho ou acompanhado. É impressionante o quanto ela se altera, se transforma, se revela, se esconde, demonstra suas inúmeras e praticamente inesgotáveis facetas. Não seria assim com tudo? Cada coisa, cada momentum de nossa vida não teria suas condições, suas mudanças e seu próprio universo sensível? Creio que sim. Na maioria das vezes, a música serve apenas como um complemento para uma situação qualquer. Está ali, ponto. Em outras, conseguimos ouvi-la. E em outros casos, raros, penetramos e vivemos nela.
Creio que eu tenha aprendido a desfrutar, respeitar e descobrir, a meu modo, a brutalidade de um metal extremo, o suingue de um samba, o virtuosismo do jazz, as inúmeras texturas do “pop”, o rock explodindo em tesão, tensão e atitude, a amplitude de uma peça clássica, a alma do blues, o balanço do funk, a desintoxicação do soul, a beleza de uma mpb, a transcendência corporal do trance, o universo multifacetado e em erupção da música eletrônica, a experimentação e o envolvimento do progressivo, a urgência do hip-hop, a força sensível das divas e trovadores solitários, a adrenalina e o estalar de um metal “tradicional”, o aconchego da bossa nova e a capacidade infinda que todos estes citados, além de inúmeros outros “estilos”, fundidos ou não, colaborando entre si ou radicalmente convencionais, o poder que eles tem de gerar algo novo, ou de apenas embalar-nos em suas entranhas.
Ao mesmo tempo que o som, em si, é como o ar para mim, o silêncio também o é. Como que o silêncio, ou seja, a ausência total de qualquer ruído, tem a sua sonoridade especifica, a sua forma de atuar, também faz parte da música, da vida, é necessário e pungente, pode ser mais agressivo e implacável que qualquer manifestação furiosa. O silêncio ecoa. Completa. Faz-se presente. É sensível, forte, intenso. Destaca-se. Às vezes, penso que desconheço coisa mais poderosa que ele.
O mundo é barulhento demais. O barulho destrói nossa capacidade de pensar. As pessoas falam muito, falam sem pensar, por falar, forçosa e desnecessariamente. Profundo desperdício de energia vital. O barulho, a grosso modo, simboliza o contrário de introspecção. E, para refletir, ela é necessária. A introspecção é, portanto, inflamável. Processando e florescendo a experiência. O único lugar onde suporto uma multidão ruidosa é em shows de música. Se parássemos de falar tanto, talvez viveríamos melhor, teríamos a oportunidade de perceber coisas que nunca antes percebemos.
Se parássemos de falar…ouviríamos. Seríamos capazes de notar maiores nuances do som, do ambiente, das coisas. Até mesmo as cores, a natureza, os sentimentos…o outro. A nós mesmos. Observar melhor o que nos rodeia. O silêncio torna o barulho perceptível. Permite repensar, criticar, refletir, analisar, graduar, sentir.
Somente aprendendo a respeitar e admirar o silêncio teremos a capacidade, mínima, de compreender nosso íntimo e o mundo circundante. De olhar para o outro sem pressa, analisando as sutilezas e peculiaridades da vida humana. Bem como de absorver a música em toda sua essência e possibilidades. Onde, por um lapso, o “sentido” passa a existir. Ou a ausência dele.
Abençoado seja.