(Tradução livre do artigo de Janelle Quibuyen em Quartz, porque é preciso)
Dois anos atrás, eu larguei meu emprego em tempo integral – salário + benefícios – para seguir como uma designer gráfica freelancer e independente. (Talvez este seja o maior clichê que lemos online atualmente).
Desde então, as reações que recebi são sempre iguais. As pessoas ficam fascinadas pelo fato de eu ter tomado esse grande e poderoso passo para mudar minha vida. Recebo mensagens como “Uau, você é tão corajosa” e “É tão incrível que você esteja perseguindo a sua paixão” ou “eu desejo tanto poder ser o meu próprio chefe”.
No início, eu não sabia o que pensar. Havia muitas coisas pessoais acontecendo na época que me impactaram o suficiente para que eu largasse meu emprego em tempo integral. Mas após receber as mesmas reações dezenas de vezes e cansar de ler textos por aí como “eu larguei meu emprego e comecei meu próprio negócio!”, as típicas histórias de sucesso da noite pro dia que pipocam online em todo canto – comecei a aceitar a ideia. Acreditar por conta própria. Tornou-se parte da minha narrativa.
Claro, é fácil se identificar com várias coisas que os jovens empreendedores estão dizendo. Mas eu ralo pesado para trabalhar o suficiente em um mês para conseguir pagar as contas. Eu lido com o medo, a ansiedade e a instabilidade todos os dias. Tento evitar a adivinhação, analisando por quanto tempo eu vou conseguir me sustentar dessa maneira pensando realisticamente. Mas ao mesmo tempo eu sou paga para fazer algo que amo (o que supostamente deveria ser o suficiente para anular todo o resto).
Não vou mentir, tem sido divertido e enriquecedor. Eu estava orgulhosa em seguir a minha paixão, congratulando a mim mesma por fazer funcionar. Mas então outra parte de mim não poderia discordar mais desse sentimento. Ser o seu próprio chefe é difícil pra caralho. Você não tem ninguém para culpar quando as coisas dão errado. E não é sempre o que você espera que aconteça. Mas o que me incomoda mais é como nós louvamos a narrativa de que a classe empreendedora é sempre heroica e corajosa.
Eu não sou mais corajosa do que o imigrante que colhe as suas framboesas para enviar uma grana para a família em sua terra natal. Eu não sou mais heroica que o jovem recém formado que trabalha em condições insalubres nove horas por dia para pagar a dívida monstruosa que ele contraiu na faculdade. Eu não sou mais exemplar do que a mãe proletária que acumula três empregos diferentes para alimentar seus filhos.
Hoje em dia nós somos bombardeados com mensagens de que a vida pode ser tão significativa se fizermos aquilo que amamos (o que é subjetivo de todo modo). Largar empregos para viajar o mundo. Abandonar tudo para ser seu próprio chefe. Deixar a rotina para construir algo do nada. Nos oferecem cursos online, webinars, livros e podcasts com conselhos de profissionais. Vemos o marketing de aplicativos que prometem tornar o desafio de abrir o próprio negócio algo acessível. Dizem que o sacrífico será grande, mas tudo compensará no final – “Você só precisa largar o seu emprego, dar o seu máximo, comprar o meu ebook com conselhos por 20 dólares e ter a paixão para perseverar”.
Nós louvamos as pessoas que são “corajosas” o suficiente para largar o seu emprego das 9 às 17h e mergulhar profundamente no desconhecido. Nós idealizamos e romantizamos a ideia de ser o próprio chefe e ficar responsável pela própria rotina. Em assumir o risco e colher os benefícios. Ainda que ninguém fale sobre a real capacidade de manter a autossuficiência dessa fórmula enquanto os resultados não vem.
Largar o seu emprego para seguir a sua paixão é uma bobagem tremenda. É o tipo de narrativa que apenas beneficia pessoas privilegiadas e pode ser muito (muito) perigosa para o trabalhador comum de classe média.
O discurso em si já fede a privilégio. Primeiro confirma que você tem um emprego em tempo integral – para começar. Confirma que você tem tempo suficiente para desenvolver uma paixão que poderá capitalizar para atender o seu custo de vida. E confirma que você tem a opção de tentar algo diferente apenas porque tem vontade.
Há muitos desafios em trabalhar por conta própria do que apenas perseverança e confiança no seu potencial. Nós estamos atraindo o proletariado de forma predatória para o estilo de vida do empreendedor como se esta fosse a resposta para uma vida mais plena e capaz de gerar pilhas de dinheiro. É o novo sonho americano.
Pela minha própria experiência, eu pessoalmente não larguei o meu emprego em tempo integral de salários mais benefícios por ser corajosa e seguir minha paixão. Eu não o fiz espontaneamente ou por “um grande passo de fé”. Eu larguei porque estava confrontada por novas e desafiadoras responsabilidades na minha vida pessoal que exigiam mais de mim mental e emocionalmente do que eu fui capaz de prever. Eu larguei porque estava depressiva. Larguei porque não aguentava a rotina, às vezes doze horas por dia, fingindo que nada estava acontecendo. Larguei porque eu tinha freelancers o suficiente para me sustentar, não porque eu tinha freelancers em tempo integral. Larguei porque analisei bem minhas opções por 7 meses antes de tomar uma decisão definitiva.
Eu sou privilegiada porque não tenho empréstimos da minha faculdade para pagar. (Suponho que largar o ensino médio finalmente foi recompensador, hahaha). Sou privilegiada porque consegui pagar boa parte da minha dívida com o cartão de crédito enquanto eu estava empregada em tempo integral. Sou privilegiada porque tenho alguém que tem um trabalho fixo. Alguém com quem eu posso morar. Eu larguei meu emprego porque estava lidando com uma emergência familiar que me ocuparia por um longo tempo. Eu larguei meu emprego porque eu tinha o privilégio de poder fazê-lo.
No entanto, eu não quero espalhar a falsa narrativa de que larguei meu emprego porque eu sou corajosa o suficiente para perseguir minha paixão. Não quero ninguém que trabalhe de 09 às 17h se sinta um idiota por permanecer em um emprego estável, ou se sinta culpado por verdadeiramente gostar disso. Eu quero que as pessoas saibam que praticamente todas as histórias empreendedoras de sucesso da noite para o dia que aparecem ignoram a parte do privilégio reservado a elas em primeiro lugar. Nem todo mundo pode, ou deve, largar seu emprego na esperança de encontrar a felicidade ou algo que as complete. Paixão pode ser um incentivo, mas às vezes não é suficiente para pagar as contas e ninguém deve se sentir um lixo por não estar apto em atender esse modelo de sucesso que foi criado. O conceito simplesmente não é realístico.
Não estou dizendo que trabalhadores não podem ser empreendedores de sucesso. Estou apenas dizendo que se você não leu nada que mencione o privilégio desses “inspiradores, corajosos e bravos empreendedores que largaram tudo para seguir a sua paixão”, então aqui está.