Por Maurício Angelo
Tempos de ânimos inflamados são ótimos para uma questão em particular: revelar, em última instância, o que realmente pensa certos setores da sociedade. Ou o que, de fato, aquele seu conhecido, colega, amigo, familiar, apoia. Se a polarização, seja qual for, é sempre vítima de sua própria característica de extremismo, do seu maniqueísmo simplificador, é também necessária numa época em que seguidos atentados contra a democracia se multiplicam pelo país.
O PSDB ir ao Tribunal Superior Eleitoral questionar o resultado das eleições é simbólico no ódio arraigado que a direita sente pelo processo democrático. Se lembrarmos ainda que boa parte das “provas” exigidas pelo partido são de consulta pública – como os boletins de cada urna eletrônica – e o restante é enviado para os próprios partidos através de solicitação, além do pedido ser baseado – pasmem! – em denúncias de redes sociais (como esta, infantil e prontamente desmascarada) temos um novo marco vergonhoso para os tucanos carregarem como herança.
A direita política sempre se sentiu incomodada com a democracia. Por melhor que esteja a situação dos conservadores nas eleições, por mais generalizado que seja o discurso em favor do livre mercado, sempre há um medo no fundo de que o povo vote e ponha no Governo esquerdistas que cobrem impostos dos ricos, deem dinheiro a rodo para os pobres e destruam a economia.
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E o que um plutocrata pode fazer então?
Uma das respostas é a propaganda: dizer aos eleitores, com frequência e bem alto, que o fato de sobrecarregar os ricos e ajudar os pobres provocará um desastre econômico, enquanto que reduzir os impostos dos “criadores de emprego” nos trará prosperidade a todos. Há uma razão por que a fé conservadora na magia das reduções de impostos se mantém, por mais que essas profecias não se cumpram (como está acontecendo agora mesmo no Kansas): há um setor, magnificamente financiado, de fundações e organizações de meios de comunicação que se dedica a promover e preservar essa fé.
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A terceira resposta consiste em garantir que os programas governamentais fracassem, ou nunca cheguem a existir, para que os eleitores nunca descubram que as coisas podem ser feitas de outra maneira.
É quase revigorante que tenhamos um economista deste calibre capaz de resumir de maneira tão clara e didática um óbvio pantanoso, que muitas vezes fica escondido atrás de uma ciência social absurdamente contaminada por interesses difusos e bem específicos, que ditam verdades absolutas bem moldadas numa rapidez assustadora.
Na prática, é o que explica a tentativa desesperada do PSDB de questionar a sua derrota democrática. Nas ruas, é o que leva alguns mentecaptos – menos de 3 mil em todo o país – a fazer passeatas pedindo intervenção militar e o impeachment de uma presidenta reeleita, sem o mínimo de concretude capaz de ancorar tal absurdo.
O que 3 mil pessoas representam num universo de 200 milhões? Quase nada. Ou muito, se você considerar a votação recorde de Jair Bolsonaro – 464 mil votos – e seus três filhos também presentes na política: Flávio Bolsonaro, deputado estadual no RJ, com 160 mil votos, Eduardo Bolsonaro, deputado federal em SP (e que foi armado para a passeata) com 81 mil votos, além de Carlos, vereador no Rio de Janeiro. É muito, se você considerar os 446 mil votos de Levy Fidelix e os 780 mil do Pastor Everaldo. Os 400 mil votos de Marco Feliciano. Os 254 mil votos de Coronel Telhada, deputado estadual mais votado em SP. E os exemplos seguem.
Muito se disse, com razão, que o Brasil não tem “50 milhões de eleitores na ‘elite’, brancos, de direita, etc”, considerando a votação recorde de Aécio Neves. É a pura verdade. Ainda que o senador concentre quase 80% dos eleitores entre a elite – tão raivosa e, em sua maioria, tão acéfala, como visto nas ruas e nas opiniões ao longo da campanha – a votação de Aécio vai muito além deles, colocando no balaio uma classe média insatisfeita (e não nos esqueçamos que a classe média tem muitas subdivisões), o argumento fácil da “alternância de poder” e o ódio contra o PT tão alimentado por essa mídia propagandista, lembrada por Krugman e por aí afora.
O que leva alguém a pedir a volta da ditadura militar? Um profundo desconhecimento histórico? A mais abissal e incurável estupidez? Uma cretinice difícil de ser compreendida? Uma sanha autoritária que, diga-se, gostam de imputar ao outro? É típico da direita, como foi o modus operandi de Aécio e o PSDB durante as eleições, de cometer alguns absurdos, como tentar um golpe midiático através da Veja sem nenhuma prova – e já há a possibilidade do depoimento de Youssef sequer ter existido – chegando ao cúmulo de espalhar boatos sobre o envenenamento do doleiro no dia da eleição (quão canalha pode ser isso?) e acusar o PT de fazer campanha sórdida, como Aécio fez na abertura do último debate na Globo. É o duplipensar orwelliano em sua essência. Resumidamente, “o poder de manter duas crenças contraditórias na mente ao mesmo tempo, de contar mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas, e esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente”. Aécio Neves é um mestre do duplipensar.
Quem pede intervenção militar e quem questiona a democracia não pode mais ser tratado como coxinha alienado, tem que ser tratado como inimigo. É um tipo muito perigoso que, lentamente, através de seus representantes oficiais, está sempre pronto para golpear a democracia e/ou tornar a governabilidade o mais difícil possível.
Leandro Karnal, historiador e professor de história cultural na Unicamp, conseguiu resumir de forma brilhante alguns mitos brasileiros, como a “democracia racial” de Gilberto Freyre e o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda. Afirma Leandro:
Em plena ditadura, na escola, cantávamos “as praias do Brasil ensolaradas” onde Deus plantara mais amor e onde “mulatas brotam cheias de calor”. Nesse Éden tropical e erótico, nada se falava sobre repressão a dissidentes. E, combinação maravilhosa: o céu nos sorria e a terra jamais tremia.
Os momentos de polarização política, como 1935 (Intentona Comunista) ou 1964 (golpe militar), foram retratados na versão oficial e conservadora como infiltração de doutrinas estrangeiras de ódio. Era o marxismo pantanoso em meio a um povo cristão e pacífico. Foram os primeiros momentos nos quais a elite pátria pensou em “nós”, ou seja, os pacifistas que queriam construir uma país de progresso e prosperidade, contra “eles”, os grevistas, sindicalistas, agitadores e outros que insistiam em inocular no corpo nacional o vírus do dissenso. “Nós” correspondia aos patriotas, aos que só desejavam a paz. “Eles” correspondia à cizânia e aos cronicamente insatisfeitos. Sempre fomos bons em pensamentos maniqueístas, em dualismos morais perfeitos. Ninguém é católico por séculos e emerge ileso desse destino…
E ele lembra o quanto somos violentos, “ao dirigir, nas ruas, nos comentários e fofocas, ao torcer, ao votar”, o quanto o conceito de guerra civil foi limado dos nossos livros de história e nossas querelas eram tratadas como picuinhas regionais, a escravidão abolida na pena dourada de uma princesa, o quanto o outro é sempre o representante antípoda do que considero errado, enquanto navego num mar calmo de retidão moral.
Mas o ódio apresenta outra função interessante. Ela aplaina as diferenças do meu grupo. O ódio, como vários ditadores bem notaram, serve como ponto de união e de controle. O ódio é gêmeo xifópago do medo, e pessoas com medo cedem fácil sua liberdade de pensamento e ação. O ódio é uma interrupção do pensamento e uma irracionalidade paralisadora. Como pensar é árduo, odiar é fácil. Se a religião é o ópio do povo para Marx, o ódio é o ópio da mente. Ele intoxica e impede todo e qualquer outro incômodo.
O ódio, teoriza Leandro, tem muito do fator infantil: a democracia só é boa se consagra o candidato que defendo, do contrário, é ruim e precisa ser questionada. Os fatos são selecionados não pelo espírito crítico, mas por uma decisão prévia tomada internamente.
Seria bom perceber que o ódio fala muito de mim e pouco do objeto que odeio. Odeio não porque sinta a total diferença do objeto do meu desprezo, mas porque temo ser idêntico. Posso perdoar muita coisa, menos o espelho. Mas o ódio é feio, um quasímodo moral. A ira continua sendo um pecado capital. Assim, ele deve vir disfarçado da defesa da ética, do amor ao Brasil, da análise econômica moderna.
É assim que a extrema-direita e os radicais de ocasião tentam impor seu delírio autoritário, seu desprezo pela democracia, seu desespero em ver, sistematicamente, algumas das principais decisões nacionais fugir das suas mãos.
Para quem passou 500 anos ditando cada centímetro da vida brasileira em todos os campos de atuação possíveis, da economia e política até a cultura e o comportamento, é mesmo muito difícil aceitar que “esses esquerdinhas” no poder tenham o protagonismo atualmente, ainda que ameacem muito pouco – ou quase nada – os privilégios e o padrão de vida que essa parcela da população sempre gozou.
Pelo contrário, ver o governo tratar como prioridade quem sempre foi excluído é o suficiente para despertar uma ira absurda, aquela birra raivosa da criança que não aceita o espaço do outro. Ainda assim, não podemos trata-los como tal. Cada febre autoritária precisa ser combatida com o empenho necessário que só uma aula permanente de história pode, pouco a pouco, começar a esclarecer.