Literatura

Minha noção de D’us

Nunca esqueci. Não. Falar em “D’us” – e já explico o porquê da grafia – é um prazer. Não almejo o Deus “cristão”, “religioso”, comum, tão massivamente violentado e negligenciado todos esses [milhares] de anos. No cotidiano da vida mundana e banal, é inevitável escaparmos de certa essência. Certo elemento formador único. Certa sensibilidade e amplitude para a existência. Como se estivéssemos, na verdade, permanentemente desconectados do que realmente importa. Do que nos toca. Do que nos faz bem. E apenas em alguns raros momentos, por uma “epifania” ou uma visão clarificada e jamais gratuita, vemos, sentimos. Está ali: D’us. É a força motriz de tudo. O que lubrifica o labirinto do ser. É entre a pieguice autêntica, o clichê sincero e a estética inevitável que sempre me equilibro. É quando somos mais transparentes. É tentar emergir de tudo que é vil e ordinário. Baixo, ruim. É transformar a “mundanidade” dentro dela.

Tenho encontrado pouco com D’us. Muito aquém do que já consegui e do que deveria. Estar longe de D’us é permanecer afastado de si próprio: de seus verdadeiros anseios, buscas. Do seu espírito. Normal (e saudável) que fiquemos cambaleantes, tontos e angustiados por vezes. Que entremos num mundo sombrio e hostil. A armadilha é não conseguir sair dele. Vejo D’us quando consigo escrever textos necessários e prazerosos. Como este. Vejo D’us nas coisas mais belas e interessantes que encontro. Temos inclinação natural a admirar o que é belo, sábio, engraçado, sarcástico, fora do lugar comum. O que nos impele. Nos chama. Cria o desejo. Por tudo. A curiosidade, a afirmação, o diferente. A afetividade espontânea. Tão fundamental e tão esquecida.

Vejo D’us quando converso com um bom amigo. Quando me entrego a quem acho que deva merecer. Quando ouço música que consiga ir além do trivial. Que tem a rara capacidade de alcançar algo único ali dentro do seu cérebro, da sua alma. Quando me entrego aos pequenos prazeres entorpecentes e reveladores. Quando leio um autor que fale, mesmo, à mim. Quando troco conhecimento, inspiração, risadas. Na lucidez. No trabalho bem feito. Na crítica e na observação. No elogio, quando merecido. Nas coisas bobas, infantis. No hermético e no simples. Nas brincadeiras. Na seriedade. Na natureza. Na loucura e na retidão. No correto e no dissonante. D’us está ali. Sempre. É uma delícia me encontrar com ele.

O resto, meu amigo, é perfídia. Enganação, lucro, vida a esmo. D’us costuma estar em vários lugares. Menos naqueles escritos, designados, arbitrariamente impostos como a “casa” dele. Uma verdade universal é que nós, homens, arrogantes, traiçoeiros, pretensiosos, não sabemos coisa alguma. Ainda mais sobre D’us. Tentar – permanentemente – me reaproximar dele é tentar fazer o caminho necessário para dentro de mim. Dentro de tudo que dá valor e graça à minha vida.

Desde o primeiro momento que vi a grafia “D’us” senti algo diverso. Que alguma coisa de real significado estava ali. Sou assim. Gosto da beleza das palavras. Do sentido oculto. Verdadeiro ou imaginário. Do que podemos dar à elas. Da liberdade de criar, errar, ousar. Um amigo, querido. E com quem discordo de muita coisa, me explicou. E tomo aqui a liberdade de transcrever parte do seu conhecimento, dado a mim num email de 2008:

No Antigo Testamento, no texto original, as alusões a D’us nunca são nominais. Javé, o nome Dele, é escrito com as letras hebraicas Yod, He, Vav e He, sem vogais. E assim é impossível adivinhar a pronúncia do nome. Por isso, é comum na liturgia judaica se referir a Ele como HaShem (“O Nome”, em hebraico). Eu poderia passar o resto do dia falando sobre isso, mergulhando nas implicações cabalísticas e neoplatonistas d’O Nome, mas (…) fica pra próxima. O importante é saber que o nome de Deus é impronúnciavel. E por essa razão há o nome D’us. Existe uma outra razão, também: eu prefiro fazer distinção entre D’us mesmo, e “Deus”, uma palavra utilizada sem nenhuma significância no dia a dia, em expressões como “pelo amor de Deus”, “juro por Deus”, “ai Deus meu!”, etc. Como disse acima, eu sou extremamente supersticioso, e embora não seja religioso, prefiro manter o espírito presente no judaismo, onde a palavra ganha uma dimensão inédita em qualquer outra língua ocidental. “D’us” conserva um mistério, o desconhecido. E assim deve ser.

Difícil pensar em poucas coisas mais lindas que isso. O respeito e admiração que tenho por “D’us” é imensurável. E por isso procuro não ferir ao que julgo fundamental. Nem sempre consigo. É um exercício constante. Complicadíssimo. Que só pode ser simplificado pela prática. Pela intimidade. Só cada um pode alcançar o real sentido que “D’us” tem em nosso ser. O estrito significado que você guarda contigo. Ou a ausência dele.

Eis o que representa D’us pra mim. Com todas as lacunas que um breve texto pode deixar. Ahava.

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