Literatura

O peso do ser

Nada que é plano demais me atrai. Nada que não possua seu grau de tortuosidade, complexidade. Que não fira, de alguma maneira. Que arda. A pungência é necessária. Tão quanto perigosa. A pimenta, o imponderável, a ousadia. Qualidades tão escassas desde sempre. Somos soterrados com o pensar e agir de maneira medíocre, calculada, fria. Em arriscar pouco. Praticar joguinhos odientos. Funcionar pela hipocrisia e covardia. Pelo medo. Pela moral escrota que nos empurram. É de cansar qualquer um.

Esse papo todo de “peso do ser” lembra automaticamente Milan Kundera e seu largamente conhecido “A Insustentável Leveza do Ser”. Que gerou até um filme razoável com Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche. Apesar de achar Kundera superestimado, não dá pra negar que o livro tem suas qualidades e consegue lidar com algumas questões pulsantes.

Neste sentido, prefiro outra passagem clássica, de um autor que tenho mais intimidade e fala mais à mim. É o momento chave de “Brave New World”. É a metáfora perfeita para a essência desse texto. É quando “O Selvagem” questiona diretamente a redoma do “mundo novo” criado. É quando a assepsia e a comodidade começam a incomodar. Perdem o sentido. Afetam demais o que realmente importa. Diz ele:

-[Selvagem] Mas eu gosto dos inconvenientes.

-[Administrador] Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.

-Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.

-Em suma – disse Mustapha Mon -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.

-Pois bem, seja – retrucou o Selvagem em tom de desafio. – Eu reclamo o direito de ser infeliz.

-Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer, no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifóide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.

Houve um longo silêncio.

-Eu os reclamo todos – disse finalmente o Selvagem.

Mustapha Mond encolheu os ombros.

-À vontade – respondeu.

“O peso do ser” é algo muito caro a Huxley, direta ou indiretamente. “Contraponto” é preciso (ou propositadamente confuso) em analisar brilhantemente as diferentes personalidades e anseios de seus personagens. Mesmo com suas passagens políticas, sua inspiração clara no movimento musical, expressa no título, é a premissa perfeita para Huxley explorar as relações e a mente humana. Tudo com sua escrita fina, de beleza e plástica incomum. Para se encantar e degustar. O ritmo das palavras e a rara habilidade para construir diálogos e interseções fazem de “Contraponto” um dos livros que bateram mais forte em mim.

“Ser é ousar ser”, define Hesse. E paga-se um preço altíssimo por isso. Não há como assumir o peso da existência – mesmo que se consiga torná-la leve, por vezes, como deve ser – sem sofrer as duras consequencias disso. Não há margem de discussão possível para o aforismo de que “a ignorância é uma benção”. Nela, é tão mais fácil viver. Quando sua consciência quase inexiste e suas exigências são baixas, tudo fica mais fácil.

Peco pelo exagero, sempre. É da minha natureza. Vou fundo demais. Sou péssimo em esconder o que sinto, o que penso, o que quero. Me dôo extremamente. Orgulhoso. E espero o mínimo de volta. Dizem que “ser razoável” é bom. Em certos casos, sem dúvida. Mas prefiro algo além.

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