Literatura, Música

O Som e o Silêncio

Minha relação com o som, talvez, seja a coisa mais importante e vital que existe. [Este é o meu hiperbolismo falando alto]. Mas um hiperbolismo nem tão exagerado assim. Minha mãe diz que cantou para mim desde os primeiros dias de vida. Que contava histórias quando ainda estava no ventre. E, não só estudos científicos comprovam o quanto isto influencia positivamente e tem influência sobre um bebê, como eu acredito e sinto isto, intensamente. Minha vida, sem som, não existiria. E não é só porque “gosto muito” – eufemismo – de música. Não falo somente de notas musicais, de estruturas, arranjos e harmonias diferentes que suscitam as mais variadas sensações, gostos e impressões.

Talvez o parágrafo mais feliz que eu tenha escrito foi este, quando tentei “resumir”, brevemente, o que “música” significa:

Música, para mim, é extensão do corpo, dos sentidos, da mente, das angústias, desejos, aspirações. É inquieta por natureza. É uma linguagem ampla, poderosa e universal. É puramente matemática ao mesmo tempo que abstrata. Rígida porém livre. Organizada em sua estrutura apenas para ser decomposta e digerida por cada um de maneira peculiar. Mexe com o racional e as emoções. O cérebro e a alma. Traz infindas possibilidades, deixando sempre um impacto por onde passa. É nossa face mais metódica, mas também indefinível e ilimitada. É D’us, em sua essência. É a maior força que tenho notícia.

Este aforismo exemplifica, em parte, aquilo que é a essência dessa relação tão íntima, bem como do modo como enxergo, hoje, o “trabalho” de “crítico”. É absurdo, inimaginável e incompreensível, para Maurício Gomes Angelo, ficar limitado a um único estilo. Ter, em seu cardápio, seus momentos, sua vida, tipos limitados de manifestação sonora. Se criamos rótulos, não só por uma necessidade humana de compreensão, organização, manipulação e parâmetros mínimos de referências, bem como para a indústria, é apenas para nos guiar, para “dar um nome” aquilo.

Há tanta coisa para ser explorada, tanto para se descobrir, degustar, sentir. Uma música para cada tempo. Muitos sentimentos para cada música. Há que se ter cuidado em se ouvir determinadas obras: elas mudam, drasticamente, de acordo com o momento, a hora, a iluminação, as cores, os sentimentos prévios, o aparato técnico usado para, se de olhos fechados ou abertos, se de fone de ouvido ou não, se mecanicamente ou ao vivo, se sozinho ou acompanhado. É impressionante o quanto ela se altera, se transforma, se revela, se esconde, demonstra suas inúmeras e praticamente inesgotáveis facetas. Não seria assim com tudo? Cada coisa, cada momentum de nossa vida não teria suas condições, suas mudanças e seu próprio universo sensível? Creio que sim. Na maioria das vezes, a música serve apenas como um complemento para uma situação qualquer. Está ali, ponto. Em outras, conseguimos ouvi-la. E em outros casos, raros, penetramos e vivemos nela.

Creio que eu tenha aprendido a desfrutar, respeitar e descobrir, a meu modo, a brutalidade de um metal extremo, o suingue de um samba, o virtuosismo do jazz, as inúmeras texturas do “pop”, o rock explodindo em tesão, tensão e atitude, a amplitude de uma peça clássica, a alma do blues, o balanço do funk, a desintoxicação do soul, a beleza de uma mpb, a transcendência corporal do trance, o universo multifacetado e em erupção da música eletrônica, a experimentação e o envolvimento do progressivo, a urgência do hip-hop, a força sensível das divas e trovadores solitários, a adrenalina e o estalar de um metal “tradicional”, o aconchego da bossa nova e a capacidade infinda que todos estes citados, além de inúmeros outros “estilos”, fundidos ou não, colaborando entre si ou radicalmente convencionais, o poder que eles tem de gerar algo novo, ou de apenas embalar-nos em suas entranhas.

Ao mesmo tempo que o som, em si, é como o ar para mim, o silêncio também o é. Como que o silêncio, ou seja, a ausência total de qualquer ruído, tem a sua sonoridade especifica, a sua forma de atuar, também faz parte da música, da vida, é necessário e pungente, pode ser mais agressivo e implacável que qualquer manifestação furiosa. O silêncio ecoa. Completa. Faz-se presente. É sensível, forte, intenso. Destaca-se. Às vezes, penso que desconheço coisa mais poderosa que ele.

O mundo é barulhento demais. O barulho destrói nossa capacidade de pensar. As pessoas falam muito, falam sem pensar, por falar, forçosa e desnecessariamente. Profundo desperdício de energia vital. O barulho, a grosso modo, simboliza o contrário de introspecção. E, para refletir, ela é necessária. A introspecção é, portanto, inflamável. Processando e florescendo a experiência. O único lugar onde suporto uma multidão ruidosa é em shows de música. Se parássemos de falar tanto, talvez viveríamos melhor, teríamos a oportunidade de perceber coisas que nunca antes percebemos.

Se parássemos de falar…ouviríamos. Seríamos capazes de notar maiores nuances do som, do ambiente, das coisas. Até mesmo as cores, a natureza, os sentimentos…o outro. A nós mesmos. Observar melhor o que nos rodeia. O silêncio torna o barulho perceptível. Permite repensar, criticar, refletir, analisar, graduar, sentir.

Somente aprendendo a respeitar e admirar o silêncio teremos a capacidade, mínima, de compreender nosso íntimo e o mundo circundante. De olhar para o outro sem pressa, analisando as sutilezas e peculiaridades da vida humana. Bem como de absorver a música em toda sua essência e possibilidades. Onde, por um lapso, o “sentido” passa a existir. Ou a ausência dele.

Abençoado seja.

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Quando

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“Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei.
Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela
saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado.”

Hermann Hesse, in “O Lobo Da Estepe”.

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Bloom

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Não se engane…terás o melhor companheiro que pode existir. Te darei todo o carinho que um homem é capaz, toda compreensão, amizade, respeito, intensidade. A melhor vida sexual que se pode imaginar. Ficarás orgulhosa, bela, mimada, convencida. Te aninharei quando sentires medo, ou frio. Na verdade, te aninharei sempre, mesmo que não estejas sentindo nada. Ouvirás as palavras mais doces, intensas, rebuscadas, piegas. Terás a certeza que ninguém pode ser tão encantador, completo, bem humorado, cara de pau, convencido, família, protetor, bobo, surpreendente.

Mas a irei sufocar com minhas cobranças, incertezas, ciúmes, insegurança. Projetarei todos meus medos sobre ti. Terá que lidar com atitudes intempestivas, impulsivas, inconstantes. As maiores e mais inexplicáveis alternâncias de humor. A sensibilidade extrema. Desarmarei e anteciparei cada joguinho, cada desculpa, cada ardil psicológico. Inventarei outros. Verei coisas onde não existe. Identificarei rapidamente os que são, de fato. Discutirei e argumentarei incansavelmente, de modo draconiano, duro, rápido, irônico, perspicaz. Insuportavelmente arguto. Irás se cansar, exaurir, repensar. Terás o melhor e o pior. Não sirvo para ninguém, e não é questão de não servir para mim, antes. You’re too heavy, boy. Não sei pegar leve. Nunca peça calma à um espírito impetuoso.

Me lembrarei de cada palavra, cada gesto, cada plano, cada momento, cada respiração. E os jogarei sobre ti, se for necessário. A palavra é sagrada. A intenção, além. Tudo está marcado indelevelmente em meu ser. Gravado na carne, no sangue. Não tente brincar. Eu faço meu próprio tempo. Construo minha própria vida. Levo rigorosamente cada coisa que demonstro. Eu ponho à prova para verificar se mereces, se pode suportar, se faz por onde receber tudo que ofereço. Minha inconstância não se presta a ser traiçoeira. Sou um paradoxo ambulante, uma besta fera, um lobo da estepe…muito mais lobo que homem. Sou tomado por forças que rasgam meu desejo, meu orgulho, minha intimidade, meu valor. Quieto, prestes a atacar. Desprezo imensamente a mim mesmo, o que dirá do restante da humanidade.

Isto não é um texto. Não fui eu quem escreveu. Você não sabe o que acabou de ler. Sou milhares em um só. Um garoto acanhado necessitando de carinho. Um homem faminto prestes a devorar.  Isto é só uma golfada na cara da vida. Um dedo na garganta. One of my turns. Encerrado em seu próprio momento. Reverberando esporadicamente. Pulsando, escondido. A mostra, em combustão. É a pior coisa que já saiu de meus dedos. Assim como cada nova o é. Mentira. Eu sou um blefe. Um ponto de interrogação. Um engano da natureza. Babaca, louco, careta. O maior imbecil que poderás encontrar. Como o melhor deles.

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XI

Meu poema favorito de Neruda:

“Tenho fome de tua boca, de tua voz, de teu pêlo
e por estas ruas me vou sem alimento, calado,
não me nutri o pão, a aurora me altera,
busco o som líquido de teus pés neste dia.

Estou faminto de teu riso resvalado,
de tuas mãos cor de furioso silo,
tenho fome da pálida pedra de tuas unhas,
quero comer teu pé como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado em tua formosura,
o nariz soberano do arrogante rosto,
quero comer a sombra fugaz de tuas sobrancelhas.

e faminto venho e vou olfateando o crepúsculo
buscando-te, buscando teu coração quente
como uma puma na solidão de Quitratúe.”

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Reticências

A maioria das pessoas tinha plena certeza de que ele estava no controle. Aquele homem aparentava uma serenidade, uma lucidez e um domínio tão grande de suas constituições que ninguém podia imaginar o contrário. Era ele a quem recorriam quando desesperados. Quando necessitavam de conselhos ou conforto. Raramente se alterava. Não demonstrava grande vulnerabilidade ante as vicissitudes da vida. Sabiam que podiam contar com o seu apoio, sua opinião. O buscavam justamente porque exalava tremendo auto-controle. Poucos conseguiam enxergar além, e aquilo o aborrecia.

De todos que travava contato, era difícil distinguir algum que podia adentrar em seu ser com verdadeira força e atração. Estava cansado daquele respeito e reverência velada. Ao contrário, queria alguém para admirar.

 

Onde estavam?

 

Tinha surtos de desespero freqüentes. Arroubos de desencanto e desilusão – não porque esperava muita coisa do mundo, exatamente, mas uma consciência tão crítica e aterradora da desgraça que acabavam por bloquear seu cérebro, e sua energia vital. Resignara-se. Continuamente. Passou a ser acometido de profunda letargia. Sabia que estava morrendo. Definhava de forma lenta e dolorosa. Sabia que ao estar com lixo, com seres incomodamente limitados, estúpidos, rasos, doentes e cerrados em sua própria mediocridade, intransponível num primeiro olhar, também se tornava um pouco igual a eles.

 

Aquele desconforto, sabia bem, jamais iria desaparecer. O estar deslocado, em agonia, obrigado a lidar com situações, pessoas, contextos e acontecimentos desprezíveis, vis e pobres em sua essência, fazia com que a miserabilidade de sua alma, no sentido mais seco e não metafísico possível, crescesse amargamente.

(…in progress…)

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Miller

Relendo Henry Miller estes dias…impossível resistir a postar um trecho de sua obra mais famosa: “Trópico de Câncer”. Se era “chocante” no início da década de 30, para muitos continua sendo até hoje: o “maldito” escritor realmente não pode agradar aos guardiães dos bons-costumes – seja lá o que isto for – e a tradicional mediocridade da hipocrisia burguesa, ou seja, aquilo que a imensa maioria de nós é (e cultiva) mesmo sem ter consciência disto. Não me espanta que Orwell tenha sido um dos primeiros a reconhecer sua importância e originalidade.

Seus romances mezzo auto-biográficos que misturam experiências reais com uma ficção tresloucada e cheias de reflexões filosóficas, críticas e sociais (…) encharcadas de forte teor sexual, das mais intensas e vivas, literalmente, que podemos ter, é um deleite para quem é capaz de apreciá-lo.

Aproveite.

“É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito.

Estamos em vinte e tantos de outubro. Não acompanho mais as datas. Que diz você? Meu sonho de 14 de novembro do ano passado? Há intervalos, mas ficam entre sonhos e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo. O mundo é um câncer que está comendo a si próprio… Estou pensando que, quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo, o caos será restabelecido, e o caos é a página sobre a qual a realidade está escrita. Você, Tânia, é o meu caos. É por isso que canto. Não sou nem eu, é o mundo morrendo, deixando cair a pele do tempo. Eu ainda estou vivo, dando pontapés em seu útero, uma realidade sobre a qual escrever.

(…)

Mudei a máquina de escrever para o aposento ao lado onde posso ver-me no espelho enquanto escrevo.

Tânia é como Irene. Espera cartas gordas. Mas existe outra Tânia, uma Tânia semelhante a uma grande semente, que espalha pólen por toda parte -_ou, digamos, um pouco de Tolstói, uma cena de estábulo na qual o feto é desenterrado. Tânia é uma febre também– les voies urinaires, Café de la Liberté, Place des Vosges, gravatas brilhantes no Boulevard de Montparnasse, banheiros escuros, Porto Sec, cigarros Abdullah, sonata patética em adágio, amplificadores auditivos, sessões de anedotas, peitos castanho-avermelhados queimados, ligas pesadas, que horas são, faisões dourados recheados com castanhas, dedos de tafetá, crepúsculos vaporosos transformando-se em azinheiras, acromegalia, câncer e delírio, véus quentes, fichas de pôquer, tapetes de sangue e coxas macias. Tânia diz para que todos ouçam: “Eu o amo!” E, enquanto Bóris se queima com uísque, ela diz: “Sente-se aqui! Ó Bóris… Rússia… que farei? Estou estourando!”

À noite, quando olho o cavanhaque de Bóris estendido sobre o travesseiro, fico histérico.

Ó Tânia, onde estão agora aquela sua boceta quente, aquelas ligas gordas e pesadas, aquelas coxas macias e arredondadas? Em meu membro há um osso de quinze centímetros de comprimento. Tânia, alisarei todas as pregas de sua vulva, cheia de semente. Mandá-la-ei de volta para seu Sylvester com a barriga doendo e o útero virado. Seu Sylvester! Sim, ele sabe acender um fogo, mas eu sei inflamar uma vagina. Enfiarei pregos quentes em você, Tânia. Deixarei seus ovários incandescentes. Seu Sylvester agora está um pouco ciumento? Ele sente alguma coisa, não sente? Sente os remanescentes de meu grande membro. Deixei as margens um pouco mais largas. Alisei as pregas. Depois de mim, você pode receber garanhões, touros, carneiros, cisnes e São Bernardos. Pode enfiar pelo reto sapos, morcegos, lagartos. Você pode defecar arpejos ou amarrar uma cítara sobre o umbigo. Eu estou fodendo, Tânia, para que você fique fornicada. E se tem medo de ser fornicada em público, eu fornicarei privativamente. Arrancarei alguns pêlos de sua vulva e os grudarei no queixo de Bóris. Morderei seu clitóris e cuspirei moedas de dois francos…

Céu de anil limpo de onde foram varridas as nuvens felpudas, árvores magras infinitamente estendidas, com seus galhos pretos a gesticular como um sonâmbulo. Árvores sombrias e espectrais, de troncos pálidos como cinza de charuto. Silêncio supremo e absolutamente europeu. Venezianas cerradas, lojas fechadas. Um brilho vermelho aqui e acolá para marcar encontro. Fachadas bruscas, quase proibitivas; imaculadas, não fossem as manchas de sombra que as árvores lançam. Passando pela Orangerie, lembrei-me de outra Paris, a Paris de Maugham, de Gauguin, a Paris de George Moore. Penso naquele terrível espanhol que então espantava o mundo com seus saltos acrobáticos de um estilo para outro. Penso em Spengler e seus terríveis pronunciamentos e pergunto se o estilo, o estilo à grande maneira, morreu.

Digo que meu espírito está ocupado com esses pensamentos, mas não é verdade; somente mais tarde, depois de ter atravessado o Sena, depois de ter deixado para trás o carnaval de luzes, é que permito a meu espírito brincar com essas idéias. No momento, não posso pensar em nada – exceto em que sou um ser senciente ferido pelo milagre destas águas que refletem um mundo esquecido. Ao longo de toda a extensão das margens, as árvores curvam-se pesadamente sobre o espelho embaçado; quando o vento se ergue e as enche de um murmúrio farfalhante, elas derramam algumas lágrimas e estremecem sobre a água rodopiante que passa. Estou sufocado por isto. Ninguém a quem possa comunicar sequer uma fração de meus sentimentos…

O mal de Irene é ter uma valise em lugar de vulva. Quer cartas gordas para enfiar na valise. Imensa, avec des choses inouïes. Agora, Llona tem uma boceta. Sei disso porque ela nos mandou alguns pêlos arrancados bem do fundo. Llona –uma égua selvagem cheirando prazer no vento. Em todo monte alto ela fez o papel de puta– e às vezes também em cabinas telefônicas e lavatórios. Ela comprou uma cama para o Rei Carol e um púcaro para sabão de barba com as iniciais dele. Deitava-se em Tottenham Court Road com o vestido levantado e fazia com os próprios dedos. Usava velas, velas romanas, e trincos de porta. Não havia na terra membro tão grande que lhe servisse… nenhum. Homens entravam nela e fraquejavam.

Ela os queria com extensão, foguetes explosivos, óleo fervente feito de cera e creosoto.

Cortaria o seu e o conservaria dentro dela, se você lhe desse permissão. Uma boceta como não se encontra em um milhão, Llona! Uma vagina de laboratório, sem papel de tornassol que pudesse tomar-lhe a cor. Era uma mentirosa também, essa Llona. Jamais comprou uma cama para o seu Rei Carol. Coroou-o com uma garrafa de uísque e sua língua estava cheia de chatos e amanhãs. Pobre Carol, dentro dela ele só poderia fraquejar e morrer. Uma chupada, e ele caiu para fora –qual morta lesma.

Em minha ausência, colocaram as cortinas na janela. Tem aparência de toalhas de mesa tirolesas, molhadas em lisol. O quarto resplandece. Sento-me na cama atordoado, pensando no homem antes de seu nascimento. De repente, sinos começam a dobrar, música fantástica, sobrenatural, como se eu tivesse sido transportado para as estepes da Ásia Central. Alguns retinem num ritmo longo e demorado, outros ressoam bebedamente, chorosamente. Agora tudo está quieto de novo, a não ser por uma última nota que mal corta o silêncio da noite –apenas uma fraca e aguda batida abafada como uma chama. ”

Inquietamente sublime. Amo. ;*

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Sede Parte II

Pra começar…posto um texto que já foi publicado no Simplicíssimo (www.simplicissimo.com.br) mas que, devido a problemas com o site, acabou desaparecendo. Segunda parte de uma ficção que, acho eu, estou desenvolvendo.

E nem sempre temos que sair do ponto comum, por isso, vai a partir do “II” mesmo. =)

Sede – Part II

Havia dias em que estava particularmente sensível. Parecia constituído por pequenas ilhotas de sentimentos, prestes a eclodir. Uma passagem, uma lembrança, uma música. Brincava com dados, flores e tecidos. Ornamentava o espaço para ele mesmo atuar. Travava diálogos homéricos, discussões acaloradas sobre um tema qualquer. Não sabia o que se passava lá fora, contudo. “Lá fora”, para ele, não existia. Ao menos era no que preferia acreditar.

Era um pianista magistral. Capaz de executar as mais intrincadas peças de Chopin. Compunha apenas quando sua consciência musical o tomava de assalto. Apenas assim. Gostava de tudo que era fresco. Frutas da estação constavam sempre em sua lista de pedidos. Nêspera, pêssego e uva, os prediletos. Saboreava com adorável ímpeto a polpa carnuda, suculenta. Não deixava escapar uma gota de líquido sequer. Sorvia com gula o que lhe vinha à boca.

Manifesto, em seu ser, a vivacidade juvenil, embora num corpo decrépito de 80 anos. Achou, então, um texto que escrevera nos idos de sua mocidade:

“Pois o mal do século não é senão outra coisa que a covardia. A inércia, a fidelidade canina à estupidez plácida. Não por opção, claro. Mas sempre o dedo pútrido do establishment, com seus infinitos paradoxos e estratagemas que se chocam e geram sempre o nada. A síntese de nosso tempo é a esterilidade. Anuncia-se, como se fosse grande coisa, a morte de Deus, de Marx, da arte, do amor, dos pensamentos políticos de esquerda, de qualquer possibilidade viável. O asco à mudança é tão grande, que optamos por permanecer onde estamos, como estamos, ainda que isso simbolize a desgraça indiscutível. Mesmo que identifiquem a derrocada inevitável de suas corporações, trilham o caminho mais fácil, mais cômodo, esperando extrair o último suspiro da pujança do lucro. Nós, com efeito, na posição de rebanho, repetimos subliminarmente o mantra de que “o mercado é nosso pastor e tudo nos faltará”. Antes fosse possível resumir em observações tão elementares a magnitude da esterilidade vigente. A covardia, o pudor, o medo, a vergonha, o egoísmo, a hipocrisia, o cinismo e o apego ao conforto parecem, eles sim, fundir-se como a quintessência da constituição humana.

A capacidade que desenvolvemos de manter o status quo forte e sadio, mesmo sob as mais duras crises, renovações, desintegrações e incertezas soa além de qualquer justificativa crível. Somos seus soldados. Os estóicos e empedernidos “consumidadãos”. Estupidificados a ponto de sermos incapazes de nos chocar. De sentir. Quando muito, manifestamos pena ou compaixão. Falsas, obviamente. Os parcos momentos de revolta, daqueles que ainda conseguem compartilhar deles, evaporam-se tão logo surja a primeira necessidade. Entregues à própria conta, exalamos uma dependência asquerosa e insuportável de tudo aquilo que julgamos combater. Desprovidos do véu sagrado do capitalismo, deixamos exposto o quanto nos esforçamos para autenticar o contrário do que pretensiosamente proferimos.

Esticados em seus colchões macios, protegidos por seus carros e casas, amparados pela jamais desprezível quantia na conta bancária, os ternos ajustados, vestidos caríssimos, refrigeradores potentes e toda a opulência de seus pequenos caprichos, tornados essenciais, os seres ditos de intelecto “mais avançado”, os pensadores, independentes e livres de nosso tempo tecem as mais elaboradas teses revolucionárias, pregam a quebra das tradições, a vanguarda artística, celebram a vida como elemento uno e potencializador em si mesmo. Para quê, no entanto? Apenas para almejarem a notoriedade em seu círculo reduzido e esquizofrênico. Ou, senão, para conquistar incautos de suas artimanhas.

Viver, viver, viver. Banalizaram o que temos de mais puro e inato. Sê isso, sê aquilo. Acumule. Demonstre. Prove. Com tão pouco sangue se escreve. Com tão pouca paixão se atua. O entusiasmo sucumbe ante a rotina. O espontâneo se enrijece pelas convenções. Resta apenas a entropia. E tudo que recebo é o silêncio.”

Após um pequeno hiato, soltou uma leve risada irônica. Continuou a passar os olhos pela prateleira, e chamou-lhe a atenção um outro envelope, já amarelado e comido pelas traças. Abriu. Era uma das poucas cartas endereçadas a mulheres que havia escrito. Começava assim.

“Doce S.,

Queria poder te pedir que esquecesse de tudo e viesse comigo. Para dormirmos juntos numa noite fria de inverno, ou mesmo no abafado verão. Abrigaria, com meu corpo, as tuas curvas que me tiraram a paz e a saúde. Mas não posso.

Seria demasiado ególatra e arbitrário da minha parte. Não posso oferecer-te mais que a volúpia e a libido. É somente o que restou. O demais foi arrancado. A pequenas punhaladas. Pontuais e cortantes. Ficou só o animal. Qualquer resquício da personalidade sensível e paternal já não existe, ou está coberta por uma espessa e irremovível cortina.

Vês, contudo, que não sou um canalha comum. Os invejo, na verdade. Gostaria de conseguir alcançar a canalhice mais plena e ordinária. Um desejo simples porém distante. Há que se ser sincero mesmo na desgraça. E sabe por que a “verdade” é tão poderosa? Porque não possui adversários. Porque atrai, revela e instiga. E porque não precisamos temê-la. É a melhor escolha dos preguiçosos: não exige nenhum malabarismo mental.

Contarei um segredo e você pode espalhá-lo se quiser. Em essência, o ser humano é ridiculamente previsível. Existem padrões de comportamento facilmente identificáveis que se repetem há milênios, e que dificilmente se alteram. No que se convencionou chamar de “amor”, mais ainda. A obviedade é gritante. Nos torna patéticos a ponto de não admitirmos nem passado nem futuro. De nos vermos sempre nos mesmos ciclos.

Não se trata de tentar evitar a dor, sabe-se bem. Ao contrário: é a doença, ipsis litteris. Ver humanos buscarem e desejarem a patologia é de uma estupidez admirável. Em vez do acúmulo de forças, gera-se o acúmulo de fraquezas e frivolidades. Usamos como espelho de nossas imperfeições, que não temos coragem de admitir. Se sozinhos somos abomináveis, no amor nos tornamos duplamente ridículos.

Não sei como essa equação se resolve, admito. Tornei-me imbecil de mais ao pensar em você. Felizmente esta sensação passou rápido. Saí da utopia asquerosa para voltar a ser um homem digno. É sempre reconfortante. Talvez seja isso: posso ter achado o sentido de tamanha ignorância. Pois a doença não serve para nos certificar do quanto estamos fortes? Não é ela o estado pelo qual temos que passar para expurgar e reconhecer os males, ficando saudáveis novamente? Ela é a nossa mea-culpa. A lama que nos chafurdamos opcionalmente porque, afinal, não somos tão diferentes dos porcos. E como se reviram felizes na lama e na lavagem! Somos nós, no fim, quando destituídos de cérebro.

Talvez o amor seja só uma desculpa para abdicar da razão. E na estupidez, isso não se discute, é tão mais fácil viver. Percebes o tamanho da previsibilidade? É porque somos covardes, em suma. E necessitamos de muletas para respirar: dinheiro, Deus, os outros, família, amigos, o companheiro. Na relação, note bem, é onde nos deixamos mais vulneráveis, patéticos, dependentes, idiotas. E por isto mesmo mais humanos. Quando todas as ilusões de fortitude, independência e liberdade ruem. Conheces algo mais desprezível que o homem apaixonado? Ele é tudo que não devíamos ser, mas buscamos. O que por si só dá um belo retrato de nossa decadência.

E é por isso que reafirmo que não almejo a sua presença. Se tiveres alguma pretensão além da fome e da libido. E sei que, apesar de tudo, vai soltar um sorriso contido de admiração. Nunca terás como saber por que falo, para quem, com que objetivo e sob quais condições. Convenhamos: há algo mais sedutor que o mistério e a inteligência?.”

Após ler, ficou satisfeito. Era ele. Indubitavelmente. E percebeu que pouca coisa havia mudado desde os longínquos anos em que aquilo tinha sido escrito. Nada, aliás. Não importa quanto tempo passe, certas coisas nunca mudam. A convicção e clareza que tinha aos 20 era a mesma que demonstrava aos 80. Aquilo o agradou. Foi dormir. Estava cansado.

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