Lançando em 1998 lá fora e no finalzinho de 2009 por aqui, em tradução de Ana Maria Bahiana, pela editora Intrínseca, “Easy Riders, Raging Bulls” conta os bastidores do surgimento de uma nova geração de cineastas e astros em Hollywood, na virada dos anos 60/70 e como eles transformaram a face da indústria para sempre. O livro deu origem também a um documentário. Este período é tido por imensa parte dos críticos e público como os melhores anos de Hollywood: é uma espécie de ápice do cinema estadunidense, a busca pelo controle maior dos diretores por seus filmes, da pretensão autoral aguda e também dos sucessos de bilheteria conquistados que acabaram financiando tudo aquilo.
Em certo momento, “O Poderoso Chefão” (1972), “O Exorcista” (1973) e “Tubarão” (1975) eram as três maiores bilheterias de todos os tempos, sem falar em “Star Wars”, de 1977, que redefiniu tudo. “The Godfather”, na época, ultrapassou em 6 meses a bilheteria que “E O Vento Levou” (1939) atingiu em 33 anos e vários relançamentos. Embora os valores ajustados para a inflação – e o número de tickets vendidos – mudem o jogo.
E por mais que seja arbitrário colocar os anos 70 como a melhor época do cinema USA, sem esquecer de nomes como William Wyler, John Ford, Frank Capra, Hitchcock, Howard Hawks, George Cukor e tantos outros, o interesse maior de Biskind é contar os bastidores, a personalidade de cada um, as relações e os conflitos. Não faz uma análise profunda do cinema em si, aborda apenas superficialmente as influências do cinema europeu em toda nova trupe de diretores, muitas vezes tentando emular “in a american way” as inovações e o estilo da Novelle Vaugue, do realismo italiano, Bergman, etc. Biskind – e a revista que editava, a Premiere – não representam exatamente uma visão suficientemente crítica e inteligente do cinema.
Assim, muitas vezes o livro se perde em demasiados detalhes não exatamente relevantes, em intermináveis reproduções de brigas, reuniões, provocações, em cada namoradinha ou cada transa que cada um teve, em quem tomava mais drogas, era mais louco e insuportável, etc. Mas retirando todos estes excessos – que não são poucos – e omissões importantes, Biskind conseguiu fazer um bom caldo com os mais de 100 personagens que entrevistou: trabalho imenso que precisa ser valorizado, que enriquece e dá maior consistência ao livro. Em anexo, há uma lista de todas as entrevistas realizadas, todos os personagens e filmes citados no livro e filmografia recomendada dos diretores.
Tomando como o início da quebra de paradigmas “Bonnie & Clyde”, de 67 e “Easy Rider”, de 69, os capítulos se dividem em mostrar como Warren Beatty, Dennis Hopper, Arthur Penn, Bert Schneider, Bob Rafelson, Martin Scorsese, Robert Altman, William Friedkin, Francis Ford Coppola, Roman Polanski, Hal Ashby, Brian De Palma, George Lucas, Steven Spielberg, Paul Schrader, Terrence Mallick, Robert Towne, Peter Bogdanovich e atores como Jack Nicholson, Harvey Keitel, Al Pacino e Robert De Niro, entre tantos, transformaram Hollywood, conquistaram poder e prestígio jamais vistos e ao mesmo tempo criaram o cenário para seu próprio declínio. Woody Allen, Milos Forman e Stanley Kubrick são citados apenas eventualmente.
O livro em si é incapaz de ajudar a entender as mudanças ocorridas no mundo naquele período e este nem é seu objetivo, afinal. A liberação sexual, a politização, a entrada maciça das drogas na sociedade, a angústia e os anseios de uma geração: tudo isso está nos filmes que estes nomes realizaram. O livro foca nas mudanças da indústria – seja técnica, de equipamentos pesados para mais leves, com maiores possibilidades – seja administrativo, com os velhos figurões dos estúdios saindo de cena, dando lugar a outros nomes e os diretores tendo mais voz de decisão frente os produtores. A espera pelo sucesso ou fracasso de um filme é comum a todos, especialmente num tempo em que estavam apenas começando e o sucesso e a mitificação instantânea causaram pesados danos.
A competição extrema e os egos inflados paralelamente com a amizade e o esquema de ajuda mútua entre os diretores, frequentemente um participando e opinando no trabalho do outro. A fundação e os problemas da American Zoetrope fundada por Coppola e Lucas. As rusgas e disputas eternas entre diretores-roteiristas-produtores-atores-mídia. Pauline Kael, o nome mais famoso da crítica estadunidense, é citada exaustivamente e tida com enorme poder e influência, capaz de garantir o sucesso ou fracasso de alguns filmes. Algo a se contestar. O período marcou também a mudança no processo de distribuição – de poucas salas específicas para grandes esquemas simultâneos e do início do marketing na TV (que “Tubarão” tratou de intensificar).
Há boas histórias entre toneladas de cocaína, ácido, álcool, traições, explosões de fúria, delírios de grandeza e traições diversas – Dennis Hopper e William Friedkin são retratados como as personalidades mais insuportáveis, com Coppola chegando lá no auge do prestígio. Francis, aliás, não queria dirigir “O Poderoso Chefão” de jeito algum, topando por fazer uma troca, uma espécie de passaporte para os filmes realmente “autorais” que queria fazer, como “A Conversação”, de 74. Certo da recepção fria até a estreia, Coppola chegou a declarar: “acho que fracassei, peguei um livro popular, supercomercial, lascivo e transformei-o num bando de caras sentados em quartos escuros, falando”. Desnecessário reafirmar o impacto que o filme teve na cultura popular, no cinema e na vida de Coppola. E é interessante em, mesmo assim, a sua relutância em dirigir a segunda parte: além de continuações não serem comuns na indústria aquela época, seu receio é que, se falhasse, boa parte do crédito do primeiro filme iria para Marlon Brando. Está aqui, também, toda a histórica produção e filmagem catastrófica de “Apocalypse Now” em três fases nas Filipinas, incluindo o ataque cardíaco de Martin Sheen, as tempestades tropicais que varreram sets inteiro, as dezenas de doenças pegas por membros da equipe, etc.
Do outro lado da turma, Spielberg foi o único que acreditou em “Star Wars”: todo os outros debocharam, ridicularizaram e duvidaram do projeto de Lucas: o inferno no set e a pouca habilidade de Lucas para lidar com atores, descritos no livro, afastaram George da direção durante 22 anos, até o “Episódio I”. Como Spielberg previu, foi o maior sucesso de todos os tempos até então, gerando mudanças profundas no modus operandi de Hollywood e culpado pelo declínio do “cinema autoral” daquela época para a era dos blockbusters. Não à toa, Spielberg e Lucas são descritos como o que sempre foram: um caso a parte dos outros diretores, criados com a televisão, de mentalidade muito mais pop e comercial, sem pudores de chegar até lá. A diferença dos dois é óbvia e explica porque continuaram juntos por toda a década de 80 e além, produzindo jóias pop como “Indiana Jones”.
Scorsese, que mal usava drogas, se afundou na cocaína e chegou a beira da morte por uma hemorragia interna entre “New York, New York”, de 77 e “Raging Bulls”, de 80. Simbolicamente, “O Portal do Paraíso” – que custou 50 milhões e faturou 1,5 mi – de Michael Cimino, é tido como o fim da “Nova Hollywood” e a retomada total do poder pelos estúdios, pelo ambiente que eles próprios criaram, o que levou a desaguarem todas as brigas e inimizades feitas nos anos 70 na derrocada brutal de quase todos os diretores nos anos 80. (Também) por uma espécie de troco que levaram. E grande parte não só por terem propiciado o esquema dos blockbusters mas por eles mesmo terem envelhecido e se distanciado do público sem saber direito o que fazer, pelo preço que as drogas e os abusos cobraram, por tantas vidas destruídas no período e pelo o que a fama, o dinheiro e o status de gênios e deuses que consquistaram levaram junto o talento e a paixão pelo cinema.
Por mais falho e excessivamente centrado na fragilidade, nos egos e delírios de todos eles, “Easy Riders, Raging Bulls” é fundamental para entender não só o cinema e o espírito daquela época mas tudo que aconteceu com a indústria até hoje, mergulhando na vida de tanta gente essencial e, por consequencia, nos aproximando do cinema de todos eles: que é o que realmente importa.
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há um bom embate entre Rafael Galvão e Luiz Biajoni sobre o livro, aqui e aqui.
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