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A Eterna Crise

Artigo originalmente publicado no site Duplipensar (www.duplipensar.net) em 26.07.2005.

A Eterna Crise

Foi lendo o artigo “Crise? Que Crise?” do nosso congratulado companheiro Janus Mazursky que me sobreveio o desejo de verificar algumas particularidades da propalada “crise” em que nos encontramos:

Ato I – Velharias mais velhas que outras

“Os olhos não servem de nada a um cérebro cego.” (Provérbio Árabe)

O próprio presidente Lulla deu, numa entrevista, a tônica de toda a galhofa: “Isto é prática comum em todos os partidos”, referindo-se aos recursos não contabilizados usados para financiar campanhas, o chamado caixa dois. E em vista de todas as acusações divulgadas por ele, é apropriado citar novamente Roberto Jefferson no programa Roda Viva: “Qual é a novidade? Até parece que vocês todos não sabiam disso…”. Pronto. De fato, nada do que veio à tona é novo, nada do que é continuamente desmembrado seria capaz de causar algum choque, alguma manifestação de surpresa, mas causa. Então como algo sabido entrementes há muito é capaz de gerar tanto burburinho? Há duas razões: jogo político e combustível midiático. Não me contenho em gargalhar deliciosamente quando vejo na tv políticos de olhos esbugalhados trovejando o ódio salpicado da saliva incestuosa que inevitavelmente escorre por suas bocas, lobos ferozes prontos para devorar seus irmãos e saborear o doce e aureolado prazer de ser “o bom moço”, protegidos pela égide de delatores da corrupção. Convém citar inclusive o impagável dinossauro Ney Suassuna, que declarou: “não sei se é porque eu sou neófito na política, estou apenas no meu segundo mandato de senador, mas todo esse dinheiro, todas essas pessoas, estas denúncias, me impressionam”. PSDB/PFL – e demais currais eleitorais – não se contém de alegria (enquanto nenhum respingo de lama os atinge) e com toda razão. Ser publicitário das campanhas eleitorais de tais partidos ano que vem será uma das tarefas mais fáceis do mundo. Com um banquete destes proporcionado gratuitamente por seus – em tese – adversários, nenhuma criatividade, nenhum esforço se fará necessário, tratará apenas de liberar doses homeopáticas de acusações, rebuscadas pela santidade direitista.

Por seu turno, jornalistas assumem vozes pesarosas, quiçá tétricas, para anunciar as progressivas cenas da atual tragédia encenada em terras tupiniquins. Lembro-me até de um, que, participando do programa Observatório da Imprensa, disse mais uma coisa que todos sabem: “corrupção é a melhor notícia”. Nada satisfaz mais a mídia do que as corruptelas do sistema, nenhum outro assunto é tão voluptuoso. Corrupção vende. Corrupção é a premissa perfeita para que seres baixos almejem o paraíso, ou seja, para que veículos duvidosos conquistem o respeito da população.

Voltando ao nosso escopo inicial, a pergunta martela sem cessar: se a corrupção é algo de conhecimento geral, os mecanismos de como ela se manifesta também, e quem a pratica idem, porque causa tanto alvoroço? Além de alimentar picuinhas partidárias e servir de matéria-prima para a imprensa, ela incomoda porque, sendo um “modus operandi” do capitalismo, deve permanecer compreendida tacitamente sob o arcabouço do covarde senso comum. Enquanto as entranhas permanecem protegidas por sua estrutura óssea e carnuda, podem funcionar sem infortúnio, mas assim que – inapropriadamente – assumem a vanguarda, sua natureza repugnante inquieta seu dono. É como o porco que se indigna quando chamam seu alimento de lavagem. A corrupção pode lubrificar perpetuamente as engrenagens enquanto continuar inaudita, todavia, se assume a forma do todo, deve ser expurgada ferozmente para seu local de origem. É o que todos fazem, mas é inadmissível que se declare isso, é vergonhoso, indecoroso, impopular, é inflamável demais para se praticar pirofagia, é preciso combater teu coração para permanecê-lo inexpugnável. A crise é apenas a forma mais clássica de certificar-se de sua fortitude.

Ato II – Cornucópia Excrementícia

“Fosse o que fosse (o que o homem falava), podia-se ter a certeza de que cada palavra era pura ortodoxia, puro Ingsoc. Olhando a cara sem olhos, a mandíbula mexendo sem parar, Winston teve a sensação curiosa de não se tratar de um legítimo ente humano, mas de uma espécie de manequim. Não era o cérebro do homem que falava, era a laringe. O que saía da boca era constituído de palavras, mas não era fala genuína: era um barulho inconsciente, como o grasnido dum pato”. (George Orwell, 1984, pág 55/56).

Observando o patofalar na boca de nossos pseudo-intelectuais, é impossível não concordar com Orwell, sendo que temos apenas que trocar o “Socialismo Inglês” orwelliano pelo endêmico sistema capital-burguês monopolizador onde nos encontramos. O ódio forçosamente velado da imensa maioria de nossa mídia por ver a esquerda assumir o poder em 2002 – logo apaziguado pelos compromissos familiares assumidos por Lulla – pode agora jorrar sob as condições perfeitas, sem o mínimo risco de parecerem vilões aos olhos do povo. Sob o programa da verborragia, oficializado pela corrupção, encontram o pressuposto ideal para atacar não somente o partido, mas sua ideologia, suas bases, sua militância, sua história, a revolução, o marxismo, o materialismo dialético, a verdade.

Vamos com calma. O PT está chafurdado até o limite na lama, fato. Crimes de todas as naturezas são infindavelmente descobertos, fato. A idéia vendida é de que algum titio tucano resolverá tudo isso. O que afinal isto significa? Que programa estão criticando?

Ora, o que o partido dos trabalhadores tinha de esquerdista e/ou revolucionário, já foi abandonado há muito tempo, mais precisamente no início da década de 90, quando decidiram, enfim, fazer concessões, que se tornaram progressivas, até o ponto de se unificar completamente com o que combatiam, sendo impossível haver distinção. O que o PT pratica é o mesmo que o PSDB pratica, os dois programas já foram executados, os dois são a mesma coisa, os dois falharam miseravelmente. A ideologia que nossa mídia pensa criticar é a sua própria ideologia, a lama lhe é inerente assim como todo o resto. Dessa forma, quanto mais incisivos forem, melhor será. Quanto mais implacáveis, mais duros serão consigo mesmos. A ruína das pretensões petistas é a derrocada inegável das bases neoliberais brasileiramente autenticadas.

Falta que a massa perceba tudo isso. As denúncias propagadas na tv são auto-denúncias, as críticas vorazes são a compromisso público da culpa. Ninguém se arrisca a discutir a raiz, todos querem explorar apenas o episódio em separado. Qualquer nuance de ideologia revolucionária está a anos luz deste abismo medonho. Discutir a essência seria suicídio. Pois a origem de tudo é a mesma.

O círculo vicioso do capitalismo permanecerá intocável seja qual for o desenrolar desta história. A menos que…

Ato III – Um pouco de ar, por favor!

“Ai de mim”, disse o rato, – “o mundo vai ficando dia a dia mais estreito”. – “Outrora, tão grande era que ganhei medo e corri, corri até que finalmente fiquei contente por ver aparecerem muros de ambos os lados do horizonte, mas estes altos muros correm tão rapidamente um ao encontro do outro que eis-me já no fim do percurso, vendo ao fundo a ratoeira em que irei cair”. ” – Mas o que tens a fazer é mudar de direção”, disse o gato, devorando-o.” (Franz Kafka, Fábula Curta, in “Contos”)

A desconcertante precisão kafkiana é exortativa, não axiomática. Trafegamos e nenhum dos caminhos que percorremos nos levou a lugar algum. Caímos sempre no mesmo buraco, seja ele o da ignorância, do mercado, da ansiedade, do despreparo, do engano, da comodidade.

Os políticos se apressam em dizer que “apesar de tudo, as instituições democráticas serão preservadas”, como se isto fosse capaz de prover conforto à população e significasse algo positivo. Que “instituições democráticas”? Instituições democráticas nunca existiram. Nossos governantes fingem não saber o que é isto, preferem não saber, com efeito, não podem agir de acordo. O que você faria se seu funcionário jamais atendesse suas necessidades, desprezasse suas reinvidicações, escarnecesse sua importância, roubasse seus bens e agisse exclusivamente de acordo com seus interesses, fingindo que tu não existes? O demitiria, certo? É uma situação totalmente inaceitável e absurda. Algo que, uma vez identificado, seria extinto de imediato. Pois então. Perdemos tudo, todo respeito, toda importância, será que até nossa capacidade de mudança?

Talvez não estejamos todos mortos, talvez haja um mundo melhor após o eclipse. Como alertou o Pink Floyd na última frase de sua obra prima “The Dark Side Of The Moon”: “e tudo sob o sol está em perfeita harmonia, mas o sol é tapado pela lua.” O eclipse não se originou agora, é decrépito, senil, por trás desta crosta renovada do sistema, que tenta-nos provar que suas engrenagens são passíveis de choque, esconde-se a verdadeira essência putrefata do que nos governa: o capitalismo em sua forma pura. Nossa atualidade é fruto apenas de inúmeras trocas de pele, de “crises” fabricadas pela conspiração favorável ao bem estar do mercado, contudo, viver isso não é nada démodé: respiramos o capitalismo cotidianamente, o sentimos quando percebemos que sempre teremos que pagar mais caro por nossa comida, nosso transporte, nosso lazer, nossos vícios, nossa higiene, nosso estudo, nossa vida, quando temos a consciência de que iremos pagar sempre mais do que as coisas valem e receber menos do que merecemos. Obter sucesso em nossa sociedade significa tão somente canibalismo, pisar sob os demais, uma vitória paliativa e unilateral da oligarquia burguesa. Ter dinheiro não é um crime, conquistá-lo é que o é. Conquista implica vitória, vitória implica derrota, derrota transparece disputa, disputa implica ambição, ambição transparece desigualdade, desigualdade gera luta, luta implica injustiça, injustiça significa a permanência do capitalismo. Qual a última vez que vistes o sol? Acaso lembra-se da última ocasião que desfrutaste a vida? O que estás deixando de fazer para estar aqui pensando?

O predatismo precisa acabar. Os deuses do capital, destituídos. Os valores, restaurados. A verdade, glorificada. O mundo suplica por sua reconstrução. Há muito trabalho para ser feito.

A revolução clama. Atenda ao seu chamado.

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