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Futebol, integração (!?) e as feridas expostas da América

Das coisas boas que o futebol traz, é curioso o senso de “integração” manifesto no twitter por diferentes pessoas em relação à América Latina nesta Copa do Mundo. A recente (e dramática) classificação uruguaia para a semifinal do torneio – que não acontecia há 40 anos – foi sintomática em engrossar a torcida por nossos vizinhos. Claro que boa parte disso é efêmero, ancorado numa simpatia frágil, interesse comedido e envolvimento passageiro.

Ainda assim, simboliza algo. Lembrei de um texto que publiquei em 2007: uma breve análise do livro “As Veias Abertas da América Latina”, clássico absoluto sobre a história crítica do continente, lançado pelo escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano em 1971.

Galeano é conhecido, também, por ser fanático por futebol, tendo livros dedicados inteiramente ao tema (como “Futebol Ao Sol e À Sombra”), sendo sempre solicitado para comentar o esporte. No artigo, cito justamente nosso quase total e irrestrito desconhecimento sobre a história da América Latina, além do papel imperialista do Brasil na região. A Copa do Mundo, mesmo que brevemente, ajuda a termos um olhar mais aproximado dos vizinhos, sendo uma boa oportunidade para retomar o tema.

Por isso, republico aqui o artigo lançado originalmente no Simplicíssimo e que na verdade foi escrito por mim para debate num grupo de estudos da América Latina que fundamos na faculdade. Que sirva para mudar velhos hábitos arraigados e que mal percebemos. Ou, menos pretensiosamente, que possa suscitar um novo debate: sadio e necessário.

Eduardo Galeano: as feridas expostas da América


“…temos guardado um silêncio bastante parecido com a estupidez…”

A primeira frase que lemos ao abrir “As Veias Abertas Da América Latina” é de uma pungência reveladora. Inquisitiva, na verdade. Dá para o leitor, senão a vergonha, um possível incômodo muito próximo do real: somos um povo alienado quanto à sua própria origem.

Quantos de nós não somos capazes de tecer longos comentários sobre a história e as vanguardas artísticas européias mas quando apontamos para a América Latina simplesmente engasgamos? Nosso quintal? Quintal dos Estados Unidos? As faces do imperialismo são muitas, inclusive aquela que se transmuta num sub-imperialismo, outorgando sobre os países do bloco, principalmente Brasil, Argentina e México, o papel de devorador de seus próprios semelhantes.

Os brasileiros, em especial, parecem literalmente de costas para o resto do continente. Ilusões de independência ou opulência desmedida, não se sabe. Apreço excessivo por se parecer estadunidense ou europeu. Estranheza quanto à língua mater – afinal, somos os únicos da região que falamos português. As possibilidades variam.

Há um comportamento típico do ignorante: ele evita aquilo que desconhece. Porque isso nada mais significa do que se expor, estar vulnerável às suas indisfarçáveis fraquezas. De fato, não é surpreendente a distância propositadamente criada entre os habitantes desta parte do globo. Vassalos, desde muito, os grilhões ainda permanecem no lugar mais difícil de serem extirpados: nossas mentes.

De nítida tradição marxista, Galeano faz uma reconstrução minuciosa da história do bloco, amparado em inúmeros estudos, dados, referências e fatos sólidos, provendo a base necessária para que suas explanações nos sejam críveis. Difícil, isto sim, contrapor aquilo que é apresentado. Resume ele:


“Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal têm-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar tem sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. (…) Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos.” (pág. 14).

Nossa ruína significou, portanto, o desenvolvimento do velho mundo, o máximo esplendor que o sistema pôde alcançar. Prata, ouro, açúcar, café, estanho, salitre, ferro, petróleo, borracha, cacau e algodão, cada um em seu ciclo, numa determinada época e ocorrendo em vários países, significaram a exploração de todas as riquezas existentes na América Latina, financiando, de modo essencial, a ascensão do capitalismo e o nível de vida que europeus e estadunidenses têm hoje.

Os recursos que uma terra ou região poderia dar, não raro, significavam a destruição completa daquela localidade. O auge e queda de Potosí, na Bolívia, Ouro Preto, no Brasil e Havana em Cuba são sintomáticos em demonstrar o quanto a sede imperialista pode devastar, em tão pouco tempo, redutos de abundância mineral e produtiva. Destino não menos trágico tiveram as principais cidades da Argentina, Peru, Equador, Chile, Uruguai, Paraguai, Venezuela, México e Haiti.

Vista aérea da atual Potosí

Dos 90 milhões de índios que habitavam estas terras antes da chegada dos conquistadores, sobraram apenas 3,5 milhões no impressionante espaço de um século e meio após a descoberta. Dizimados e escravizados, foi principalmente sob a pele indígena que a Europa encontrou o cenário perfeito para a sua salvação: recursos naturais em abundância e mão de obra gratuita. Segundo dados oficiais da época, que não consideram a imensa exportação clandestina para lugares como China e Filipinas, entre 1503 e 1660 chegaram ao porto de San Lucas de Barrameda, na Espanha, 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. Já a produção brasileira de ouro, no século XVIII, proporcionou à Europa um volume maior que o extraído das colônias nos dois séculos anteriores. Dez milhões de escravos africanos foram trazidos para o Brasil.

No mosaico composto por Galeano, há poucos buracos. Demonstra, de forma clara e sistemática, as diferentes formas de expropriação ilegal do continente ao longo das épocas. Intervenções diretas e agressivas nos governos, subjugação literal dos povos oprimidos e, mais recentemente, a ingerência inegável em assuntos internos dos países, além do domínio do capital estrangeiro. Números de 1968 mostraram que este capital externo controlava, no Brasil, 40% do mercado de capitais, 62% de seu comércio exterior, 82% do transporte marítimo, 67% dos transportes aéreos externos, 100% da produção de veículos a motor, 100% dos pneumáticos, mais de 80% da indústria farmacêutica, 50% da química, 59% da produção de máquinas, 62% das fábricas de autopeças, 48% do alumínio e 90% do cimento.

Este quadro se alastra por todos os outros países do bloco. O domínio do sistema bancário, também, é quase absoluto. Empréstimos do FMI e do BID, órgãos que defendem os interesses estadunidenses, são sempre acompanhados por duras exigências e cartilhas inflexíveis que afetam a soberania dos países. Entre as condições, estão, por exemplo, a obrigação de utilizar os fundos em mercadorias dos Estados Unidos e transportar pelo menos a metade para eles. Determinam a política de tarifas e impostos dos serviços, aprovam planos de obras, redigem licitações, administram os fundos, os juros, o pagamento da dívida e vigiam o cumprimento dos mesmos. Interferem até no ensino superior da região. Não se pode modificar, sem seu conhecimento prévio e permissão, as leis orgânicas ou os estatutos, impondo também reformas docentes, administrativas ou financeiras, tudo de acordo com as pautas do neocolonialismo cultural.

"The return of the flame" de Rene Magritte

Não deixam brechas, ressalta Galeano:

“Empobrecidos, sem comunicação, descapitalizados e com gravíssimos problemas de estrutura dentro de cada fronteira, os países latino-americanos abatem progressivamente suas barreiras econômicas, financeiras e fiscais para que os monopólios, que ainda estrangulam cada país separadamente, possam ampliar seus movimentos e consolidar uma nova divisão do trabalho, em escala regional, mediante a especialização de suas atividades por países e por ramos, a fixação de dimensões ótimas para suas filiais, a redução dos custos, a eliminação dos competidores alheios à área e à estabilização dos mercados. As filiais das corporações multinacionais só podem apontar à conquista do mercado latino-americano, em determinadas condições que não afetem a política mundial traçada por suas casas-matrizes.”

Neste ponto, e lembrando que um dos principais problemas do livro referem-se à questão temporal, apresentando muitos dados ultrapassados e obsoletos, que carecem de uma atualização, convém resgatar o ano de 1989, fundamental tanto para a política quanto para o pensamento vigente. Após a queda do muro de Berlim e a apressada declaração de morte do comunismo, o ideal capitalista tratou logo de se solidificar.

O Consenso de Washington, conjunto de medidas englobando dez regras básicas – como disciplina fiscal, abertura comercial, investimento estrangeiro direto sem restrições, privatização das estatais e leis trabalhistas mais “leves”, na verdade prejudicando o trabalhador, formuladas por economistas do FMI, do Banco Mundial e do Departamento de Tesouro do Estados Unidos, sob artigo do economista John Williamson, foram criadas para e seguida a risca por todos os países do bloco latino-americano da década de 90 até hoje. As “orientações” visavam a “recuperação econômica” das nações em desenvolvimento.


Outro marco de 1989 foi o aparecimento do artigo “O Fim da História”, do estadunidense Francis Fukuyama, na revista “The National Interest”. Para Fukuyama, o fim do socialismo era a prova da superioridade da ideologia capitalista e da democracia burguesa, tendo a humanidade atingindo, no final do século XX, o ponto culminante de sua “evolução”, sob todos os demais sistemas concorrentes. Como “solução final do governo humano”, o capitalismo contemporâneo decretava “o fim da história da humanidade”, a única alternativa possível e viável.

Resignar-se, portanto, à sua condição histórica “natural”, respeitando toda a herança imposta pelo imperialismo e sendo complacente com a ingerência do capital externo seria uma espécie de sugestão à América Latina, já que a solução estava dada através da cartilha recomendada.

Após 20 anos de atuação, o neo-liberalismo ainda patina em sua ineficiência e paradoxos.

Curiosa contradição histórica, considerando que os Estados Unidos pregam o liberalismo apenas para os outros, sendo rigorosamente protecionistas para consigo mesmos, transformando “a mão invisível” de Adam Smith no nada sutil big stick do inquisidor Tio Sam de cartola e dedo em prontidão.


Galeano expõe com propriedade tudo de mais intrínseco, e doloroso, que a América Latina possui nestes séculos de vida. O breve panorama traçado por ele comprova, com assustadora exatidão, aquilo que George Orwell constata ao final de “Revolução Dos Bichos”. Observando a notável semelhança adquirida entre homens e porcos, que agora andavam sob duas patas, vestiam ternos, tinham a mesma postura e os mesmos hábitos que os seus inimigos do passado, deixa entrever uma frase tristemente adequada às explanações do livro de Galeano: “todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.”

O uruguaio termina, não por acaso, numa espécie de convocação aos habitantes do bloco, sugerindo um despertar das massas, tal qual Marx e Engels ao final do Manifesto Comunista. Diz ele:

Enquanto o norte da América crescia, desenvolvendo-se para dentro de suas fronteiras em expansão, o sul, desenvolvido para fora, explodia em pedaços como uma granada.

O atual processo de integração não nos faz reencontrar nossa origem nem nos aproxima de nossas metas.

Não há de ser a General Motors ou a IBM que terá a gentileza de levantar, no nosso lugar, as velhas bandeiras de unidade e emancipação caídas na luta, nem hão de ser os traidores contemporâneos os que realizarão, hoje, a redenção dos heróis ontem traídos.

Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos a tarefa. A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre a consciência dos homens.”

Sobrepujar a letargia e servidão de nossas próprias posturas, e pensamentos, parece-me, de fato, o primeiro passo para que isto aconteça.

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Um comentário sobre “Futebol, integração (!?) e as feridas expostas da América

  1. Lanna disse:

    Muito bom texto, Maurício. Eu tenho tanta carência deste tema… não dentro da minha casa (hehe), mas neste país, de forma geral, é raro ver alguém que se ponha a falar, de forma debruçada, sobre a américa hispana. Temos muito a aprender com eles e vice-versa. Pena que só vi o texto agora, mas antes tarde que nunca. =) bjos

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