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Tropa de Elite 2: realidade expandida

Dos milhares de motivos para se fazer Tropa de Elite 2 – inclusive financeiros – é curioso, primeiro, definir claramente como ele se tornou “o nosso” blockbuster: é o filme capaz de gravar personagens e frases no imaginário popular, levar multidões ao cinema, vender o triplo na pirataria, catapultar um homem controverso ao posto de “herói” e suscitar discussões inflamadas de todos os lados desde o seu lançamento. É um mérito artístico, social e de entretenimento que acontece pouquíssimas vezes por aqui nessa escala. Além de poderoso como obra, sendo o primeiro longa de ficção de José Padilha na época, Tropa de Elite tornou-se um fenômeno incontrolável.

O que nitidamente mais incomodou o diretor de lá pra cá foi a pecha de “fascista” que o filme levou. Algo tão absurdamente ridículo e despropositado, que só pode ser dito por alguém que não faça a mínima ideia do que é o fascismo e não tenha qualquer noção política e histórica para soltar uma bravata dessa. Tanto que Padilha ataca esse rótulo imbecil diretamente logo nos primeiros momentos de Tropa 2. Algo como “vamos deixar claro isso aqui”. Bandeiras como essa também surgem pela capacidade impressionante que a discussão sobre violência tem de levar a superficialidades e clichês estúpidos.

Padilha sabe disso. E você transformar anos de pesquisa e milhares de páginas, relatórios e estudos sobre as milícias no Rio de Janeiro, pegar tantas referências e algo tão complexo e profundo para ser abordado, colocando-o isso de maneira razoavelmente eficaz, com penetração, inteligente, direto e que ainda consiga entreter, encantar, chocar, emocionar. Simplificar o mínimo possível para dentro do “aspecto cinema” inevitável, das peculiaridades que todo filme obriga o autor a fazer, é uma arte delicada. Nisto, e apesar de seus problemas, Tropa 2 é tremendamente feliz. Atinge esse objetivo com precisão. E merece todos os elogios por tanto.

Não apenas por ter se criado nos documentários, mas por todo o processo de elaboração de Tropa 1, repetido e ampliado no 2, é nítido que o filme é uma expansão da realidade. Estão ali não apenas uma situação real, problemas reais, cidade, polícia, etc, como personagens inspirados diretamente em seus “correlatos” reais: Fraga, o “contra” de Nascimento, é o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, que conseguiu cassar o deputado Álvaro Lins, chefe da polícia, e também instalou a CPI das Milícias, que prendeu muita gente, cassou políticos, etc. Freixo inclusive foi consultor de roteiro do filme. Padilha fala abertamente sobre isso e muitos outros assuntos nesta entrevista, a melhor que eu vi com ele até agora, altamente recomendada. Fortunato, apresentador do programa “Mira Geral” e também deputado, é escancaradamente uma paródia de gente como Wagner Montes, que apresenta o “Balanço Geral” na Record do RJ. Este vídeo, dentre vários, ilustra bem. O governador parece claramente alfinetando Anthony Garotinho, pela história, pelos fatos, a corrupção e até pelos problemas que o primeiro filme teve com Rosinha Garotinho, governadora na época.

Apenas através destes exemplos fica claro como Tropa 2 é um “documentário de ficção”. Musculoso, sim, com efeitos caros e realistas, com ação tipicamente hollywoodiana, como nas cenas de ocupação da favela com Nascimento guiando pelo helicóptero e no próprio tiroteio que põe em risco a vida dele. O filme é didático: precisa mostrar não apenas o processo de criação das milícias, mas as agruras de seu personagem principal, saindo de comandante do BOPE após uma operação desastrada em Bangu I, para sub-secretário de inteligência da segurança pública do estado do RJ. O Nascimento “humano” do primeiro filme está mais exposto aqui. Sua relação com o filho, com os amigos, com a ex-esposa e principalmente consigo mesmo é levada a um novo ponto de crise e reflexão.

Se Nascimento quer “destruir o sistema dentro do sistema”, o saldo final é complexo, caro e incerto. Em última medida, é este o eixo de Tropa 2. Mostra não só as entranhas do “sistema” e seus desdobramentos umbilicais, como de que maneira, no fim, ele sempre acaba se recriando, reinventando, substituindo as lideranças. Eclodindo um monstro dentro de outro. É o problema e a dúvida final que está dada. A película é corajosa, direta, tem méritos e uma capacidade de abordar as chagas da política brasileira como poucos filmes nacionais conseguiram fazer. Aponta a câmera, literalmente, para o centro do poder. Não deixa margem nem fica em cima do muro. Mesmo que ressaltado por Nascimento, “porque entra governo, sai governo, etc”, a coisa não muda.  Quem ganha com isso, quem financia – nós, afinal – e o custo, imenso. Qualquer interpretação rasteira pode levar a uma crucificação do governo atual – como aconteceria com qualquer outro que lá estivesse – pelo calor do momento, pela obviedade rasgada. Claro que tudo vai muito além disso.

Tropa 2 também aborda a relação às vezes “pouco ortodoxa” da mídia com a política, no pior sentido possível. Se Fortunato é o meio mais visível disso, talvez o terceiro filme possa aprofundar o tema, ainda que a pesquisa da jornalista Clara seja fundamental para descortinar a espinha dorsal do esquema. É através da imprensa que questões fundamentais são expostas e tem papel decisivo em acontecimentos do filme. Nascimento também afirma: “e a política, parceiro, só respeita a mídia”. Esta relação é sempre dúbia e paradoxal. O diretor do jornal chega a exclamar “precisamos tomar cuidado, afinal o governo do estado é nosso maior anunciante”. Será que vale o risco de crescer fazendo bom jornalismo, investigativo e revelador, perdendo sua principal fonte de receita? Como isto vai se sustentar depois que o boom de vendas passar, os anunciantes minguarem? Em maior ou menor grau, é o tipo de “dilema” vivido por muitos veículos hoje, agora. Desde muito.

É tão clichê falar em “sistema” quanto necessário. Ainda que o termo esteja caduco, ainda é ele que define melhor em que estamos inseridos. Nascimento é colocado como herói, sim. Mais que no primeiro filme. Mas sempre um “herói” humano, atormentado, dúbio, incerto, que pensa contribuir para algo positivo e acaba ajudando a criar outra excrescência, as milícias. Não há redenção nem caminhos fechados em Tropa 2. Não há certezas ou final feliz. As perdas são duras, cruéis. Como obra, incomoda somente o uso exagerado da narração em off. O recurso mais fácil para se contar uma história. Pelo caminho trilhado nos dois títulos até aqui e revendo um ou outro deslize, tudo indica que o terceiro filme possa – talvez – fechar a maior trilogia do cinema brasileiro.

O “sistema”, ainda que forte e dono do grosso de recursos, também respira por aparelhos. Como nós, é mais frágil do que gosta de admitir. Por mergulhar no centro da questão e deixar muito mais perguntas que soluções fáceis, Tropa 2 tem aquele impacto de um soco potente e preciso. Capaz de deixar os espectadores tontos, pensando no que fazer a seguir. Como sair daquela situação. E por fazê-lo de maneira tão contundente, virou o que virou. É ótimo ver algo que tire o público do eixo. Que ofereça mais que uma refeição pronta. Tropa 2 não pretende dar um nocaute, mas sair da letargia. No máximo que o cinema pode realmente, e por longo tempo, influenciar em algo concreto na vida real. Está de bom tamanho.

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