Literatura

O único sentido íntimo das coisas…

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo…

(…)

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

( O Guardador de Rebanhos – Alberto Caeiro: desde sempre um dos meus poemas favoritos. Completo aqui)

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Literatura

Nunca Mais

Nunca mais o sorriso fácil

o deleite carnal

as madrugadas perdidas

as avenidas movimentadas

.

Nunca mais o cerão, o café preto

o lixo, o ego, a mesquinharia

o metrô apinhado

nunca mais

.

Nunca mais os raios de sol, a hipocrisia

a futilidade, o torpor, o ódio

Nunca mais o quarto bagunçado, a louça suja, a facada nas costas

as aparências, nunca mais

.

As manhãs claras, a areia da praia, o cheiro de mato

Nunca mais

Nunca mais o upload, a notícia barata, o trabalho braçal

o sorriso amargo

.

Nunca mais a mentira, a falta de tesão

o almoço nas praças

a tecnologia, a fruta doce e artificial

a água que escorre

.

Nunca mais as enchentes, a roupa suja, as noites perdidas em lugares abafados

a embriaguez da cerveja, o torpor do vinho

o frio nas pernas

a ilusão do respeito

.

Nunca mais o celular, o aluguel, a utilidade

os festivais, o delivery, a dor inesperada

a sabotagem, nunca mais

o futebol

.

Nunca mais o sono inconstante

a paciência, o bonzinho

nunca mais

as segundas cinzentas

.

Nunca mais o cheiro de estrume

a certeza, a convicção, o erro

nunca mais poemas vazios, frases calculadas

Downloads, propaganda

.

Nunca mais

Nunca mais a saúde perdida, o nojo, a cobrança, a tela

Nunca mais as cores, o azul, o branco, o verde

A resignação

.

Nunca mais a filosofia, as digressões baratas, o backup

O pé de página

Nunca mais

Coisa alguma

.

Nunca mais

a verdade, a construção, o humor

nunca mais o teatro

os olhos ardendo, a xícara vazia, a hesitação

.

Nunca mais

[podcast]http://www.crimideia.com.br/wp-content/uploads/pod/nuncamais2.mp3[/podcast]

(Poema inspirado diretamente na peça “O Mistério Bufo”, de Maiakóvski, descrita aqui)

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