Artigo originalmente publicado no site Duplipensar em 06.08.2005.
” – Já fizeste isto antes?
– Naturalmente. Centenas de vezes…quer dizer, muitíssimas vezes.
– Com membros do Partido?
– Sempre com membros do Partido.
– Do Partido Interno?
– Não, com aqueles porcos, não. Mas há uma porção que gostaria de tirar proveito, se tivesse oportunidade. Não são tão santos quanto pretendem.
O coração dele deu um salto. Muitíssimas vezes, dissera ela. Oxalá tivessem sido centenas…milhares. Tudo quanto cheirasse a corrupção o enchia sempre de ardentes esperanças. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre sob a crosta; seu culto da severidade e autonegação podiam ser apenas uma máscara de iniqüidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apodrecer, debilitar, minar!
Ele puxou-a para baixo, fê-la ajoelhar-se à sua frente.
– Escuta. Quantos mais homens tiveste, mais te quero. Compreendes?
– Perfeitamente.
– Odeio a pureza, odeio a virtude. Não quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até os ossos.
– Então eu te sirvo, querido. Sou corrupta até os ossos.
– Gostas de fazer isto? Não me refiro a mim, somente. Gostas da coisa em si?
– Adoro!
Acima de tudo, era o que desejava ouvir. Não somente o amor de uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples, indiscriminado; era a força que faria a derrocada do Partido.
(…)
Antigamente, pensou ele, um homem olhava um corpo de mulher, via que era desejável e pronto. Mas agora não era possível ter amor puro, ou pura lascívia. Não havia mais emoção pura; estava tudo misturado com medo e ódio. A união fora uma batalha, o clímax uma vitória.
Era um golpe desferido no Partido. Era um ato político.”
George Orwell, 1984, pág 121/122.
Durante o processo de releitura de 1984, esta parte em especial acabou por chamar-me a atenção.
A descrição da cópula sexual entre Winston e Júlia, mais exatamente o doloroso labirinto pelo qual percorreram para chegar lá, é surpreendentemente significativo. Minha mente logo conectou-se com uma reportagem de capa da revista Carta Capital de tempos atrás, se me lembro bem, era traçado uma linha do tempo da liberação sexual em nosso planeta nas últimas décadas. A relevância específica desta reportagem é a descrição dos esforços atuais do governo estadunidense no que se refere ao sexo. Nunca na história dos E.U.A têm sido empreendido tanta atenção – e tanto dinheiro – para combater o instinto sexual dos jovens (em especial). Tudo sob a caudilha égide protestante. Patrulhas percorrem os bairros do país dando palestras, enumerando estatísticas, propagando fatos, narrando histórias pavorosas de pessoas que se entregaram ao sexo e sofreram conseqüências terríveis, encenando um horrendo teatro persuasivo, visando adiar – e/ou/porque não? – destruir o instinto, a experiência sexual nas pessoas, tentando, além de doutrinar, atrair mais ativistas para suas falanges. E o sucesso tem sido imenso. É a personificação da Liga Juvenil Anti-Sexo orwelliana. George W. Bush deveria pagar royalties à família de Orwell por isso.
São verdadeiramente repugnantes ações deste tipo. É a imposição de um estatuto governamental que fere todo e qualquer direito individual. Estão vendendo idéias, forjando espetáculos, influenciando ao seu bel prazer uma massa refém (!?) de suas atrocidades. No mundo de 1984, o sexo é algo praticamente inexistente, que foi expurgado brutalmente do seio da sociedade, reprimido, desestimulado, proibido, punido. Com o tempo, todo e qualquer instinto sexual tinha quase que deixado de existir. Não havia esta necessidade. Não havia esta prática. Pois:
“O objetivo do Partido não era simplesmente impedir que homens e mulheres criassem lealdades difíceis de controlar. Seu propósito real, não declarado, era roubar todo o prazer ao ato sexual. Não só o amor como o erotismo eram o inimigo, tanto dentro como fora do casamento. Todos os casamentos entre membros do Partido tinham de ser aprovados por um comitê nomeado para esse fim e – embora o princípio jamais fosse claramente declarado – a permissão era sempre recusada se o casal desse a impressão de haver qualquer atração física. O único fim reconhecido do casamento era procriar filhos para o serviço do Partido. A cópula devia ser considerada uma pequena operação ligeiramente repugnante, como um clister. (…) O Partido estava procurando matar o instinto sexual ou, se não fosse possível matá-lo, distorcê-lo e torná-lo indecente.” (pág. 67)
O sexo deixava de ser natural, saudável, instintivo, prazeroso. Era um dever, uma obrigação horrorosa, insuportável, evitável se possível. Desde a primeira vez que li 1984, penso que um aviso a ser colocado nele seria interessante (que na verdade faz-se desnecessário diante de sua obviedade), algo como: “Esta é uma obra de ficção, contudo, qualquer semelhança com o mundo real NÃO É mera coincidência”. O livro é a mimese – muito mais palpável e verossímil – do apocalipse, do grande caos do autoritarismo velado que governa o planeta. Esta bestialidade inaudita, de proporções gigantescas, torna-se totalmente asquerosa sob a luz de observações necessárias. Ao transpormos a casca de podridão do sistema, o que encontramos é justamente estes esforços incessantes em reduzir o homem à máquina, a inanimação pura e simples, à reles e vis propósitos capitalísticos.
No mundo em que os ocidentais imperialmente rotulam de 2005, devemos encarar o IngSoc de Orwell sob o epíteto generalizador de “sistema”, pois não está restrito a um local especifico, mas sim a todos os continentes. O objetivo do sistema é obliterar nosso id. Destruído este princípio do prazer, ele quer fundir nosso ego (o princípio da realidade reguladora) com o superego (o princípio da consciência), originando uma nova entidade concebida diretamente de suas entranhas, portanto, inescapavelmente impregnada de suas doutrinas. Possuindo esta nova entidade dentro de nós, nos adaptaremos ao nosso meio da forma como está instituído, atendendo diretamente aos princípios sistemáticos. À medida que o tempo passa, o antigo homem – tenham em mente aqui o cunho pejorativo que o termo “antigo” pode ser encarado, pois é assim que ele é manipulado – será aniquilado, extinguido. E as novas gerações nascerão indelevelmente associadas ao grande pai, o grande salvador, o Grande Irmão, que é a figura carismática e sem rosto, mas intensamente sólida, do sistema. O homem pós-moderno, o homem do século XXI (chamem do que quiser) não terá mais nenhum vínculo com sua essência, sintomaticamente, não verá nada de errado no que se apresenta a ele. Tal qual acontece com as figuras do Partido e como também se sucede com os habitantes do “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. A ausência de contato sexual, as novas formas de procriação (pelo processo bokanovsky em “AMN” e por inseminação artificial – predominantemente – em “1984”), a adoção de um novo e transmutado halo humanístico (se é que se conserva algo disso), completamente maligno (grifo derivado apenas de minha qualidade de “antigo”) e fruto de estratégias bem delineadas, postas em prática a longo prazo, são pontos comuns nestas duas distopias sociais.
Diante da perda do halo original e tentando evocá-lo, Winston pragueja: “Odeio a pureza, odeio a virtude. Não quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até os ossos”. Ele queria tudo que “servisse para apodrecer, debilitar, minar”. Tudo que servisse para enfraquecer o Partido. A corruptibilidade da alma, nestas circunstâncias, é o contrário do que o sistema prega, conseqüentemente, esta corrupção é a ação libertadora de nossa essência. É mais do que necessária, é urgente. O coito sexual entre Winston e Júlia, resquícios de uma reminiscência humana, naquelas condições, era um ato de afronta, que ultrajava o Partido, zombava de suas diretrizes. A aspiração de um pouco de ar puro em meio ao torpe e venenoso ambiente do Grande Irmão. A necessidade de ser corrupto neste mundo ganha conotação positiva à medida que este pressuposto significa o inverso do que está estabelecido. Ao invertermos o que está invertido colocamos as coisas no seu devido lugar. Neste sentido, que a praga da corrupção se alastre como fogo nas almas de nossos semelhantes! Que a insatisfação impere! Que o sentimento revolucionário brote incessantemente dentro de nós! Que o sexo continue a ser o que sempre foi: uma necessidade basal, saudável e renovadora para nosso espírito!
Pois “sexo nunca mais” é o que sistema quer, “sexo nunca mais” é o que o governo estadunidense almeja instaurar. Resistiremos bravamente a isto. Pedindo licença artística a Orwell: é fazendo ouvir a nossa voz e permanecendo sãos de mente que preservaremos a herança humana!
Iremos até o fim nesta guerra grande mestre, palavra de um ente verdadeiramente humano, pode confiar.