Artigo originalmente escrito em 12.10.2005
Estudo de caso: revista Veja
Por Maurício Gomes Angelo
A Veja, maior revista do país, e tida como referência pela sociedade, é acusada historicamente de ser direitista e “tucana”, o antro, par excellence, da burguesia nacional. Para alguns, a acusação é um disparate, para outros, nada mais óbvio e perceptível. Veremos o quanto de verdade há nisso.
Para tanto, pegaremos uma recente edição da revista, número 1925, 5 de outubro de 2005, ano 38. Sua matéria de capa, “7 razões para votar não”, já fora dissecada em meu artigo anterior, “Duplo Assassinato”, logo, pinçaremos outros pontos que não os presentes na reportagem principal.
Como revista de maior tiragem do território nacional, usada como fonte por escolas e faculdades, tradicional, respeitada, e portanto, muito influente, o mínimo que se poderia esperar é um jornalismo austero, equilibrado, imparcial, de qualidade inquestionável. Não é, infelizmente, o que acontece.
Sabe-se que, naturalmente, todo meio de comunicação possui sua ideologia própria, suas regras internas, sua cartilha de produção, os assuntos que, a critério da edição, irão ser tratados, destacados ou amenizados, sua lógica de trabalho, a ótica pela qual todo texto presente em tal veículo deverá passar. Nada, que não seja adequado à “ideologia”, ao modelo, que determinado meio adota, poderá figurar em seus quadros. A linha adotada por Veja, é, inegavelmente, o tom direitista de análise. As mãos dadas com o establishment. A deturpação da filosofia marxista. A ridicularização da revolução – termos como “utopia anacrônica” figuram quase que semanalmente em suas páginas. O ataque, indiscriminado, a tudo que sirva aos seus interesses de persuasão. As mínimas brechas para que sua verdadeira face venha à tona são exploradas avidamente, como num exemplo que darei logo abaixo.
Na primeira coluna da edição supracitada, “Ponto de Vista”, da escritora Lya Luft, intitulada “Tirem as crianças da sala”, trata-se sobre a vergonha da presente “crise” instalada em nosso país e de que tipo de reações ela suscita, logo no início, Lya diz: “melhor dizer que, sim, estamos neste período; então, como agir de modo eficaz para que a situação melhore dentro do possível? Isso é realismo político, que nos falta num Brasil em que se encontra uma utopia em cada esquina, uma ideologia para cada gosto: marxismo terceiro-mundista, cristianismo revolucionário, todas as formas de messianismo, nacionalismo desenvolvimentista e por aí vai.”
Iniciada a sessão de ridicularização gratuita. Imaginem quais a sensações do leitor incauto, leigo no marxismo, diante dos recorrentes ataques de Veja. Eles sempre se limitam a abordá-lo pejorativamente, nunca sob a ótica filosófica, não podem explica-lo, porque isso destruiria com seus argumentos pífios – quando se têm argumentos.
Na seção “Cartas”, a primeira mensagem reproduzida é a de Manoel Amâncio Feitosa Ramos, de Xique-Xique, Bahia, que diz o seguinte:“Veja mais uma vez presta um grande serviço ao país. Desvendou uma máfia que atuava no futebol (ele se refere a edição anterior da revista e a reportagem “Máfia do Apito”), como se já não bastasse o trabalho brilhante que a revista vem desenvolvendo na política ao longo dos anos (“Jogo sujo”, 28 de setembro). Como, por exemplo, o pontapé inicial para o impeachment de Collor, a denúncia de compra de votos para a reeleição de FHC, a quadrilha que atua no (des) governo de Lula, o mensalinho de Severino Cavalcanti. Veja e o Brasil são os grandes vitoriosos”.
Esta carta, estrategicamente posicionada, é prolífica pois nos permite explorar algumas coisas: a exaltação indireta da revista (já que não foi feita pelo próprio veículo), a reivindicação de um papel fundamental ocupado por Veja na história do país, e, principalmente, o disfarce contido na frase “a denúncia de compra de votos para a reeleição de FHC”. O fato de Veja ter denunciado uma corruptela do governo FHC poderia servir de argumento para amortizar a acusação de “tucana” feita à revista. Ora, este enigma é simples de decifrar. A manipulação não pode ser descarada, Veja não pode estampar em suas páginas os dizeres “estamos a serviço da burguesia brasileira”. E a melhor forma de ocultar isto é denunciando as próprias falhas de seu grupo querido. Esta estratégia é tremendamente eficaz porquê, além de despistar a verdadeira ideologia da revista, a permite se auto-intitular (e passar para o leitor a idéia de) “idônea” e “implacável”. Contudo, o caso citado (corrupção no governo de Fernando Henrique), não originou nenhum escândalo de maiores proporções. E ninguém parece se lembrar do ocorrido.
Ainda na seção cartas, é concedido o direito de resposta a Luís Antonio Giron, que declara: “quero esclarecer que o aparelho i-Pod, enviado aos jornalistas de música dos principais veículos da imprensa, inclusive para mim, colaborador da revista Época, foi devolvido à assessoria de imprensa da cantora Maria Rita, intacto. Meu trabalho como crítico sempre se pautou pela independência e jamais aceitei nenhum tipo de oferta em troca de minha liberdade de opinião. O cd Segundo (Warner) de Maria Rita é de ótima qualidade, e a cantora obteve na imprensa o espaço merecido.”
Logo após, Veja indica para o leitor a reportagem na pág. 115. Vamos a ela. De título “O mensalinho da filha de Elis” – construção de um mau gosto impressionante – o texto insinua que Maria Rita, filha da cantora Elis Regina, e queridinha da mpb “nova geração”, precisou de “jabá” para que a divulgação de seu segundo disco fosse positiva. A gravadora Warner doou i-Pods, tocadores de mp3 da Apple, a última mania mundial, aparelhos que custam entre 600 e 1000 reais, para trinta críticos de grandes veículos da mídia nacional. Bem, a Warner tinha uma justificativa: o brinde era necessário porque o disco atrasou na fábrica e com ele os jornalistas que iriam entrevistar a cantora poderiam ouvir suas músicas de forma mais prática. A Veja cita isto, mas condena a prática, afirmando veementemente que se tratou apenas de uma maneira de tentar aliciar os jornalistas, e cita exemplos de que o i-Pod surtiu efeito. Praticamente todas as críticas em jornais e revistas brasileiras foram positivas, quando menos, foi adotado um tom conciliador, naquele estilo “é uma fase de transição”. Giron é citado na matéria de forma indireta, neste trecho “no caso do jornalista da Época, a Warner matou dois coelhos de uma cajada – deus! um clichê terrível! o redator – não creditado – não leu o manual? Como deixaram passar tal coisa? – ele escreveu uma matéria simpática na revista e outra mais elogiosa ainda na Bravo!, publicada pela editora Abril, o mesmo grupo de Veja.”
Com relação ao pseudo-mea culpa da última frase, quando Veja critica seu próprio grupo editorial, resgato a técnica exemplifica na análise da primeira carta que fiz acima. Ela almeja afirmar com isso que, independente de outros deslizes de sua editora, a revista permanece como ilha inatingível de competência e seriedade. Tente não rir. Só para externar minha opinião, creio que a música de Maria Rita é, sim, muito boa. Ela peca apenas pelo excesso de “garbo e pompa” de sua interpretação, soando forçado demais.
É óbvio que esta matéria de gosto duvidoso terá muito mais repercussão do que o direito de resposta de Giron. Aliás, é curioso notar que a resposta do jornalista foi publicada na mesma edição da reportagem, coisa que nunca acontece. Antes de ser algo positivo, isto expõe o frágil jornalismo praticado. Se a revista recebeu a retratação a tempo, nada seria mais natural do que limar a citação a Giron na matéria. Contudo, parece que a preguiça, o desleixo, e especialmente, a sede por criar polêmicas, foi muito maior que qualquer preocupação ética. Lastimável.
Na seção “Radar”, de Lauro Jardim, temos o tradicional “sobe” e “desce”, pesando os acontecimentos da última semana pelo viés do sucesso ou fracasso. No quesito sobe está presente Aldo Rebelo, e a seguinte frase: “o deputado comunista foi eleito presidente da Câmara”. Não podem deixar de dar ênfase a comunista, nem adotar um tom mais adequado, como simplesmente citar PcdoB. Será que se o candidato eleito fosse de qualquer outro partido o tratamento dado seria semelhante? Ademais, tenho minhas dúvidas sobre o “comunismo” de Aldo Rebelo. É impensável que um comunista de verdade compactue com o lamaçal do governo Lula. E, na confusa política brasileira, recheada de siglas vazias e sem expressão, onde políticos trocam de partido indiscriminadamente, visando apenas as facilidades que irá conseguir para se eleger, é perigoso criar algum elo de criação muito forte entre a sigla e o seguidor, infelizmente.
E falando em mudança de partidos….no texto “PT? Que PT?”, Mônica Weinberg retrata a debandada em massa do partido dos trabalhadores nos últimos dias do prazo para que isto fosse feito, salientado a saída de figuras históricas como Hélio Bicudo, Cristovam Buarque e Plínio de Arruda Sampaio. Plínio justificou-se dizendo que “o PT rendeu-se ao neoliberalismo e a política de privilégios aos estrangeiros”, linha seguida pela maioria de seus companheiros. Mônica desconfia – com razão – de tal argumento, e questiona o porque de isto ter sido feito só agora, mas sentencia “a debanda maciça de petistas neste momento, portanto, está longe de ser uma opção ideológica: é fruto, isto sim, do pragmatismo dos que não querem ser contaminados pela lama na qual a sigla chafurda hoje. E consulta o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, que finaliza: “A ideologia é uma máscara. O que está em questão é a sobrevivência política de cada um.”
Dou toda razão para que a debandada seja analisada com cuidado, mas um motivo muito aceitável para que ela tenha ocorrido neste momento não é citado na matéria: as eleições do PT tinham acontecido recentemente, e a ala tida como “radical” – entre eles grande parte do que saíram na última semana – foi derrotada e não passaram para o segundo turno. Acho normal, que, não conseguindo mudar a sua sigla pelas vias normais, considerando que era a última chance para que isto acontecesse antes das últimas eleições, os insatisfeitos, muitos deles fundadores e, portanto, com uma ligação fortíssima com o PT, resolvessem, apenas obrigados, finalmente sair. Mas Veja não pode cogitar isto, é muito mais fácil joga-los todos na laia dos aproveitadores e agredir a ideologia que defendem.
Em “Operação Saci” – mais um título desprezível – de Otávio Cabral, sobre a vitória de Aldo Rebelo, é dito: “com sua eleição para presidir a câmara, o deputado Aldo Rebelo, esse afável comunista que fez carreira como admirador da Albânia e do Saci-Pererê, deflagrou uma temporada de festas no arraial do governo”. Preciso comentar?
Otávio segue, acertadamente, expondo a forma com que a eleição de Aldo Rebelo foi conseguida: em troca de cargos em órgãos públicos, liberação de verbas para deputados, enfim, afagos e concessões diversas a “aliados” sangue-sugas, numa abundância de práticas pouco recomendáveis. Mas, tristemente, muito ortodoxas. Tal coisa faz parte daquele famoso hall “situações que todos conhecem”. È prática recorrente, desde tempos imemoriais, em todos os partidos e em todas as épocas da política brasileira. O que, claro, não a isenta de ser reprovável. Só observamos o tratamento ainda mais ácido e incisivo com que tudo é descrito, porque se trata do PT e porque a esquerda, e qualquer tentativa de mudança social, tem que ser extirpada a qualquer custo. Ainda que o ParTido (créditos a Janus Mazursky) já tenha deixado de representar esta bandeira há muito tempo.
A coluna de Tales Alvarenga, de nome “Erramos, senador”, é deveras suculenta. O senador em questão é Jorge Bonhaussen, do PFL. Aqui, qualquer cuidado é deixado de lado. “Erramos, senador” revela uma cumplicidade assombrosa, uma coerência de opinião entre dois “amigos”, que se confundem ao mesmo tempo. Os dois estavam errados. E, segundo Alvarenga, os dois estavam errados porque “a raça das formiguinhas socialistas não debandará. Na sua utopia anacrônica, as formigas falarão com as paredes. Mas continuarão por aí, esfregando ansiosamente suas patinhas, à espera do Grande Dia”.
É só procurar com cuidado, que, pouco-a-pouco, sua verdadeira face vai se revelando sem máscaras. Eles esperavam que, diante da “crise” detonada, o socialismo fosse definitivamente aniquilado. Quanta ingenuidade! E, não sei o que o socialismo tem a ver com a “crise”, o PT, e tudo mais. Como já ressaltado infinitas vezes aqui no Duplipensar, por mim e por vários outros nos mais diversos veículos – vamos nos auto-citar – : “Qualquer nuance de ideologia revolucionária está a anos luz deste abismo medonho”.
Nos assuntos diversos, quando trata do esporte, da cultura, da sociedade, comportamento, meio-ambiente e saúde, Veja é competente, faz o arroz com feijão sem maiores percalços e consegue identificar temas relevantes para o interesse de seu público. No entanto, quando acha qualquer brecha para nos gratificar com sua ideologia, o resultado é desastroso.
E, finalmente, temos a cereja do bolo – sim, meus amigos, um clichê, tremendamente apropriado.
Na seção “Notas”, onde é listado acontecimentos diversos da última semana, mortes, curiosidades, prisões, julgamentos, etc, encontramos o seguinte achado (reproduzido na íntegra):
“Encontrada uma tartaruga de água doce com duas cabeças, em Havana, Cuba. Os cientistas especulam que a anomalia se deva à poluição nas águas do Rio Almendares. Batizada de “Tina”, a Trachemys decussata tem pescoços e cabeças distintos, que se alimentam de forma independente. Biólogos farão um estudo completo das espécies que vivem no local para saber se há outros mutantes”. Tudo tranqüilo até agora, certo? Apenas uma nota cientifica normal, sem nenhum desvio. Calma, temos o gran finale:
“A preocupação agora é que, se um dia esse tipo de mutação ocorrer em seres humanos cubanos, o regime castrista terá mais trabalho com a degola de dissidentes”.
Aplauda de pé. Eu lhe peço. Essa mereceu!
Agora recomponha-se. Novamente, tal trecho fala por si só.
É impressionante a quantidade de “peculiaridades ideológicas” que podemos encontrar numa única edição desta revista. É chocante e lamentável, independente de qualquer coisa, profundamente lamentável, que a maior e mais influente revista do Brasil seja tão anti-jornalística e de conteúdo impróprio para pessoas inteligentes. Devorá-la para analisá-la é um mal do qual fui refém.
Não termino este artigo satisfeito, nem feliz.
É triste constatar que minha profissão é tão mal tratada, agredida e manipulada grotescamente. Que muitos leitores ficam reféns desta rapsódia repugnante.
Um minuto de silêncio, por favor.