Literatura

Nunca Mais

Nunca mais o sorriso fácil

o deleite carnal

as madrugadas perdidas

as avenidas movimentadas

.

Nunca mais o cerão, o café preto

o lixo, o ego, a mesquinharia

o metrô apinhado

nunca mais

.

Nunca mais os raios de sol, a hipocrisia

a futilidade, o torpor, o ódio

Nunca mais o quarto bagunçado, a louça suja, a facada nas costas

as aparências, nunca mais

.

As manhãs claras, a areia da praia, o cheiro de mato

Nunca mais

Nunca mais o upload, a notícia barata, o trabalho braçal

o sorriso amargo

.

Nunca mais a mentira, a falta de tesão

o almoço nas praças

a tecnologia, a fruta doce e artificial

a água que escorre

.

Nunca mais as enchentes, a roupa suja, as noites perdidas em lugares abafados

a embriaguez da cerveja, o torpor do vinho

o frio nas pernas

a ilusão do respeito

.

Nunca mais o celular, o aluguel, a utilidade

os festivais, o delivery, a dor inesperada

a sabotagem, nunca mais

o futebol

.

Nunca mais o sono inconstante

a paciência, o bonzinho

nunca mais

as segundas cinzentas

.

Nunca mais o cheiro de estrume

a certeza, a convicção, o erro

nunca mais poemas vazios, frases calculadas

Downloads, propaganda

.

Nunca mais

Nunca mais a saúde perdida, o nojo, a cobrança, a tela

Nunca mais as cores, o azul, o branco, o verde

A resignação

.

Nunca mais a filosofia, as digressões baratas, o backup

O pé de página

Nunca mais

Coisa alguma

.

Nunca mais

a verdade, a construção, o humor

nunca mais o teatro

os olhos ardendo, a xícara vazia, a hesitação

.

Nunca mais

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(Poema inspirado diretamente na peça “O Mistério Bufo”, de Maiakóvski, descrita aqui)

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Teatro

O Mistério Bufo de Maiakóvski

Mistério-Bufo é a nossa grande revolução, condensada em versos e em ação teatral. Mistério: aquilo que há de grande na revolução. Bufo: aquilo que há nela de ridículo. Os versos de Mistério-Bufo são as epígrafes dos comícios, a gritaria das ruas, a linguagem dos jornais. A ação de Mistério-Bufo é o movimento da massa, o conflito das classes, a luta das idéias: miniaturas do mundo entre as paredes do circo.”

Nunca fui um grande frequentador de teatro. Erro grosseiro. Quanto mais se conhece, mais se apaixona. Não cabe aqui entrar na comparação teatro x cinema. São coisas muito, muito diferentes. Guardado o carinho pela sétima arte e toda sua completude por excelência, o teatro me parece algo muito mais quente, visceral, dinâmico. Óbvio. “Mistério Bufo”, do russo Maiakóvski, apresentada no momento no CCBB de Brasília, foi o ápice da minha enxuta experiência teatral.

A começar pelo interesse profundo que os autores russos sempre me despertaram. Dentre os poetas, não há dúvidas de que Maiakóvski foi um dos maiores. O espetáculo em si (desnecessário dizer que ele é extremamente recomendado) seguiu a risca a recomendação do próprio: “No futuro, todos que encenarem, desempenharem os papéis, lerem e imprimirem o MISTÉRIO BUFO, mudem o conteúdo, – façam  ficar contemporâneo, moderno.”

Três atos. Luzes, painéis, rapel, acrobacias, intervenções, diversos ambientes, vídeo, música, dança: uma jornada literal vivida e degustada pelo público nos diferentes momentos e cenários da peça. Ousada, lírica, caótica. Russo, português, inglês, francês, espanhol, hebraico, italiano, difícil contar todas as línguas usadas.

A dualidade da revolução levada além dos clichês. De longe, o espetáculo mais rico em forma e conteúdo que já presenciei. O materialismo e o espiritual. O comportamento e a psiquê. Pequenas concessões cômicas ante o peso natural do tema. Recursos circenses sem estarem ali por acaso, gratuitamente. O quente e o frio. Mais atual e necessária ainda do que era em 1918.

Uma produção artística, afinal, que não te deixa sair ileso. E esta é a maior virtude que posso imaginar.

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