Literatura

Salinger e a maldição de Catcher In The Rye

Como esperado, a morte de JD Salinger resultou em lamentações em todos os cantos do mundo, por gente com muita ou nenhuma intimidade com sua obra. Quando li “O Apanhador no Campo de Centeio”, na adolescência, já havia lido Orwell, Huxley, Hesse, Rubem Braga, Hemingway, Fitzgerald, Conrad, Pessoa, Henry Miller, Bellow e diversos outros. “Demian”, de Hesse, outro livro considerado “ideal para ser lido antes dos 20 anos”, “1984” e os autores citados tiveram muito mais influência na minha vida do que Salinger.

“Catcher In The Rye”, claro, já chegou até mim coberto das loas mais extremas possíveis e absolutamente adorado por quase todo mundo que eu conhecia que gostava de literatura. Não bateu. Fechei o livro com a sensação de algo superestimado e abaixo das minhas expectativas. O impacto foi pequeno, soterrado por outros escritores, outras ideias e outros estilos que já tinha tomado contato antes.

Ainda assim, lendo “O Apanhador” é fácil compreender porque o livro é tão importante pra tanta gente boa, porque é considerado um clássico adolescente e porque vendeu tanto (estima-se que 65 milhões de cópias no mundo). Todos os elementos para agradar mentes incipientes estão ali. Holden Caulfield, loser e outsider, era o anti-herói ideal para um mundo em frangalhos após a segunda guerra mundial e com tantas transformações sociais, políticas, familiares, econômicas, comportamentais (etc, etc) acontecendo. Mas minha decepção com “Catcher” foi suficiente para impedir que fosse atrás das outras obras do escritor. Posso estar perdendo muito. Continuo achando que não.

Salinger, aparentemente, era malucão como boa parte dos melhores escritores estadunidenses do século XX. Ainda mais que Bukowski, por exemplo, outro ícone da literatura teen, com seus milhares de escritos (alguns maravilhosos, outros de envergonhar qualquer um). Acredito que dei mais chances para Bukowski por ter lido a biografia dele, escrita por Howard Sounes, livro que recomendo fortemente.

Apesar de não ser dos maiores admiradores de Salinger, ler “Catcher In The Rye” é um exercício interessante, com passagens boas o suficiente para obliterar as aborrecidas, que não são poucas. E o livro é curtinho, não causa grandes danos ou perda de tempo.

Sad but true.

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Rousseau e a modernidade

Esta passagem de Rousseau me pegou violentamente desde a primeira vez que li, anos atrás. Já a usei em alguns artigos, mas sempre me parece absolutamente relevante, perfeita, precisa. O que vivemos hoje e, desde muito, foi definido por Rousseau em 1761 (248 anos atrás!). Leia atentamente. Qualquer semelhança com a sua vida não é mera coincidência.

“a vida metropolitana é como uma permanente colisão de grupos e conluios, um contínuo fluxo e refluxo de opiniões conflititivas. (…) Todos se colocam freqüentemente em contradição consigo mesmos (…) e tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo (…) um mundo em que o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude, têm uma existência apenas local e limitada (…) eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar. (…) vejo apenas fantasmas que rondam meus olhos e desaparecem assim que os tento agarrar”. (JJ Rousseau, em “A Nova Heloísa”)

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A liberdade de ver os outros – David Foster Wallace

Lembrei desse texto agora, que aprecio bastante. Já falei de DFW e havia linkado o texto neste post aqui. Como fui conferir e a Piauí passou a exigir cadastro para lê-lo, achei por bem publicar. Vale a pena. E, ah, este foi “apenas” um texto preparado por ele para dar uma palestra que, se não me engano, era a formatura de alguma faculdade (a qual fugiu o nome agora). Imagino a reação da molecada…

A liberdade de ver os outros
por David Foster Wallace
Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

– Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

– Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude – mas
é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.

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Literatura

O único sentido íntimo das coisas…

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo…

(…)

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

( O Guardador de Rebanhos – Alberto Caeiro: desde sempre um dos meus poemas favoritos. Completo aqui)

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Literatura

Nunca Mais

Nunca mais o sorriso fácil

o deleite carnal

as madrugadas perdidas

as avenidas movimentadas

.

Nunca mais o cerão, o café preto

o lixo, o ego, a mesquinharia

o metrô apinhado

nunca mais

.

Nunca mais os raios de sol, a hipocrisia

a futilidade, o torpor, o ódio

Nunca mais o quarto bagunçado, a louça suja, a facada nas costas

as aparências, nunca mais

.

As manhãs claras, a areia da praia, o cheiro de mato

Nunca mais

Nunca mais o upload, a notícia barata, o trabalho braçal

o sorriso amargo

.

Nunca mais a mentira, a falta de tesão

o almoço nas praças

a tecnologia, a fruta doce e artificial

a água que escorre

.

Nunca mais as enchentes, a roupa suja, as noites perdidas em lugares abafados

a embriaguez da cerveja, o torpor do vinho

o frio nas pernas

a ilusão do respeito

.

Nunca mais o celular, o aluguel, a utilidade

os festivais, o delivery, a dor inesperada

a sabotagem, nunca mais

o futebol

.

Nunca mais o sono inconstante

a paciência, o bonzinho

nunca mais

as segundas cinzentas

.

Nunca mais o cheiro de estrume

a certeza, a convicção, o erro

nunca mais poemas vazios, frases calculadas

Downloads, propaganda

.

Nunca mais

Nunca mais a saúde perdida, o nojo, a cobrança, a tela

Nunca mais as cores, o azul, o branco, o verde

A resignação

.

Nunca mais a filosofia, as digressões baratas, o backup

O pé de página

Nunca mais

Coisa alguma

.

Nunca mais

a verdade, a construção, o humor

nunca mais o teatro

os olhos ardendo, a xícara vazia, a hesitação

.

Nunca mais

[podcast]http://www.crimideia.com.br/wp-content/uploads/pod/nuncamais2.mp3[/podcast]

(Poema inspirado diretamente na peça “O Mistério Bufo”, de Maiakóvski, descrita aqui)

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Homens Comuns

Estes dias me deparei com o lançamento recente da editora 8Inverso: as correspondências de Dostoiévski entre 1838 e 1880. Na verdade, as cartas são unilaterais. Não há contraponto. As respostas não estão presentes. As cartas traduzidas são endereçadas principalmente ao irmão, Mikhail.

A despeito destas falhas, o livro é obrigatório para os interessados pelo autor russo. Nelas, ficam expostas as entranhas de Dostoiévski. O tanto que um dos maiores gênios da literatura mundial é…um homem comum. Comum e ordinário como todos nós.

Oprimido pelo serviço militar, as doenças, a fome, a prisão, a carência, insegurança, o vício no jogo, a falta de dinheiro. Dostoiévski escreve por diversas vezes desesperado implorando por dinheiro ao pai e ao irmão. Lista todas as suas necessidades básicas, justifica o pedido por cada centavo que ele não tem para a mínima sobrevivência.

Como escritor, narra em detalhes o processo de criação das obras. Para além do perfeccionismo quase comum a todos os autores, Dostoiévski deixa claro a necessidade de fazer dinheiro com os livros. O inegável aspecto comercial. O quanto aguarda que se torne um escritor de sucesso para poder quitar as dívidas. O quanto acompanha, crítica por crítica, texto por texto, o que sai em jornais e periódicos sobre ele. Avalia os amigos. Os escritores do seu tempo: Gogol, já consagrado e Turguenev, a quem admira a princípio, tem uma série de desentendimentos e acaba se reconcicliando já no final da vida.

Definindo-se como vaidoso e ambicioso, Dostoiévski deixa entrever tudo que seria inimaginável a quem não conhece sua história, perceber. É óbvio que isto não invalida em absolutamente nada as obras que escreveu. Pelo contrário, as engrandece.

O trágico permeia o livro: além de todas as privações, o exílio na Sibéria, a prisão por conspirar contra o regime, as doenças, a epilepsia, a ordem de execução cancelada na última hora e posteriormente a crueldade do czar que manda os soldados fazerem todo o processo de execução apenas para “pregar uma peça” nos prisioneiros e anunciar a redução da pena. As mortes da esposa, da filha e do irmão no mesmo ano. O dinheiro ganho nos primeiros anos de seu reconhecimento como escritor perdido no jogo.

A inveja. A infinita insegurança. O quanto se preocupava com a opinião alheia. Um Dostoiévski frágil, atormentado, bestialmente comum. Humano. Tudo está em seus livros: cada trama, personagem, pensamento. Tudo é tirado literalmente da vida que teve.

É assustador, mesmo que óbvio, constatar estas mazelas materiais, espirituais e psicológicas, presentes em todos nós.

Ler as correspondências do autor russo é não só mergulhar no seu inferno pessoal como perceber a grandeza e a desgraça da vida. A eterna ânsia. A estupidez, o desejo e as necessidades primais. O quanto somos ridículos. E como os tais raros conseguem equilibrar isto com uma genialidade sem igual.

Fechei o livro com algumas lágrimas nos olhos e muitas feridas por cicatrizar.

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Recomendado: Acervo de José Mindlin para download

Muita gente tinha inveja do acervo de livros raros do bibliófilo José Mindlin. Não há mais porquê. À partir desta quarta-feira, 17 de junho, parte da coleção da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, formada com o que o empresário doou para a USP, já pode ser acessada virtualmente.

O projeto ‘Brasiliana Digital’, lançado ontem no MASP, pretende digitalizar cerca de 25 mil títulos históricos como, por exemplo, primeiras edições de Machado de Assis e dos relatos de viagem de Hans Staden (1557). Por enquanto, você já pode baixar cerca de 3 mil arquivos no site.

“O usuário verá o livro tal como ele é. Mas a partir desta imagem original, estará disponível uma versão digitalizada, como uma transcrição, que permitirá busca por palavras, frases e trechos”, adianta o organizador da coleção, o professor Pedro Puntoni.

por Rafael Cabral, do Link

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