Política & Economia

A tragédia japonesa transmutada em oportunidade

(Kyodo News/Associated Press – The Big Picture)

“O Japão é um país rico que pode se financiar a custos relativamente baixos no mercado externo. Num cenário positivo de recuperação, esse choque terrível pode fazer o país superar duas décadas de crescimento decepcionante.” (Mohamed El-Erian, presidente da gestora de investimentos Pimco, na edição 988 da revista Exame).

Não surpreende a afirmação de Mohamed: dentro da extensivamente conhecida lógica do capital, é isto mesmo. O terceiro pior terremoto da história, que atingiu 9 graus na escala Richter e até agora deixou 8.649 mortos e 13.261 desaparecidos, deverá cobrar também uma conta de até 235 bilhões de dólares na reconstrução do país, prevista para no mínimo 5 anos. 4% do PIB que parece “dinheiro de saquê” para a terceira maior economia do mundo, que até agora despejou mais de 330 bilhões de euros através do Banco do Japão para “evitar o pânico dos investidores”. O capitalismo vídeo-financeiro não pode sofrer, afinal.

A frieza dos números, a qual estamos tão acostumados, parece obliterar a capacidade de pensar e se envolver: um dos efeitos colaterais de um mundo obcecado com a capacidade técnica. Os mortos e desaparecidos são só dados a mais. Como sempre, após um período de grande depressão, é provável que a economia japonesa viva o maior “ciclo de crescimento” dos últimos 20 anos, como afirmou Mohamed. E isto, afinal, é bom. É o que o capital nos diz. É como ele trata a questão. O frisson do crescimento sob qualquer parâmetro é outro fetiche da nossa sociedade, lembrado aqui. Somos ensinados a acreditar que “crescer é sempre bom”, não importa o que esteja por trás disso. Ou seja: devemos ficar contentes pela recuperação japonesa. A tragédia, no fim, será boa para o país e o mundo. Certo?

Só outro caso flagrante do duplipensar orwelliano:

“Controle da realidade”, chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar”. (..) Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.”

É incrível como esse conceito de Orwell é tão presente e cabe para um sem número de situações. Tudo isso é algo que Marx, com todas suas falhas e lacunas, definiu precisamente quase 200 anos atrás. A essência do capitalismo, grosso modo, continua a mesma. Diz ele: “A burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção, e com eles todas as relações sociais. (…) Revolução ininterrupta da produção, contínua perturbação de todas as relações sociais, interminável incerteza e agitação, distinguem a era burguesa de todas as anteriores.”

Em 2005, no auge do sentimento inflamado dos meus 17 para 18 anos, escrevi este artigo traçando paralelos entre Marx, Berman, a democracia e o mundo moderno. No que agora vejo necessário completar com outra citação de Berman presente naquele texto. Necessário porque ela define com lucidez absoluta muito do que vivemos. A afirmação está presente no fundamental “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar – a aventura da modernidade”:

Nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos, para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.

É exatamente dentro disso que o pensamento de Mohamed se enquadra. A grande questão do capitalismo – e por isso ele é tão forte – é que se alimenta do seu próprio caos para sobreviver. É parte fundamental das suas engrenagens. Uma capacidade admirável, de astúcia infinita. Toda crise severa – como a mundial de 2008 – abalos menores (que acontecem frequentemente em economias diversas, como a grega e espanhola no momento), agitações políticas (Egito, Líbia, Costa do Marfim), movimentos populares (França em 2005-2007) e tragédias naturais como o terremoto do Chile em 2010 e agora o do Japão. Tudo isso é absorvido e transformado. É tratado como “oportunidade para o crescimento”.

Não há temor que ele não regurgite como esperança. Não há desafios e abalos políticos, econômicos, sociais e naturais que ele não coloque dentro da sua máquina de “mudança e desenvolvimento”. Uma má notícia: está ficando cada vez mais caro. O custo não só financeiro, mas “pessoal”, de postura e imaginário coletivo. A crise financeira de 2008 colocou subitamente os EUA como “Estados Unidos Socialistas da América”, com toda a sociedade pagando o prejuízo dos ricos, como afirmou Nouriel Roubini. As contradições e paradoxos são cada vez mais evidentes. A medida que a classe média avança e a educação melhora nos países “emergentes”, a população vai lentamente aprendendo a pensar.

Estamos à beira de um colapso energético, ambiental, com alimentos perto da escassez num futuro do próximo e várias outras questões que conhecemos bem. A ascensão de uma nova classe média em países como Brasil, China e Índia, almejando os níveis de consumo do mundo “desenvolvido”, coloca a própria “sustentabilidade” (risos)  do capitalismo em crise. Ao lentamente diminuir o abismo de desigualdade social, base central da sua existência, ele coloca em risco sua própria condição de “solução única para a sociedade”.

No melhor cenário possível, nosso vasto conhecimento científico e tecnológico, em constante ampliação, será capaz de gerar novas possibilidades de energia, padrões de consumo e soluções diversas otimizando todo o arcabouço arcaico que ainda vivemos. Mesmo que a demanda por aço, minério e petróleo, por exemplo, ainda vá crescer absurdamente com isso. É se equilibrando entre as necessidades e as demandas exigidas pela sociedade que o capitalismo tenta entregar o mínimo de condição razoável de vida. Muito avançado em boa parte do planeta e um escárnio na outra metade.

Neste cenário, vamos continuamente nos adaptar, inserindo preceitos e soluções diversas, seja do socialismo seja de qualquer corrente de pensamento e prática que podemos recorrer. Não acredito no colapso total: está previsto um investimento recorde para os próximos 20 anos. Serão 24 trilhões de dólares investidos na capacidade produtiva em 2030, o dobro da atual. Se tudo correr bem.

O capitalismo é muito sábio em entregar aquilo que precisamos, a começar pelo domínio total dos nossos anseios, vontades, desejos e mentalidade política, econômica e social. A nossa sociedade está sempre perto do fim ao mesmo tempo que nunca esteve tão bem: o desenvolvimento real dos últimos 50 anos não encontra precedentes na história. Até quando será possível viver assim e até quando a capacidade de adaptação do sistema dará conta do que ele mesmo produz é uma dúvida que só podemos responder na prática.

Estamos confortavelmente anestesiados.

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Filmes

Os curtas de Kléber Mendonça Filho

Kléber Mendonça Filho, que por muitos anos manteve o site Cinemascopio (atualmente em versão blog), é um dos melhores e mais lúcidos críticos de cinema do país (recomendo vasculhar os textos disponíveis no arquivo do blog), com trabalho realizado no Jornal do Commercio de Recife. Mas além do ofício de crítico (investigado por ele num documentário de 2008), Kléber é também grande realizador. Autor de diversos curtas de destaque desde a década de 90, sua visão de cinema é refinadamente crua, certeira, com humor e “reflexão” que não caem em armadilhas fáceis.

Há 1 ano Kléber colocou boa parte dos seus curtas em um canal no Vimeo em alta definição, este. Estão lá “Casa de Imagem” e “Homem de Projeção” (1992), “Enjaulado” (1997, com música de Dj Dolores e Stela Campos), “A Menina do Algodão”, de 2003, “Vinil Verde”, de 2004, ganhador de vários prêmios internacionais e um mini-clássico do “terror” brasileiro, “Eletrodoméstica”, de 2004, que aborda a classe média e o sexo no Brasil dos anos 90, “Noite de Sexta, Manhã de Sábado”, de 2006 e “Luz Industrial Mágica”, de 2008. De fora apenas o já citado “Crítico” e seu curta mais recente, o estupendo “Recife Frio”, que ilustra essa página, vencedor de várias categorias do Festival de Brasília de 2009.

Para seu deleite, “Recife Frio” está disponível no Porta Curtas, absolutamente imperdível. Em 2010 Kléber abandonou – espera-se que temporariamente – o ofício de crítico para filmar seu primeiro longa, “O Som Ao Redor”. Enquanto produz o longa, Kléber atualiza um Flickr, “blog em imagens”.

Vale a pena conferir todos os curtas deste que já é um dos cineastas mais “bem resolvidos” do país. E acompanhar a expectativa para “O Som Ao Redor”, que tem tudo para ser um marco.

Ps: o Cinemascopio deu origem também a uma das melhores comunidades para debate de cinema do Brasil no orkut, que infelizmente está meio abandonada desde o ano passado. Quem quiser se juntar para reanimar aquilo, é bem-vindo.

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Filmes

O Discurso do Rei – Tom Hooper

É fácil acusar “O Discurso do Rei” de ser quadrado, tradicional, pouco ambicioso, engessado, etc, etc. Como filme, sua estrutura é totalmente convencional. Na direção, o grande mérito de Hooper é o trabalho de atores, mas aí entram 95% de crédito dos próprios, convenhamos. E aí está o grande charme da película: a “química” soberba entre Colin Firth e Geoffrey Rush, espetaculares. Bonham Carter também está longe de fazer feio. Rush mostra uma das melhores atuações de sua carreira: a certeza é que quem ficar com o Oscar de ator coadjuvante- entre ele e Christian Bale, provavelmente – estará em boas mãos.

Se o filme é convencional, vale igualmente perguntar se seria possível fazer algo melhor dentro da história, do argumento e da abordagem proposta. Difícil. Assim, podemos dizer que a obra é praticamente perfeita no que se propõe, o que não deixa de ser um mérito tremendo. É redondo, correto e sem exageros. Não há pieguice aqui, por exemplo. Como gago, posso dizer que a caracterização de Firth é assombrosa. Ouvindo um trecho real do discurso de George VI retratado no filme, pode-se perceber com que sutileza Firth absorveu os mínimos detalhes da fala do rei.

Com todas suas limitações, “The King’s Speech” é muitíssimo bem acabado: algo que, por vezes, deve ser tão valorizado quanto certos delírios.

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Filmes

Cisne Negro – Darren Aronofsky

Disseram na comunidade do Cinemascopio que “Aronofsky parece aquele seu amigo que posta uma letra dos Engenheiros do Hawaii e ainda faz um parágrafo para “explicar” os versos”. De fato, eis aí o que incomoda profundamente no cinema do rapaz. Em 2009, escrevi que Aronofsky precisava parar como se tivesse mal de parkinson, algo como organizando uma rave cinematográfica. E apesar de ter uma cena em boate com música eletrônica regada a drogas em “Cisne Negro”, esse tique permanece “suavizado”, digamos.

Mas é sua insistência em reforçar o óbvio que compromete. É sua plena incapacidade de trabalhar com sutilezas, de sugerir com elegância, de perpassar a camada mais superficial possível. Aqui, é o jogo de espelhos onipresente, a imposição do furor sexual à Nina Sayers de Natalie Portman, a dicotomia entre o “cisne branco” e “negro” a todo momento, a transformação, o oposto da Lily de Mila Kunis.

Portman – numa magreza tão necessária para o papel quanto exagerada – está bem dentro das falhas diversas de Aronofsky. É um primor de redundância e tensão forçada a condução da trama. Portman e Cassel (que estava merecendo um papel de destaque) se movem dentro do maniqueísmo infindável do diretor. Não há nuances ou camadas aqui. Seu sentido de “progressão” é o mais básico possível. O papel da mãe de Nina, feito por Barbara Hersheys, e suas projeções, expectativas, ciúmes e disputas com a filha é novamente grosseiro e irritante.

Em suma, um ótimo argumento dirigido pelo realizador errado.

+

Recomendo bravamente esse texto de João Pereira Coutinho, na Folha, sobre o filme. Certeiro.

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Bravura Indômita – Coen Brothers

Se alguns chegaram a “desconfiar” quando os irmãos Coen anunciaram que fariam o remake de “True Grit”, 2 anos atrás, o filme acabado mostra que qualquer receio estava bastante equivocado. Os próprios Coen disseram não ter visto o filme original, de 69, e sua adaptação se baseou totalmente no livro: 100% verdadeiro ou não, fato é que o Bravura Indômita dos irmãos carrega o bom DNA autoral dos dois, com o freio puxado em alguns delírios e exageros de ironia e situações non-sense costumeiras – que às vezes funcionam, outras fracassam.

O responsável por isso, provavelmente, é Steven Spielberg. Produtor executivo da película. Dá pra sentir os dedinhos de Spielberg em opções mais tradicionais, como no final explicadinho e seguindo integralmente o livro, afinal. Mas nada que comprometa: Jeff Bridges está espetacular, numa atuação muito mais merecedora do Oscar – que deve ficar mesmo com Colin Firth – que a de “Crazy Heart”. Matt Damon está firme, investindo exatamente no que lhe cabe.

O destaque mesmo é Hailee Steinfeld. Com apenas 14 anos de idade, sua Mattie Ross é magnífica, estupenda, esbanjando a personalidade adulta que o personagem pede e deixando-se entregar ao viés “menininha” apenas quando requerido e mesmo assim numa segurança arrebatadora. O filme é dela. Não só por ser o elemento central da diferenciação do western tradicional, como por todo o eixo que representa e a atuação em si.

Outro elemento fundamental de True Grit é Roger Deakins. Responsável pela fotografia da maioria dos filmes dos Coen, Deakins já é, há muito, um dos melhores diretores de fotografia do planeta. Sempre soberbo, criando imagens belíssimas seja em grandes planos seja na iluminação natural de uma fogueira noturna. Recomendo bastante esta entrevista com ele. Cenas de já raro impacto e significância ganham ainda mais com o toque artístico de Deakins. “True Grit” é um deleite para os olhos.

Filme coeso, redondo, repleto de boas atuações, ótimo roteiro adaptado e uma fotografia fantástica. Aula de como renovar um clássico.

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The Fighter – David O. Russell

Um dos melhores filmes baseados no universo do boxe – fácil – desde “Raging Bull”. Christian Bale está assombroso. Uma das melhores interpretações da sua carreira – que talvez tenha seu ápice em “Rescue Dawn”. No fim, quando o verdadeiro Dick Ecklund aparece, dá pra notar como Bale absorveu incrivelmente a malandragem, o humor, a personalidade única do sujeito.

Baseado na história real de Ecklund – ex-lutador, celebridade local por derrubar Sugar Ray Leonard na década de 70, que se torna viciado em crack – e seu irmão Micky Ward, treinado por ele e com uma carreira conturbada em virtude não só do vício e dos crimes do irmão como da família “peculiar”: 7 irmãs – literalmente “os sete demônios” – a mãe louca (Melissa Leo, indicada ao Oscar pelo papel) e o pai segurando a barra no meio de tudo. Amy Adams vive a namorada de Ward e foi igualmente indicada, tendo papel firme na película. O’Keefe, o policial-treinador, foi interpretado pelo próprio no filme, dando ainda mais credibilidade ao negócio.

Engraçado, repleto de interpretações soberbas, envolvente e sem carregar demais numa história já dramática por conta própria, “The Fighter” é certeiro no que propõe. As cenas de luta são bem realistas, fugindo do exagero da série Rocky, por exemplo. Merece todos os prêmios que receber e, principalmente, que você vá ao cinema vê-lo. O melhor do ano até agora – com boas chances de se manter lá em cima.

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Além da Vida – Clint Eastwood

O filme vale por duas cenas: a de abertura, recriando o tsunami do Oceano Índico em 2004 na qual a jornalista francesa Marie Lelay, vivida por Cécile De France, sobrevive. E pelo encontro de Matt Damon e Bryce Dallas Howard na aula de culinária, um dos momentos mais belos  – de uma química tão particular – que vi na tela grande recentemente.

Fora isso, no entanto, é dos piores filmes de Clint Eastwood. O tema é explorado de forma clichê, o roteiro é fraquinho – trabalho equivocado de Peter Morgan, responsável por O Último Rei da Escócia, A Rainha e Frost/Nixon – as histórias paralelas se desenvolvem de maneira extremamente previsível, as habilidades de “vidente” de Damon são tratadas como o apertar de um botão. Há questões interessantes aqui, porém retratadas de modo frouxo, vazio ou óbvio demais.

Mesmo as relações humanas e de cada um com seus traumas fica aquém do que um diretor como Clint poderia fazer. Se “Invictus” já era tremendamente convencional, “Hereafter” segue o declínio, depois de uma obra-prima como “Gran Torino”, sem dúvida um dos melhores filmes da última década.

Que Clint encontre seu caminho novamente.

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