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O verão interminável

Lá fora o sol brilha desafiador e a brisa fresca persiste. A chuva vai rareando e o céu adquire outra tonalidade. Acabou o verão. Não pude estar próximo do oceano, sentir as suas bençãos, o sabor da maresia, a paz que transmite em dias tranquilos. Tenho uma relação umbilical com o mar: sinto o gosto da água salgada na boca desde o ventre da minha mãe. Pela primeira vez em muito tempo fiquei preso nas montanhas, refém da chuva impiedosa, do lodo acumulado, dos dias nublados que passam sem deixar rastro.

Mas o verão é, inevitavelmente, tempo de mudança. Meus 5 últimos, com certeza, provaram transformações que costumam se aquietar em outras épocas do ano. Os 3 meses do verão são agitados, de tormentas e desatino. Não raro apaixonantes, intensos, tristes ou explosivos. Não há meio termo no verão: não se gosta mais ou menos dele. Os corpos ficam mais macios. As noites caem com rapidez. Somos tomados por sentimentos de todas as naturezas. E vários ao mesmo tempo. Fica um lastro que ainda será digerido no outono e compreendido talvez só lá pelo meio do inverno, nas bicas de agosto.

Talvez tenha acabado o verão, diz o mestre. Uma lua excepcionalmente vistosa ainda veio se despedir. Um último fôlego de grandeza. O fim do verão é também o início do ano. Porque não dá para se deixar sufocar inteiramente pelas obrigações ordinárias da vida no verão. Triste de quem o faz. Não se passa esses 3 meses incólume. É, por excelência, a estação em que vislumbramos um pouco mais de liberdade e ousadia. Onde muito é permitido, mas nem tudo convém.

Lembro do rebolado dela passeando de mãos dadas comigo. Das brincadeiras na areia. Da pele ardida como de quem não conhecia o mar, apesar das décadas de intimidade. Do cheiro gostoso do seu cabelo e da frescura do seu corpo após um bom banho de água doce. Daqueles que só revigoram daquela maneira porque experimentamos o sal antes. Não, ela não precisava do verão para ficar mais bonita. Era apenas a convergência de duas delícias naturais. Tão piegas quanto verdadeiro. Somos todos hiperbólicos no verão.

Ali embaixo daquele solstício que parecia não terminar nunca eu a fitava com admiração genuína. O trópico de capricórnio enviava sua benção. Como se os 10 anos da Macondo solar de García Marquez se condensasse num dia. Tínhamos passado por muita coisa para chegar até ali. A turbulência de um mar agitado, levemente amarelado, revelando diversos tons de azul. Em verdade, aquilo poderia muito bem ser infindável. O sorriso no rosto permanece até agora. Só resta a figura dela deitada na areia, o corpo quente atrelado ao meu, o sabor agridoce dos seus lábios. Não há outra possibilidade aceitável. Estou lá. Estou lá.

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Easy Riders, Raging Bulls – Peter Biskind

Lançando em 1998 lá fora e no finalzinho de 2009 por aqui, em tradução de Ana Maria Bahiana, pela editora Intrínseca, “Easy Riders, Raging Bulls” conta os bastidores do surgimento de uma nova geração de cineastas e astros em Hollywood, na virada dos anos 60/70 e como eles transformaram a face da indústria para sempre. O livro deu origem também a um documentário. Este período é tido por imensa parte dos críticos e público como os melhores anos de Hollywood: é uma espécie de ápice do cinema estadunidense, a busca pelo controle maior dos diretores por seus filmes, da pretensão autoral aguda e também dos sucessos de bilheteria conquistados que acabaram financiando tudo aquilo.

Em certo momento, “O Poderoso Chefão” (1972), “O Exorcista” (1973) e “Tubarão” (1975) eram as três maiores bilheterias de todos os tempos, sem falar em “Star Wars”, de 1977, que redefiniu tudo. “The Godfather”, na época, ultrapassou em 6 meses a bilheteria que “E O Vento Levou” (1939) atingiu em 33 anos e vários relançamentos. Embora os valores ajustados para a inflação – e o número de tickets vendidos – mudem o jogo.

E por mais que seja arbitrário colocar os anos 70 como a melhor época do cinema USA, sem esquecer de nomes como William  Wyler, John Ford, Frank Capra, Hitchcock, Howard Hawks, George Cukor e tantos outros, o interesse maior de Biskind é contar os bastidores, a personalidade de cada um, as relações e os conflitos. Não faz uma análise profunda do cinema em si, aborda apenas superficialmente as influências do cinema europeu em toda nova trupe de diretores, muitas vezes tentando emular “in a american way” as inovações e o estilo da Novelle Vaugue, do realismo italiano, Bergman, etc. Biskind – e a revista que editava, a Premiere – não representam exatamente uma visão suficientemente crítica e inteligente do cinema.

Assim, muitas vezes o livro se perde em demasiados detalhes não exatamente relevantes, em intermináveis reproduções de brigas, reuniões, provocações, em cada namoradinha ou cada transa que cada um teve, em quem tomava mais drogas, era mais louco e insuportável, etc. Mas retirando todos estes excessos – que não são poucos – e omissões importantes, Biskind conseguiu fazer um bom caldo com os mais de 100 personagens que entrevistou: trabalho imenso que precisa ser valorizado, que enriquece e dá maior consistência ao livro. Em anexo, há uma lista de todas as entrevistas realizadas, todos os personagens e filmes citados no livro e filmografia recomendada dos diretores.

Tomando como o início da quebra de paradigmas “Bonnie & Clyde”, de 67 e “Easy Rider”, de 69, os capítulos se dividem em mostrar como Warren Beatty, Dennis Hopper, Arthur Penn, Bert Schneider, Bob Rafelson, Martin Scorsese, Robert Altman, William Friedkin, Francis Ford Coppola, Roman Polanski, Hal Ashby, Brian De Palma, George Lucas, Steven Spielberg, Paul Schrader, Terrence Mallick, Robert Towne, Peter Bogdanovich e atores como Jack Nicholson, Harvey Keitel, Al Pacino e Robert De Niro, entre tantos, transformaram Hollywood, conquistaram poder e prestígio jamais vistos e ao mesmo tempo criaram o cenário para seu próprio declínio. Woody Allen, Milos Forman e Stanley Kubrick são citados apenas eventualmente.

O livro em si é incapaz de ajudar a entender as mudanças ocorridas no mundo naquele período e este nem é seu objetivo, afinal. A liberação sexual, a politização, a entrada maciça das drogas na sociedade, a angústia e os anseios de uma geração: tudo isso está nos filmes que estes nomes realizaram. O livro foca nas mudanças da indústria – seja técnica, de equipamentos pesados para mais leves, com maiores possibilidades – seja administrativo, com os velhos figurões dos estúdios saindo de cena, dando lugar a outros nomes e os diretores tendo mais voz de decisão frente os produtores. A espera pelo sucesso ou fracasso de um filme é comum a todos, especialmente num tempo em que estavam apenas começando e o sucesso e a mitificação instantânea causaram pesados danos.

A competição extrema e os egos inflados paralelamente com a amizade e o esquema de ajuda mútua entre os diretores, frequentemente um participando e opinando no trabalho do outro. A fundação e os problemas da American Zoetrope fundada por Coppola e Lucas. As rusgas e disputas eternas entre diretores-roteiristas-produtores-atores-mídia. Pauline Kael, o nome mais famoso da crítica estadunidense, é citada exaustivamente e tida com enorme poder e influência, capaz de garantir o sucesso ou fracasso de alguns filmes. Algo a se contestar. O período marcou também a mudança no processo de distribuição – de poucas salas específicas para grandes esquemas simultâneos e do início do marketing na TV (que “Tubarão” tratou de intensificar).

Há boas histórias entre toneladas de cocaína, ácido, álcool, traições, explosões de fúria, delírios de grandeza e traições diversas – Dennis Hopper e William Friedkin são retratados como as personalidades mais insuportáveis, com Coppola chegando lá no auge do prestígio. Francis, aliás, não queria dirigir “O Poderoso Chefão” de jeito algum, topando por fazer uma troca, uma espécie de passaporte para os filmes realmente “autorais” que queria fazer, como “A Conversação”, de 74. Certo da recepção fria até a estreia, Coppola chegou a declarar: “acho que fracassei, peguei um livro popular, supercomercial, lascivo e transformei-o num bando de caras sentados em quartos escuros, falando”. Desnecessário reafirmar o impacto que o filme teve na cultura popular, no cinema e na vida de Coppola. E é interessante em, mesmo assim, a sua relutância em dirigir a segunda parte: além de continuações não serem comuns na indústria aquela época, seu receio é que, se falhasse, boa parte do crédito do primeiro filme iria para Marlon Brando. Está aqui, também, toda a histórica produção e filmagem catastrófica de “Apocalypse Now” em três fases nas Filipinas, incluindo o ataque cardíaco de Martin Sheen, as tempestades tropicais que varreram sets inteiro, as dezenas de doenças pegas por membros da equipe, etc.

Do outro lado da turma, Spielberg foi o único que acreditou em “Star Wars”: todo os outros debocharam, ridicularizaram e duvidaram do projeto de Lucas: o inferno no set e a pouca habilidade de Lucas para lidar com atores, descritos no livro, afastaram George da direção durante 22 anos, até o “Episódio I”. Como Spielberg previu, foi o maior sucesso de todos os tempos até então, gerando mudanças profundas no modus operandi de Hollywood e culpado pelo declínio do “cinema autoral” daquela época para a era dos blockbusters. Não à toa, Spielberg e Lucas são descritos como o que sempre foram: um caso a parte dos outros diretores, criados com a televisão, de mentalidade muito mais pop e comercial, sem pudores de chegar até lá. A diferença dos dois é óbvia e explica porque continuaram juntos por toda a década de 80 e além, produzindo jóias pop como “Indiana Jones”.

Scorsese, que mal usava drogas, se afundou na cocaína e chegou a beira da morte por uma hemorragia interna entre “New York, New York”, de 77 e “Raging Bulls”, de 80. Simbolicamente, “O Portal do Paraíso” – que custou 50 milhões e faturou 1,5 mi – de Michael Cimino, é tido como o fim da “Nova Hollywood” e a retomada total do poder pelos estúdios, pelo ambiente que eles próprios criaram, o que levou a desaguarem todas as brigas e inimizades feitas nos anos 70 na derrocada brutal de quase todos os diretores nos anos 80. (Também) por uma espécie de troco que levaram. E grande parte não só por terem propiciado o esquema dos blockbusters mas por eles mesmo terem envelhecido e se distanciado do público sem saber direito o que fazer, pelo preço que as drogas e os abusos cobraram, por tantas vidas destruídas no período e pelo o que a fama, o dinheiro e o status de gênios e deuses que consquistaram levaram junto o talento e a paixão pelo cinema.

Por mais falho e excessivamente centrado na fragilidade, nos egos e delírios de todos eles, “Easy Riders, Raging Bulls” é fundamental para entender não só o cinema e o espírito daquela época mas tudo que aconteceu com a indústria até hoje, mergulhando na vida de tanta gente essencial e, por consequencia, nos aproximando do cinema de todos eles: que é o que realmente importa.

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há um bom embate entre Rafael Galvão e Luiz Biajoni sobre o livro, aqui e aqui.

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“Elvis & Madona”, de Luiz Biajoni

Por mais barulho que tenha feito com seus livros anteriores – “Buceta” e “Sexo Anal” (download aqui) – foi somente em 2010 que conheci o trabalho de Luiz Biajoni, começando justamente pelo Sexo Anal (opa!), que contabiliza mais de 10 mil downloads na internet. Li num pulo só. Em poucas horas tinha devorado integralmente aquela estória policial peculiar. É Rubem Fonseca, Bukowski e Henry Miller. Três nomes de várias referências possíveis. Difícil imaginar alguém que consiga ler Biajoni sem ser desta maneira: dum gole só.

Biajoni não alivia. Não usa meio-termos. É bruto e escancarado com frequencia, vai direto no nervo. Tudo com um humor afiado, observações cortantes e uma aparente simplicidade enganosa. É cru, mas bem temperado. Traça retratos secos, desilusões genuínas, desgostos e pequenos prazeres. Investiga a mente humana com uma lupa de boteco. No melhor sentido possível. É aquele bar popular, lotado, com cerveja trincando, petiscos fumegantes e papos inflamados. É o flerte aberto. A passada de mão sacana. O swing com um canivete na mão.

“Elvis & Madona” é inspirado no filme de mesmo nome de Marcelo Laffitte, recém-lançado em festivais e que tem Igor Cotrim fazendo o travesti Madona e Simone Spoladore como a lésbica Elvis. É essa estória de amor improvável (eufemismo), passada nos becos, nos inferninhos, apartamentos e na orla de Copacabana que o livro aborda. Primeiro, inverte o caminho tradicional migratório da literatura pro cinema. É realmente assustador como o argumento de Laffitte casa tão bem com a atmosfera de Biajoni.

Falar só em “estória de amor” é reducionismo. Tráfico de drogas, corrupção policial, jornalismo, vidas amargas e cambaleantes, tabus diversos. Uma mente sangrando na sarjeta. Biajoni é urbano, pesado, tão ácido quanto doce e bem-humorado. Passagens leves e românticas convivem com uma linguagem hardcore e uma tensão constante.

Bia expõe na nossa cara todo nosso preconceito, acomodação, mediocridade. Toda a personalidade tacanha e hipócrita da burguesia – que, afinal, somos nós. Direta ou indiretamente, é um desafio. E por mais fora do normal que seja, dá para imaginar plenamente a vida de Elvis e Madona num Rio de Janeiro propositadamente caricato do submundo. O traveco bobalhão que já fez muita besteira e vive de salão de beleza e shows esporádicos na noite. A lésbica que veio do interior,  trabalha de entregadora e quer ser fotógrafa. O nome dos personagens, que remete à glamour e fama, não é uma ironia gratuita.

Não espere nada trivial. Biajoni mexe com o que é ordinário e cacete da maneira mais interessante, azeitada e direta possível. Sempre bom ter alguém que seja capaz disso por perto.

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15 Livros

Listas servem basicamente para que você possa encontrar sugestões bacanas, descobrir coisas novas, lembrar de outras, conhecer um pouco mais de quem a fez. Não é para concordar. E, como geralmente acontece, não listo abaixo os 15 livros que considero “os melhores”, mas os 15 que mais tiveram impacto na minha vida. Com um breve comentário de adendo. Difícil manter só 15. Ficaram de fora Emil Cioran, George Bernard Shaw, Joseph Conrad, Vladimir Nabokov, Turguenev, F. Scott Fitzgerald, Hemingway, Oscar Wilde, Marx e Bertrand Russel. 10 nomes que completam 25 livros. Um número símbolo pra mim, que adoro. Tá ótimo assim. É só uma lista, afinal. Mas parte da minha alma está aí:

O Verão e as Mulheres – Rubem Braga (1990): devorei tudo que encontrei de Rubem quando era moleque. poderia escolher qualquer um. mas este carrega no título duas paixões

TrechoSim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

1984 – George Orwell (1949): referência fundamental na minha vida, expressa em dezenas de artigos, blog, etc. um dos responsáveis pelo meu interesse por política

Trecho: “Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma idéia infinda de vitórias sobre a memória. “Controle da realidade”, chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar”.

Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.

As Grandes Obras Políticas, de Maquiavel a Nossos Dias – Jean Jacques-Chevallier (1982): emprestado por um professor no ensino médio, foi o livro que abriu minha cabeça à machadadas para o mundo. Chevallier é um monstro de erudição, mas consegue tratar cada autor e cada obra com precisão e o máximo de isenção possível, analisando as obras políticas chave do absolutismo até a democracia. Para ler várias vezes.

Trecho (Thomas Hobbes): Onde não existe governo ou lei, os homens naturalmente caem em contendas. Desde que os recursos são limitados, ali haverá competição, que leva ao medo, à inveja e a disputa. Os homens também naturalmente buscam a glória, derrubando os outros pelas costas, já que,  de um modo geral, as pessoas são mais ou menos iguais em força e inteligência, nenhuma pessoa ou nenhum grupo pode, com segurança, reter o poder. Assim sendo, o conflito é perpétuo, e “cada homem é inimigo de outro homem”.

Contraponto – Aldous Huxley (1928): belíssimo romance de Huxley, meu preferido.

TrechoRomântico, romântico! – escarneou ela. – Tens uma maneira tão absurdamente antiquada de pensar nas coisas. Matar e tripudiar sobre cadáveres e amar e o mais que segue. É ridículo. Por que não andas logo de fraque e plastrão?… Procura ser um pouco mais moderno.

– Prefiro ser humano.

– viver modernamente é viver rapidamente – continuou ela. – Não podes carregar um vagão cheio de idéias e romantismo nestes tempos. Quando viajamos de avião, devemos deixar para trás as bagagens pesadas. A velha alma de antanho sentava muito bem quando se vivia vagarosamente. Mas é pesada demais para os nossos dias. Não há lugar para ela no avião…

– Nem mesmo para um coração? – perguntou Walter. – Não me preocupa muito a alma. – Já uma vez se preocupara com ela. Mas agora que a sua vida não consistia em ler filósofos, ele estava um pouco menos interessado nela. – mas o coração – ajuntou -, o coração…

Lucy sacudiu a cabeça.

– Talvez seja uma pena – concedeu ela. – mas tudo tem o seu preço. Se gostamos da velocidade, se queremos ganhar terreno, não podemos levar bagagem. Trata-se de saber o que queremos, e de estarmos prontos a pagar o preço devido. Eu sei exatamente o que quero; assim, sacrifico a bagagem. Se te agrada viajar num caminhão de mudanças, viaja. Mas não esperes que eu te acompanhe, ó meu suavíssimo Walter. Não esperes que eu leve o teu piano de cauda no meu monoplano de dois lugares.

O Lobo da Estepe – Hermann Hesse (1927): outro dos meus queridos, tornou-se obsessão a partir dali.

Trecho:  Então, que quer mais?

– Quero mais. Não estou satisfeito em ser feliz, não fui criado para isso, não é este o meu destino. Meu destino é exatamente o contrário.

– Ser infeliz? Mas isso você era antes, quando não queria voltar para casa com medo da navalha.

– Não, Hermínia, é algo mais. Àquela época, concordo, eu era muito infeliz. Mas tratava-se de uma infelicidade idiota que não conduzia a nada.

– Por quê?

– Porque eu não devia sentir medo da morte se ao mesmo tempo a desejava. A infelicidade de que necessito e por que anseio é diferente: é uma infelicidade que me permitiria sofrer com ânsia e morrer com prazer. Essa é a infelicidade, ou felicidade, por que anseio.

– Compreendo. Nisso somos iguais. Mas que tem contra a felicidade que encontrou agora, com Maria? Por que não está contente?

– Não tenho nada contra essa felicidade. Oh, não! Gosto de Maria. Estou satisfeito com ela. É maravilhosa como um dia de sol em meio à um verão chuvoso. Mas sinto que isso não pode durar. Além do mais, trata-se de uma felicidade infrutífera. Dá satisfação, mas a satisfação não é alimento para mim. Faz adormecer o lobo da estepe, torna-o dócil. Mas não é uma felicidade pela qual se possa morrer.

– Mas é preciso morrer por alguma coisa, Lobo da Estepe?

– Creio que sim! Minha felicidade enche-me de contentamento e posso suportá-la ainda por algum tempo. Mas quando a felicidade me permite um pouco de reflexão, aí meu desejo não é de mantê-la para sempre, mas antes voltar a sofrer, só que de maneira mais bela e menos lamentável do que antes. Anseio por uma dor que me prepare e me faça desejar a morte.


O Processo – Kafka (1925): na minha jornada de descobrimento dos clássicos, Kafka bateu forte, inevitável.

TrechoK. mal prestou atenção nesses discursos; não dava muita importância ao direito, que talvez ainda tivesse, de dispor das suas coisas; para ele era muito mais relevante chegar à clareza sobre sua situação, mas na presença dessas pessoas não podia nem ao menos refletir; sem cessar, a barriga do segundo guarda – de fato só poderiam ser guardas – batia literalmente nele, de um modo amistoso, mas quando erguia os olhos via um rosto ossudo, seco, destoante desse corpo gordo, com o nariz forte virado para o lado, que se entendia por cima dele com o outro guarda. Que tipo de pessoas eram aquelas? Do que elas falavam? A que autoridade pertenciam? K. ainda vivia num Estado de Direito, reinava paz em toda parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele em sua casa? Ele tendia a levar as coisas pelo lado mais leve possível, a crer no pior só quando este acontecia, a não tomar nenhuma providência para o futuro, mesmo que tudo fosse ameaça. Aqui porém não parecia acertado; na verdade, tudo podia ser uma brincadeira, uma brincadeira pesada, que os colegas de banco tinham organizado por motivos desconhecidos, talvez porque ele hoje completasse trinta anos de idade; isso naturalmente era possível, talvez ele só precisasse de alguma maneira rir na cara dos guardas para que esses rissem juntos, quem sabe fossem serviçais da esquina, não pareciam diferentes deles – apesar de tudo estava dessa vez formalmente determinado, desde que viu pela primeira vez o guarda Franz, a não ceder a mínima vantagem que por acaso tivesse diante dessas pessoas. K. atribuía um perigo ínfimo ao fato de que mais tarde pudessem dizer que ele não entendia uma brincadeira, mas sem dúvida se lembrava – sem que de resto tivesse sido hábito seu aprender com a experiência – de alguns casos em si mesmos insignificantes nos quais, ao contrário dos amigos, havia se comportado conscientemente de modo descuidado, sem a mínima sensibilidade para as possíveis conseqüências, sendo assim punido pelo resultado. Isso não deveria acontecer de novo, pelo menos não desta vez; se era uma comédia, então iria participar dela.

Herzog – Saul Bellow (1964): a vida que aprendeu a prosperar com o veneno

Trecho (artigo recomendado): “Minha vida – não uma longa enfermidade, mas uma longa convalescença. O organismo que aprendeu a prosperar com o veneno. (…) Mas como continuamos encantadores, apesar de tudo.”

Trópico de Câncer – Henry Miller (1934): como não se envolver com a escrita desse cara?

TrechoNão tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.

E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza…. e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo…

Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.

É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito.


Ulysses – James Joyce (1922): qualquer coisa que se fale sobre Joyce é insuficiente

TrechoSaltou fora da plataforma de tiro e olhou seriamente para o seu observador, juntando em volta das pernas as dobras soltas de seu penhoar. A cara rechonchuda e sombria e a queixada oval e taciturna lembravam um prelado, patrono das artes na idade média. Um sorriso agradável desabrochou em seus lábios.

– A ironia das coisas! – disse ele alegremente. – Seu nome absurdo, um grego antigo!

Ele apontou com o dedo num gesto amigável e se encaminhou para o parapeito rindo consigo mesmo. Stephen Dedalus se aproximou, acompanhou-o e a meio caminho cansado se sentou na beira da plataforma de tiro, observando-o enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, molhava o pincel na tigela e passava a espuma na face e no pescoço.

Cem Anos de Solidão – Gabriel García Marquez (1967): minha definição de “suculento”

Trecho: Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.

Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar (A Aventura da Modernidade) – Marshall Berman (1982): Berman é um teórico incrível. um dos poucos que conseguem passar longe do “rebuscamento” tão forçado e desnecessário de 95% deles, sendo lúcido e brilhante.

TrechoNossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos, para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.

Memórias do Subsolo – Dostoyevsky (1864): pungente como só quem leu sabe

Trecho: “Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor frígido, envenenado e, sobretudo, sempiterno. Há de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa, até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores; e cada vez acrescentará por sua conta novos pormenores, ainda mais vergonhosos, zombando maldosamente de si mesmo e irritando-se com a sua própria imaginação. Ele próprio se envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo lembrará, tudo examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos inverossímeis, com o pretexto de que também estes poderiam ter acontecido, e nada perdoará.”

A Peste – Albert Camus (1947): agonizante

Trecho (artigo recomendado): “A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio.”

Almas Mortas – Gogol (1842): mergulho na sociedade russa, fundamental.

TrechoEu considero inteligente o homem que em vez de desprezar este ou aquele semelhante é capaz de o examinar com olhar penetrante, de lhe sondar por assim dizer a alma e descobrir o que se encontra em todos os seus desvãos. Tudo no homem se transforma com grande rapidez; num abrir e fechar de olhos, um terrível verme pode corroer-lhe as entranhas e devorar-lhe toda a sua substância vital. Muitas vezes uma paixão, grande ou mesquinha pouco importa, nasce e cresce num indivíduo para melhor sorte, obrigando-o a esquecer os mais sagrados deveres, a procurar em ínfimas bagatelas a grandeza e a santidade. As paixões humanas não têm conta, são tantas, tantas, como as areias do mar, e todas, as mais vis como as mais nobres, começam por ser escravas do homem para depois o tiranizarem.

Bem-aventurado aquele que, entre todas as paixões, escolhe a mais nobre: a sua felicidade aumenta de hora a hora, de minuto a minuto, e cada vez penetra mais no ilimitado paraíso da sua alma. Mas existem paixões cuja escolha não depende do homem: nascem com ele e não há força bastante para as repelir. Uma vontade superior as dirige, têm em si um poder de sedução que dura toda a vida. Desempenham neste mundo um importante papel: quer tragam consigo as trevas, quer as envolva uma auréola luminosa, são destinadas, umas e outras, a contribuir misteriosamente para o bem do homem.

O Guardador de Rebanhos – Alberto Caeiro (1925): poema definidor

Trecho:

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo…

(…)

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

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O peso do ser

Nada que é plano demais me atrai. Nada que não possua seu grau de tortuosidade, complexidade. Que não fira, de alguma maneira. Que arda. A pungência é necessária. Tão quanto perigosa. A pimenta, o imponderável, a ousadia. Qualidades tão escassas desde sempre. Somos soterrados com o pensar e agir de maneira medíocre, calculada, fria. Em arriscar pouco. Praticar joguinhos odientos. Funcionar pela hipocrisia e covardia. Pelo medo. Pela moral escrota que nos empurram. É de cansar qualquer um.

Esse papo todo de “peso do ser” lembra automaticamente Milan Kundera e seu largamente conhecido “A Insustentável Leveza do Ser”. Que gerou até um filme razoável com Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche. Apesar de achar Kundera superestimado, não dá pra negar que o livro tem suas qualidades e consegue lidar com algumas questões pulsantes.

Neste sentido, prefiro outra passagem clássica, de um autor que tenho mais intimidade e fala mais à mim. É o momento chave de “Brave New World”. É a metáfora perfeita para a essência desse texto. É quando “O Selvagem” questiona diretamente a redoma do “mundo novo” criado. É quando a assepsia e a comodidade começam a incomodar. Perdem o sentido. Afetam demais o que realmente importa. Diz ele:

-[Selvagem] Mas eu gosto dos inconvenientes.

-[Administrador] Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.

-Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.

-Em suma – disse Mustapha Mon -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.

-Pois bem, seja – retrucou o Selvagem em tom de desafio. – Eu reclamo o direito de ser infeliz.

-Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer, no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifóide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.

Houve um longo silêncio.

-Eu os reclamo todos – disse finalmente o Selvagem.

Mustapha Mond encolheu os ombros.

-À vontade – respondeu.

“O peso do ser” é algo muito caro a Huxley, direta ou indiretamente. “Contraponto” é preciso (ou propositadamente confuso) em analisar brilhantemente as diferentes personalidades e anseios de seus personagens. Mesmo com suas passagens políticas, sua inspiração clara no movimento musical, expressa no título, é a premissa perfeita para Huxley explorar as relações e a mente humana. Tudo com sua escrita fina, de beleza e plástica incomum. Para se encantar e degustar. O ritmo das palavras e a rara habilidade para construir diálogos e interseções fazem de “Contraponto” um dos livros que bateram mais forte em mim.

“Ser é ousar ser”, define Hesse. E paga-se um preço altíssimo por isso. Não há como assumir o peso da existência – mesmo que se consiga torná-la leve, por vezes, como deve ser – sem sofrer as duras consequencias disso. Não há margem de discussão possível para o aforismo de que “a ignorância é uma benção”. Nela, é tão mais fácil viver. Quando sua consciência quase inexiste e suas exigências são baixas, tudo fica mais fácil.

Peco pelo exagero, sempre. É da minha natureza. Vou fundo demais. Sou péssimo em esconder o que sinto, o que penso, o que quero. Me dôo extremamente. Orgulhoso. E espero o mínimo de volta. Dizem que “ser razoável” é bom. Em certos casos, sem dúvida. Mas prefiro algo além.

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Dos autores tristemente banalizados: Hermann Hesse

Hesse numa nice, numa tranquila, numa boa

Dá uma série. É inevitável que quando se torne “pop” a obra de alguém seja planificada, esquartejada, reproduzida de modo frenético e gratuito, raramente chegando ao cerne da coisa. No caso das letras, é quando as citações são infinitamente mais lidas e conhecidas do que os livros em si. Mal inevitável e antigo que tomou proporção imensurável na internet: o reino por excelência do faz de conta, da projeção.

Entre os autores que “mais gosto”, há uma categoria especial: os que considero pais. Aqueles que tenho cumplicidade tão grande, que mergulhei tão profundamente, que falam tão diretamente à minha alma que não podem ser colocados lado a lado dos demais. Hesse é um deles. Um dos principais. Com ele aprendi a ser alguém melhor. A pensar e olhar o mundo de outra maneira, literalmente. E se conseguisse aplicar 50% do que Hesse passa, seria alguém incomparavelmente melhor do que sou hoje.

De família protestante, Hesse foi estudar as religiões orientais (tendo viajado longamente para alguns países), especialmente o budismo. Ligado ao início da psicanálise na virada do século XIX/XX (Jung, principalmente) e também pelas marcas da Primeira Guerra Mundial, estes três pontos são fundamentais na sua literatura. Com sua vasta cultura autodidata e a incrível lucidez e sensibilidade para o humano – o que mais me toca nele, inevitavelmente – Hesse acabou por se tornar espécie de ícone do movimento hippie, como um dos autores mais “lidos” e referenciais.

Daí as tentativas fracassadas de ligá-lo ao movimento beatnik (um absurdo sem fim) e o início da popularização de sua obra. A espiritualidade tão forte em Hesse – uma espiritualidade profunda e livre de ranços e maniqueísmos – fala de modo único, dada sua incrível capacidade de colocar as coisas sob um prisma transparente ao mesmo tempo que rico e multifacetado.  Seu profundo conhecimento do cristianismo ocidental em colisão com as bases das religiões orientais geram um caldo irresistível. Ler “Demian” na adolescência, como foi o meu caso, faz bastante diferença. “Demian” é uma bela introdução à obra hesseana, recomendado classicamente para adolescentes dado o poder e simplicidade. Tentei exprimir – com as falhas inerentes – a essência de Demian, ligando-o a outras obras de Hesse e George Orwell, escrito e publicado na época que estava descobrindo tudo isso, em 2004, aos 17 anos.

“O Lobo da Estepe”, sua obra mais famosa, é de pungência assustadora. Harry Haller tornou-se um dos maiores outsiders da literatura, por mais que o termo seja clichê e insuficiente. “Siddartha” é onde Hesse expõe mais diretamente sua relação com  o budismo. “Narciso e Goldmund” vai fundo na psicanálise e história, ambientado durante o período da Peste Negra na Europa. Já “O Jogo das Contas de Vidro”, seu último romance (que lhe deu o Nobel de Literatura em 1946) é o ápice da complexidade e da mente de Hesse. Seu romance final, deliberadamente composto para reunir todas as características de sua obra até então, levando-o a outro nível. Diversos estilos literários misturados e uma infinidade de conceitos e dilemas, “Das Glasperlenspiel” tem força assustadora. No mais, recomendo também a biografia, o “Para Ler e Guardar”, compilação de fragmentos de cartas, pensamentos esporádicos e outros comentários de Hesse e seus diversos contos, sempre arrebatadores. Os demais livros até hoje infelizmente ainda não li.

A banalização é cruel porque reduz toda uma concepção de mundo, estética e filosófica, à uma mero fragmento. Rigorosamente, tudo é banalizado. A simplificação e exposição sucinta de conceitos e pensamentos é um problema quase inescapável. Esse próprio texto. Uma das bases do jornalismo, aliás, como sabemos. Piorado por não se tratar do buraco da rua da esquina que causa problema no trânsito – pra citar um caso diário – mas de coisas que demandam tempo, dedicação, interesse real. Que exigem mais que uma passada de olho rápida. Algo quase surreal em tempos tão estéreis.

A opressão do universo criado em torno do trabalho para total e irrestrita dominação da mente já foi discutida aqui nesse artigo. Sem falar na rede nefasta da própria sociedade.  O problema não é o carinho de alguém por uma obra que não gosta de vê-la jogada como qualquer coisa por aí, a exemplo do que costuma acontecer na música, quando algo se torna popular passa necessariamente a ficar pior para certo grupos de pessoas.  Não se trata de ciúme ou falsa sensação de exclusividade.

Como tudo que me é caro, não posso negar a tristeza pela banalização irrestrita. Mais que isso, perdemos o essencial. Ficam só os rótulos. Para pessoas que costumam receber 800 inserções de propaganda por dia desde crianças – em estudo que lamentavelmente não possuo o link, feito pelo pessoal do Adbusters – parece natural que nos guiemos por marcas e definições baratas. Rejeitando tudo que vá além disso.

A obra de Hesse, como de inúmeros outros (por exemplo Nietzsche que virou bottom de estudante universitário), acabam sofrendo desse mal. A capitalização da cultura não é coisa nova e tampouco obrigatoriamente nefasta, desde que acompanhada de estudo e interesse real. 1% dos casos. Daí que, numa provocação sob isso tudo, cabe a famosa frase de Hesse, extraída de “Lobo da Estepe”: só para os raros. Mesmo.

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Minha noção de D’us

Nunca esqueci. Não. Falar em “D’us” – e já explico o porquê da grafia – é um prazer. Não almejo o Deus “cristão”, “religioso”, comum, tão massivamente violentado e negligenciado todos esses [milhares] de anos. No cotidiano da vida mundana e banal, é inevitável escaparmos de certa essência. Certo elemento formador único. Certa sensibilidade e amplitude para a existência. Como se estivéssemos, na verdade, permanentemente desconectados do que realmente importa. Do que nos toca. Do que nos faz bem. E apenas em alguns raros momentos, por uma “epifania” ou uma visão clarificada e jamais gratuita, vemos, sentimos. Está ali: D’us. É a força motriz de tudo. O que lubrifica o labirinto do ser. É entre a pieguice autêntica, o clichê sincero e a estética inevitável que sempre me equilibro. É quando somos mais transparentes. É tentar emergir de tudo que é vil e ordinário. Baixo, ruim. É transformar a “mundanidade” dentro dela.

Tenho encontrado pouco com D’us. Muito aquém do que já consegui e do que deveria. Estar longe de D’us é permanecer afastado de si próprio: de seus verdadeiros anseios, buscas. Do seu espírito. Normal (e saudável) que fiquemos cambaleantes, tontos e angustiados por vezes. Que entremos num mundo sombrio e hostil. A armadilha é não conseguir sair dele. Vejo D’us quando consigo escrever textos necessários e prazerosos. Como este. Vejo D’us nas coisas mais belas e interessantes que encontro. Temos inclinação natural a admirar o que é belo, sábio, engraçado, sarcástico, fora do lugar comum. O que nos impele. Nos chama. Cria o desejo. Por tudo. A curiosidade, a afirmação, o diferente. A afetividade espontânea. Tão fundamental e tão esquecida.

Vejo D’us quando converso com um bom amigo. Quando me entrego a quem acho que deva merecer. Quando ouço música que consiga ir além do trivial. Que tem a rara capacidade de alcançar algo único ali dentro do seu cérebro, da sua alma. Quando me entrego aos pequenos prazeres entorpecentes e reveladores. Quando leio um autor que fale, mesmo, à mim. Quando troco conhecimento, inspiração, risadas. Na lucidez. No trabalho bem feito. Na crítica e na observação. No elogio, quando merecido. Nas coisas bobas, infantis. No hermético e no simples. Nas brincadeiras. Na seriedade. Na natureza. Na loucura e na retidão. No correto e no dissonante. D’us está ali. Sempre. É uma delícia me encontrar com ele.

O resto, meu amigo, é perfídia. Enganação, lucro, vida a esmo. D’us costuma estar em vários lugares. Menos naqueles escritos, designados, arbitrariamente impostos como a “casa” dele. Uma verdade universal é que nós, homens, arrogantes, traiçoeiros, pretensiosos, não sabemos coisa alguma. Ainda mais sobre D’us. Tentar – permanentemente – me reaproximar dele é tentar fazer o caminho necessário para dentro de mim. Dentro de tudo que dá valor e graça à minha vida.

Desde o primeiro momento que vi a grafia “D’us” senti algo diverso. Que alguma coisa de real significado estava ali. Sou assim. Gosto da beleza das palavras. Do sentido oculto. Verdadeiro ou imaginário. Do que podemos dar à elas. Da liberdade de criar, errar, ousar. Um amigo, querido. E com quem discordo de muita coisa, me explicou. E tomo aqui a liberdade de transcrever parte do seu conhecimento, dado a mim num email de 2008:

No Antigo Testamento, no texto original, as alusões a D’us nunca são nominais. Javé, o nome Dele, é escrito com as letras hebraicas Yod, He, Vav e He, sem vogais. E assim é impossível adivinhar a pronúncia do nome. Por isso, é comum na liturgia judaica se referir a Ele como HaShem (“O Nome”, em hebraico). Eu poderia passar o resto do dia falando sobre isso, mergulhando nas implicações cabalísticas e neoplatonistas d’O Nome, mas (…) fica pra próxima. O importante é saber que o nome de Deus é impronúnciavel. E por essa razão há o nome D’us. Existe uma outra razão, também: eu prefiro fazer distinção entre D’us mesmo, e “Deus”, uma palavra utilizada sem nenhuma significância no dia a dia, em expressões como “pelo amor de Deus”, “juro por Deus”, “ai Deus meu!”, etc. Como disse acima, eu sou extremamente supersticioso, e embora não seja religioso, prefiro manter o espírito presente no judaismo, onde a palavra ganha uma dimensão inédita em qualquer outra língua ocidental. “D’us” conserva um mistério, o desconhecido. E assim deve ser.

Difícil pensar em poucas coisas mais lindas que isso. O respeito e admiração que tenho por “D’us” é imensurável. E por isso procuro não ferir ao que julgo fundamental. Nem sempre consigo. É um exercício constante. Complicadíssimo. Que só pode ser simplificado pela prática. Pela intimidade. Só cada um pode alcançar o real sentido que “D’us” tem em nosso ser. O estrito significado que você guarda contigo. Ou a ausência dele.

Eis o que representa D’us pra mim. Com todas as lacunas que um breve texto pode deixar. Ahava.

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