Política & Economia

A esquerda sofre a maior derrota nas eleições 2014

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Seja qual for o resultado do segundo turno, o que se entende por “esquerda brasileira” já passa pelas eleições de 2014 como a maior derrotada do pleito. Por mais que a polarização seja questionada, dada a guinada para o centro de PSDB e PT, a verdade é que existe, sim, diferenças essenciais entre os principais partidos do país.

No final das eleições de 2010, produzi um especial com alguns artigos. Entre eles, “A agonia da extrema-esquerda”, “A encruzilhada da direita”“A elasticidade do efeito Marina”“O jeito Aécio de governar” e “Além de Lula”.

Considerando apenas os partidos de esquerda, a queda é brutal: o “fenômeno” Heloísa Helena teve 6,5 milhões de votos em 2006 (terceiro lugar naquelas eleições), quatro vezes mais que Luciana Genro, também pelo PSOL, conseguiu em 2014. Apesar de todo o barulho nas redes sociais, de toda a sua participação incisiva nos debates, levantando pautas que nenhum outro candidato, com exceção de Eduardo Jorge, poderiam encarar abertamente: aborto, LGBT, drogas, etc. Em termos de corrida presidencial, o PSOL encolheu absurdamente em 8 anos. Na conta de 2010, os partidos tradicionais de esquerda (PSOL, PSTU, PCB, PCO) somaram 1,2 milhão de votos.

Neste pleito, Luciana Genro, Zé Maria, Mauro Iasi e Rui Costa Pimenta, somados, alcançaram 1,8 milhão de votos, puxados pelo bom desempenho de Luciana (o dobro de Plínio em 2010, ainda que quatro vezes menos que Heloísa Helena em 2006).

Outras observações:

  • Dilma perdeu 4,4 milhões de votos (43,2 contra 47,6 em 2010)
  • O PSDB somou 1,7 milhão de votos a mais (34,8 de Aécio contra 33,1 de José Serra em 2010)
  • Marina Silva, considerando o aumento de 7 milhões de eleitores, permaneceu praticamente estagnada, com leve alta, saindo de 19,6 milhões em 2010 para 22,1 em 2014.
  • Impressiona a adesão que o discurso homofóbico de Levy Fidelix conquistou, saindo de 57,9 mil votos em 2010 para 446,8 mil em 2014, aumento de quase 800%, disparado a maior diferença entre o desempenho anterior e o atual.
  • Pastor Everaldo e seu discurso neo-liberal freak angariou 780 mil votos. Eduardo Jorge, que representa um partido confuso, que poderia ser classificado de centro, apesar de algumas posições progressistas, ficou com 630 mil votos.

Se tirarmos a excrescência do crescimento exponencial de Fidelix, o PT tem muitos motivos para repensar algumas práticas, sua relação histórica com a militância e as centrais sindicais, que se afastaram do partido durante o governo Dilma. A derrota clamorosa do partido em Pernambuco, terra de Lula, onde não elegeu sequer um deputado federal, é o sintoma mais evidente.

O desempenho pífio em São Paulo, onde Geraldo Alckmin se reelegeu com quase 60% dos votos válidos, Alexandre Padilha alcançou somente o terceiro lugar, com 3,8 milhões de votos, José Serra venceu Eduardo Suplicy para o Senado, acabando com três mandatos consecutivos do senador e Dilma amargou uma diferença de 44,2% para Aécio contra 25,8% dela, ou 4 milhões de votos a menos, representando quase toda a perda de 2010 para cá, é muito significativo. Na câmara estadual, apesar dos 22 deputados eleitos pelo PSDB e 14 pelo PT, além dos 14 deputados federais do PSDB e 10 do PT, os tucanos alcançaram a maioria dos deputados campeões de votos. No total, o PT foi o que mais perdeu deputados federais em todo o país, 18. O PSDB o que mais ganhou, passando de 44 para 55.

Em 2010, no texto sobre Marina Silva, afirmei:

Qualquer afirmação sobre a sua influência nas eleições, portanto, precisa ser cuidadosa. Marina tomou uma nova frente, com certeza fez muito mais do que imaginou que fosse conseguir. Ao contrário de Heloísa Helena, que sumiu do mapa político nacional em 4 anos e amargou o fracasso de não conseguir se eleger sequer senadora por Alagoas em 2010, tudo indica que Marina seguirá tendo papel importante na vida política nacional e, provavelmente, firmará sua posição como liderança absoluta do ambientalismo no Brasil.

É pouquíssimo provável que aceite algum ministério no governo Dilma. Se conseguir manter-se atuante e agregar novas forças ao jogo político (que ela reluta em fazer), sua candidatura pode ganhar corpo interessante se quiser vir novamente em 2014. Ficando no PV ou não.

Independente das possibilidades, Marina tem tempo e é inteligente o suficiente para definir os melhores passos da sua vida política. Sua presença de destaque em 2010, indubitavelmente, foi positiva para o país. Ela pode conseguir um pouco mais.

O problema é que Marina não fez absolutamente nada em 4 anos. Seu maior feito foi ter sido incapaz de reunir as assinaturas necessárias para a criação do seu partido, Rede Sustentabilidade, num país em que praticamente qualquer um consegue isso. Sua opção foi aceitar a posição de vice no PSB de Eduardo Campos, gerando uma chapa curiosa, em que as propostas assinalam para um partido “socialista de direita”. Apesar de toda a comoção natural com a morte trágica de Eduardo, sua crescida súbita nas pesquisas, chegando a “empatar” com Dilma no primeiro turno e supostamente vencê-la no segundo, de acordo com os institutos, Marina Silva acabou tendo o mesmo desempenho de 2010. Testado e reprovado em duas ocasiões consecutivas, incluindo a atual eleição com “tudo favorável”, é razoável afirmar que este foi o fim das pretensões maiores de Marina no quadro político nacional.

O “súbito crescimento” de Aécio, na verdade, é menos devido a sua notória melhora nos debates (cabe lembrar que Aécio jamais havia participado de qualquer debate televisivo nas suas eleições anteriores para governador e senador), evoluindo muito do primeiro ao último, da campanha em si e na imagem que procurou vender, mas principalmente na cota histórica que o PSDB sempre teve, além do sentimento anti-PT generalizado. Ainda que tenha crescido em comparação com Serra de 2010, como já dito, o desempenho de Aécio é bem inferior ao de Alckmin em 2006, que conquistou 40 milhões de votos (sem uma terceira força tão polarizada como Marina Silva, diga-se).

Vejamos o que escrevi sobre Aécio em 2010:

Resta Aécio Neves. A raposa imprevisível. O único nome da direita capaz de fazer frente ao governo em 2014.

Aécio tem trunfos: o fator Tancredo Neves, os 8 anos de governo em Minas, segundo maior colégio eleitoral, com maciça aprovação, a menor rejeição que seu nome tem em São Paulo comparado a Serra e Alckmin, a capacidade de transmitir um conceito de “centro”, dado ao “morde e assopra”, a fazer oposição “generosa e firme”. Se aproximando de Lula e batendo de leve quando achava que tinha de bater. A velha malícia mineira.

Neves acaba de dar entrevista para a Folha defendendo uma “refundação do PSDB”. Quer que o partido “assuma o seu passado sem vergonha, realce a importância que as privatizações tiveram para o país, defina com larga antecedência um plano de governo”. O que posso dizer é: boa sorte com isso. Aécio será, disparado, o principal nome da oposição no governo Dilma. Aparecerá muito na mídia, que “o adora”. Preparando o terreno para 2014. Aécio pode ainda, dada sua forte relação com líderes importantes do PSB – a terceira força do governo atual, com 8 governadores, etc – cooptar o PSB para o lado do PSDB, criando uma coligação mais forte contra PT/PMDB.

É exatamente a situação que se assinala agora: a ala do PSB mais a favor de uma aliança com Aécio tende a vencer a opção do presidente do partido, Roberto Amaral. Marina, que é historicamente do PT, ministra de Lula, deve apoiar Aécio impondo condições, tentando conquistar algo para além da neutralidade declarada em 2010, que não gerou capital político nenhum para ela. No entanto, é altamente questionável a capacidade de transferência de votos pessoal de Marina Silva para o seu eleitorado, tão heterogêneo, tão misto, com interesses e motivações diversos. O único político capaz de realmente garantir transferência de votos no Brasil hoje é Luís Inácio Lula da Silva. Como 2010, quando a maioria dos votos de Marina migrou para Serra, deve acontecer o mesmo em 2014.

Em suma, o segundo turno coloca, de novo, PT e PSDB frente a frente, lidando com suas heranças, feitos e erros acumulados nos últimos 20 anos. Assusta o quanto o sentimento anti-PT, baseado em generalismos e platitudes que não encontram corpo no mundo real, como a suposta pecha de “corrupto”, algo até brando quando comparado o histórico de corrupção de FHC, o mensalão mineiro, os comprovados escândalos do metrô em SP, os desvios de Aécio Neves e Anastasia em Minas Gerais na saúde e educação, o aeroporto para a família de Aécio em Cláudio (MG) e por aí afora. Nem o próprio Aécio parece capaz de abordar o que fez como Senador, num mandato nulo em que dedicou a tecer críticas genéricas ao governo e viajar para o Rio de Janeiro. Resta as suas “realizações no governo de Minas Gerais”, altamente questionáveis, como o aumento absurdo da dívida do estado e o aumento superior a 52,3% nos índices de homicídio entre 2002 e 2012, contra a sua balela de “choque de gestão”.

Nada indica que o segundo turno será capaz de subir o nível e debater diferenças de propostas ao invés de corrupção e alianças espúrias. As “mudanças” exigidas pelas ruas em 2013 tiveram pouco ou nenhum impacto prático nos governadores e senadores já eleitos, nos segundos turnos desenhados e nos deputados vencedores. Como afirma o Diap, o Congresso será o mais conservador desde 1964, o que dificulta bastante a possibilidade de mudanças reais e reformas estruturais nos próximos 4 anos, seja com Dilma ou Aécio.

É a prova de que sobra muito oba-oba e um show de “reivindicações” sem nenhuma profundidade, faltando muita educação política, consciência histórica, noção de pacto federativo e penetração nas camadas mais profundas da política e administração pública na população em geral. Com isso, perdemos todos.

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Thomas Piketty e o óbvio ululante do capitalismo

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Sobretudo, o grande mérito do economista francês Thomas Piketty é colocar no centro do debate mundial, extrapolando o gueto acadêmico da economia e sociologia – e qual área acadêmica não é um gueto? – a questão da desigualdade evidente do capitalismo, porquê ela existe e como chegamos à ela no contexto da economia contemporânea.

É o óbvio ululante sistematizado, bem estruturado, resultado de toda a carreira acadêmica de Piketty e seus muitos colegas, parceiros e colaboradores. As principais conclusões de “O Capital no Século XXI” circulam pela mídia mundial, pelas redes sociais num momento relevante, pós crise de 2008, pós Occupy Wall Street e pós um turbilhão de coisas que aconteceram nos últimos anos, direta ou indiretamente ligadas aos problemas intrínsecos do capital que não preciso elencar aqui.

Vendendo mais de 100 mil exemplares somente nos últimos 60 dias, Piketty se mantém nas listas dos mais vendidos dos Estados Unidos e foi lançado ao curioso status de economia pop. Entender suas origens, parece-me, é importante. Escreve Ivan Martins:

“Como estudioso de desigualdade mais respeitado da última década nos meios acadêmicos, é improvável que Piketty seja efêmero. Prodígio matemático, ele chegou aos Estados Unidos em 1993 para dar aulas de economia no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), uma das universidades mais respeitadas do mundo. Tinha 22 anos. Três anos depois, voltou à França, convencido de que os americanos se preocupavam mais com matemática e teoria do que com o mundo real. Admirador do historiador Fernand Braudel e do antropólogo Claude Lévi-Strauss, sonhava testar com fatos as convicções que sobravam no seu meio. Mergulhou na pesquisa histórica sobre renda e patrimônio e criou, em 15 anos de trabalho, com ajuda de colaboradores no mundo todo, um banco de dados sobre a evolução da renda e da desigualdade que cobre 30 países. Esse acervo é a base de seu livro.”

E lembra Pascal Emmanuel-Gobry, no Wall Street Journal.

“Alguns no pequeno círculo dos economistas respeitados da França dizem que Piketty pode ser melhor compreendido através de sua história pessoal. Ele vem de uma família da classe trabalhadora. Seus pais foram membros ativos do radical partido trotskista Lutte Ouvrière (Luta dos Trabalhadores). Após concluir o ensino médio numa escola pública, aos 16 anos, ele foi aceito na Ecole Normale Supérieure, a mais seletiva das superseletivas grandes faculdades francesas. Ele terminou o doutorado aos 22 anos, tendo recebido um prêmio da Associação Francesa de Economia pela melhor tese do ano. O tema: a redistribuição da riqueza.

Em suma, Piketty é algo cada vez mais raro: um produto puro da meritocracia francesa, um jovem da classe trabalhadora que frequentou escola pública, conseguiu entrar numa faculdade de elite e acabou numa área prestigiada do serviço público (ele ajudou a fundar e liderou a Escola de Economia de Paris). Esse foi o modelo responsável por reviver a França no pós-guerra, mas que agora está em frangalhos.”

Se Piketty não é tão radical quanto parece – já que se opôs à última medida do governo socialista francês, as famosas 35 horas de trabalho por semana, e defendeu cortes nos impostos trabalhistas – é um alívio que não seja. Uma das premissas do radicalismo, especialmente o tipo de radicalismo caduco e viciado que (felizmente) uma parte cada vez menor da esquerda mundial conserva, é que ele fica restrito a pouquíssima gente e tem falhas clamorosas já na fonte.

Não é o caso do francês e esta é ótima notícia. O que ele apresenta?

Afirma que a distribuição de renda, marca da prosperidade no século XX, estancou e hoje regride. Desde os anos 1970, as curvas de desigualdade começaram a subir na Europa e nos Estados Unidos. Na última contagem, em 2010, o 1% mais rico dos EUA detinha 20% da renda total, percentual equivalente ao da Europa em 1910 – época de privilégios hereditários, em que a mobilidade social era pífia; a meritocracia, mínima; e os mais pobres, estruturalmente condenados a continuar assim – a menos que casassem com a fortuna.

(…)

Com a desaceleração das economias ocidentais e a suspensão dos controles sobre as finanças, Piketty afirma que a força da concentração voltou a prevalecer – e sugere, polidamente, que a tendência é piorar no século XXI. Se alguma providência não for tomada, diz ele, poderemos chegar rapidamente a um cenário em que 0,1% da população mundial – cerca de 4,5 milhões de pessoas – detenha entre 40% e 60% da riqueza global. Seria a volta ao mundo econômico de Charles Dickens e Machado de Assis, em que herdeiros afortunados viviam cercados de aproveitadores ou dependentes. Nesse universo, havia pouco espaço para o mérito pessoal, para a iniciativa empreendedora ou para uma vida estável de classe média.

Os supersalários e/ou a brutal diferença entre a remuneração dos mais ricos – nas mais diversas formas do capitalismo videofinanceiro – faria o resto. Não é novidade e estamos rodeados de exemplos suficientes que corroboram a tese. É só olhar ao redor, acompanhar as notícias e o mercado mundial, o óbvio ululante de Piketty, graças a alguma coisa, embalado com verniz inteligível, chega disponível para uma parcela maior de pessoas e chama atenção para o problema.

Em excelente (e longo) artigo na Piauí, Marcelo Medeiros traz alguns recortes interessantes:

Como a concentração da riqueza afeta a dinâmica política e as oportunidades econômicas, seus resultados de longo prazo são difíceis de prever.

Piketty argumenta que os mercados não possuem nem os mecanismos nem os incentivos para frear esse processo. Ele precisa ser controlado por instituições, a começar pelo Estado. Em apoio a esse raciocínio, Piketty invoca a história de mais de vinte países: nos períodos em que os mercados são desregulados, a desigualdade aumenta; nos períodos em que são regulados, cai. Um debate que era antes travado de forma acalorada no terreno da especulação e da ideologia agora tem mais de 100 anos de estatísticas exaustivas como critério de desempate.

 Uh-oh, olha o Estado aí novamente. O Estado que foi chamado para limpar a sujeira que a crise de 2008 gerou. Em resumo, para salvar da bancarrota completa centenas de empresas, bancos, etc. Para tirar do bolso do contribuinte o que a falta de regulação gerou, devolvendo os ativos podres que esse mesmo sistema nos vendeu.

Explica Marcelo:

Temos um Estado com razoável capacidade para fazer investimentos em políticas públicas. Mas que usa uma parte pequena dessa capacidade para promover a igualdade. Proporcionalmente, o poder público contribui mais para as rendas dos 5% mais ricos do que para as rendas dos 50% mais pobres, mesmo depois de considerar as transferências da assistência social. Ou seja, por não ser suficientemente igualitarista, o Estado contribui para aumentar a desigualdade, em vez de minorá-la. Serviços públicos, como os de educação e saúde,  melhoram o cenário, é verdade, mas não são suficientes para revertê-lo.

O imposto de renda, que no Brasil tem alíquotas ainda menores que as dos Estados Unidos, ajuda a frear os níveis de desigualdade, mas pouco. O imposto de renda brasileiro é bastante progressivo, mas limitado. Isso porque a carga do imposto de renda no país é baixa, ao contrário do que se costuma anunciar. “Escorchante” é um adjetivo que só se usa para tributos. Os dados de Piketty mostram que de escorchante o imposto de renda não tem nada: países desenvolvidos optaram por ter uma carga de impostos muito maior do que a nossa quando ainda estavam no nível em que estamos hoje. Além disso, enquanto esses países sempre taxaram patrimônio e heranças, no Brasil esses tributos são de pouca importância. Nos Estados Unidos, boa parte da educação pública é financiada com o equivalente do nosso iptu,e a prática de doações a fundações é disseminada porque os impostos sobre heranças são expressivos.

Ao que tudo indica, a desigualdade entre os ricos e o restante da população é um tipo particular de desigualdade, bem mais particular do que a diferença entre pobres e não pobres. Aquilo que tradicionalmente se usa para explicar as diferenças de renda entre os 99% mais pobres não explica tão bem a desigualdade entre o 1% mais rico e os demais.

“Todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”, lembram? É ótima notícia que isso esteja, em todas as esferas e de todas as maneiras, sendo finalmente posto em cheque.

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Alan Greenspan: risco, natureza humana e o futuro das previsões

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“Quando o Lehman entrou em default em 15 de setembro de 2008, as perdas globais das ações de empresas negociadas em bolsa atingiam 16 trilhões de dólares. Semanas depois, já somavam 35 trilhões. Ao fim, as perdas na economia como um todo chegaram a cerca de 50 TRILHÕES DE DÓLARES, o equivalente a quatro quintos do PIB global de 2008. (…) Não vejo nenhuma maneira de eliminar exuberâncias irracionais periódicas sem reduzir significativamente a taxa média de crescimento da economia“.

Alan Greenspan, ex-presidente do FED e guru global, lambendo as feridas no seu novo livro, “O Mapa e o Território – Risco, Natureza Humana e o Futuro das Previsões” (Cia das Letras) te lembrando porquê não vai ficar tudo bem e defendendo o fim da obsessão com o crescimento econômico. Algo impensável há pouquíssimo tempo atrás. De reputação quase indestrutível, Greenspan se viu no centro da maior crise da história do capitalismo (segundo ele mesmo) e agora tenta fazer o “mea culpa”. Compreensível.

Em 2010, escrevi isso aqui: a ressaca do mundo no vermelho. Vida que segue, pataquadas que se acumulam, aquele clima geral de anestesia desconfortável. Um rombo desse tamanho – 50 trilhões – não desaparece. É uma hecatombe que repercute de maneira brutal nestes 5 anos de maneira evidente ou não. Não por acaso, o governo americano foi obrigado a entrar numa encarniçada batalha política para elevar o teto da dívida, para impedir um calote. O primeiro calote profundo da história do governo dos Estados Unidos só foi evitado porque resolveram esticar um pouco mais a corda. Tido como os títulos públicos mais “seguros” do mundo, praticamente com “risco zero”, um novo tombo representaria um grande baque na economia global.

A gravidade da situação, claro, também é fruto da quantidade absurda de dinheiro usada para salvar empresas e bancos completamente falidos e resgatar “títulos podres”. É a famosa história do cobertor curto demais, que cobre a cabeça e deixa os pés expostos. Da solução paliativa. Do buraco negro que não dá pra sair com meia dúzia de conluios e assinatura.

Conceitualmente, Greenspan, um ícone do capitalismo, afirma que a única saída para tentar – tentar – diminuir o rombo e buscar alternativas realmente eficazes no longo prazo é diminuir o fetiche do crescimento a qualquer custo. Algo que soaria como exorcismo dos brabos de comunistas barbudos do interior da Sibéria em qualquer tempo. O diagnóstico de Greenspan é tão simples quanto categórico: do jeito que está, não dá mais. E isto vale para o mundo todo.

Quais caminhos vamos escolher trilhar para sair desse buraco que cavamos com gosto é que definirá a possibilidade real de sair dos escombros.

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Marshall Berman (1940-2013)

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Marshall Berman morreu na última quarta-feira, 11 de setembro (realmente uma data maldita), aos 72, por ataque cardíaco. Berman, que descobri aos 17, exerceu grande influência na minha formação. Pela primeira vez eu encontrava um filósofo (e educador, cientista político) que conseguia analisar Marx sob uma ótima completamente nova, fresca, lúcida, sem os ranços de linguagem, sem vícios ideológicos, autêntico, “moderno”.

“Tudo Que é Sólido Desmanchar no Ar”, o livro chave de Berman, lançado em 1982, afirma que Marx foi o primeiro dos modernistas. E traça paralelos soberbos que vão desde ícones da cultura ocidental clássica, como Goethe, passando pelo Velho Testamento (e sua origem judaica) até a urbanização de Nova York, sua casa, cidade tão cara para Berman, que influenciou tanto sua visão de mundo e que deu origem a seus dois últimos livros. Berman também abraça e retorce a cultura de rua e a cultura pop da sua época, abordando desde o grafitti até o hip-hop dos Beastie Boys, grupo que ele coloca no seu panteão.

É o tipo do cara que dialoga de forma absurdamente culta, porém fluída, que mergulha no próprio tempo em que vive e consegue olhar para teorias estabelecidas e traçar novas e vigorosas ideias. O urbanismo, a arquitetura – vale a pena pesquisar sua relação “curiosa” com Oscar Niemeyer – o “caos” organizado das cidades, os conflitos e paradoxos da vida moderna numa prosa fluída, acessível e encantadora.

É o sujeito que você teria enorme prazer em sentar na mesa do bar, pedir uma cerveja e dialogar durante horas sobre temas que fazem parte da sua vida, quer você perceba ou não, de maneira pra lá de agradável, ainda que incomode. É um dos melhores e mais importantes pensadores do nosso tempo. Obrigado por tudo, Bermão.

Leia:

Marshall Berman, Marxist Humanis Mensch

Marx, Berman, capitalismo, democracia e modernidade

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Guia prático para a maioria dos clichês sobre o Bolsa Família

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André Forastieri, há muito tempo, se tornou o “agent provocateur” do R7. Apesar de outro camaradinha ter adotado a pecha de “o provocador” do site, que é melhor nem comentar. Conheço o Forasta e conhecendo a figura você entende um pouco mais da mente do cara, o problema é o sinalizador no meio de uma ilha de malucos que é o chamariz que seus textos costumam se tornar. Pois bem, nesse aí, fresquinho, sobre o bolsa família, Forasta foi certeiro. Serve de guia prático para responder a maioria das falácias que eu mesmo tenho me deparado esses anos todos. Espero economizar um bocado de conversa de bar. Abaixo um trecho e leia completo aqui.

O PT explora politicamente o Bolsa Família? Claro, é isso que governos fazem, e oposição idem. Aécio Neves até já disse que quem criou o Bolsa Família foi o PSDB (não foi, mas criaram coisas parecidas. Lula, quando o Fome Zero não decolou, reempacotou os benefícios criados pelos tucanos, engordou um tanto o bolo, e marketou magistralmente). Minha sugestão é que os governos estaduais e municipais da oposição criem seus próprios bolsa isso e bolsa aquilo. Que bom se os políticos disputarem nosso voto nos dando dinheiro, em vez de tirar…

O questionamento do Bolsa Família mais furado de todos é o moral: é justo uma pessoa receber dinheiro, sem ter trabalhado por isso? Nem merece resposta. A questão não é de justiça, é de isonomia. Os mais ricos já recebem bastante dinheiro sem trabalhar. Embolsam rendimentos de suas aplicações financeiras, aluguel de imóveis e tal. Acionistas de empresas recebem dinheiro sem trabalhar: os lucros. E herdeiros recebem dinheiro sem trabalhar, às vezes sem nunca ter trabalhado de verdade. Muitas crianças brasileiras felizardas já têm seus futuros assegurados, graças ao que construíram seus pais ou avós. Nunca precisarão pegar no batente (e mesmo assim, como sabemos, muita gente abonada continua trabalhando, porque assim se sente realizada, produtiva, estimulada, ganha mais dinheiro ainda etc. Dinheiro é 100%, mas não é tudo…).

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Para Além do Capital – István Mészáros

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“O mais importante estudo sobre o pensamento político e econômico de Marx – especialmente de O capital e dos Grundrisse –, Para além do capital, a monumental obra do filósofo húngaro István Mészáros, chega finalmente ao Brasil. Este livro, com o qual a Boitempo comemora o seu centésimo título, leva-nos a revisitar a obra marxiana de explicação do capital e de sua dinâmica, reconhecendo sua grandiosidade e também suas lacunas. Para além do capital passa em revista velhos conceitos, como o de que não há alternativa ao capital e ao capitalismo, e lança luz nova sobre questões atuais, permitindo-nos redescobrir Marx como um pensador do presente e do futuro.”

De graça, aqui.

De nada.

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A tragédia japonesa transmutada em oportunidade

(Kyodo News/Associated Press – The Big Picture)

“O Japão é um país rico que pode se financiar a custos relativamente baixos no mercado externo. Num cenário positivo de recuperação, esse choque terrível pode fazer o país superar duas décadas de crescimento decepcionante.” (Mohamed El-Erian, presidente da gestora de investimentos Pimco, na edição 988 da revista Exame).

Não surpreende a afirmação de Mohamed: dentro da extensivamente conhecida lógica do capital, é isto mesmo. O terceiro pior terremoto da história, que atingiu 9 graus na escala Richter e até agora deixou 8.649 mortos e 13.261 desaparecidos, deverá cobrar também uma conta de até 235 bilhões de dólares na reconstrução do país, prevista para no mínimo 5 anos. 4% do PIB que parece “dinheiro de saquê” para a terceira maior economia do mundo, que até agora despejou mais de 330 bilhões de euros através do Banco do Japão para “evitar o pânico dos investidores”. O capitalismo vídeo-financeiro não pode sofrer, afinal.

A frieza dos números, a qual estamos tão acostumados, parece obliterar a capacidade de pensar e se envolver: um dos efeitos colaterais de um mundo obcecado com a capacidade técnica. Os mortos e desaparecidos são só dados a mais. Como sempre, após um período de grande depressão, é provável que a economia japonesa viva o maior “ciclo de crescimento” dos últimos 20 anos, como afirmou Mohamed. E isto, afinal, é bom. É o que o capital nos diz. É como ele trata a questão. O frisson do crescimento sob qualquer parâmetro é outro fetiche da nossa sociedade, lembrado aqui. Somos ensinados a acreditar que “crescer é sempre bom”, não importa o que esteja por trás disso. Ou seja: devemos ficar contentes pela recuperação japonesa. A tragédia, no fim, será boa para o país e o mundo. Certo?

Só outro caso flagrante do duplipensar orwelliano:

“Controle da realidade”, chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar”. (..) Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.”

É incrível como esse conceito de Orwell é tão presente e cabe para um sem número de situações. Tudo isso é algo que Marx, com todas suas falhas e lacunas, definiu precisamente quase 200 anos atrás. A essência do capitalismo, grosso modo, continua a mesma. Diz ele: “A burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção, e com eles todas as relações sociais. (…) Revolução ininterrupta da produção, contínua perturbação de todas as relações sociais, interminável incerteza e agitação, distinguem a era burguesa de todas as anteriores.”

Em 2005, no auge do sentimento inflamado dos meus 17 para 18 anos, escrevi este artigo traçando paralelos entre Marx, Berman, a democracia e o mundo moderno. No que agora vejo necessário completar com outra citação de Berman presente naquele texto. Necessário porque ela define com lucidez absoluta muito do que vivemos. A afirmação está presente no fundamental “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar – a aventura da modernidade”:

Nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos, para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.

É exatamente dentro disso que o pensamento de Mohamed se enquadra. A grande questão do capitalismo – e por isso ele é tão forte – é que se alimenta do seu próprio caos para sobreviver. É parte fundamental das suas engrenagens. Uma capacidade admirável, de astúcia infinita. Toda crise severa – como a mundial de 2008 – abalos menores (que acontecem frequentemente em economias diversas, como a grega e espanhola no momento), agitações políticas (Egito, Líbia, Costa do Marfim), movimentos populares (França em 2005-2007) e tragédias naturais como o terremoto do Chile em 2010 e agora o do Japão. Tudo isso é absorvido e transformado. É tratado como “oportunidade para o crescimento”.

Não há temor que ele não regurgite como esperança. Não há desafios e abalos políticos, econômicos, sociais e naturais que ele não coloque dentro da sua máquina de “mudança e desenvolvimento”. Uma má notícia: está ficando cada vez mais caro. O custo não só financeiro, mas “pessoal”, de postura e imaginário coletivo. A crise financeira de 2008 colocou subitamente os EUA como “Estados Unidos Socialistas da América”, com toda a sociedade pagando o prejuízo dos ricos, como afirmou Nouriel Roubini. As contradições e paradoxos são cada vez mais evidentes. A medida que a classe média avança e a educação melhora nos países “emergentes”, a população vai lentamente aprendendo a pensar.

Estamos à beira de um colapso energético, ambiental, com alimentos perto da escassez num futuro do próximo e várias outras questões que conhecemos bem. A ascensão de uma nova classe média em países como Brasil, China e Índia, almejando os níveis de consumo do mundo “desenvolvido”, coloca a própria “sustentabilidade” (risos)  do capitalismo em crise. Ao lentamente diminuir o abismo de desigualdade social, base central da sua existência, ele coloca em risco sua própria condição de “solução única para a sociedade”.

No melhor cenário possível, nosso vasto conhecimento científico e tecnológico, em constante ampliação, será capaz de gerar novas possibilidades de energia, padrões de consumo e soluções diversas otimizando todo o arcabouço arcaico que ainda vivemos. Mesmo que a demanda por aço, minério e petróleo, por exemplo, ainda vá crescer absurdamente com isso. É se equilibrando entre as necessidades e as demandas exigidas pela sociedade que o capitalismo tenta entregar o mínimo de condição razoável de vida. Muito avançado em boa parte do planeta e um escárnio na outra metade.

Neste cenário, vamos continuamente nos adaptar, inserindo preceitos e soluções diversas, seja do socialismo seja de qualquer corrente de pensamento e prática que podemos recorrer. Não acredito no colapso total: está previsto um investimento recorde para os próximos 20 anos. Serão 24 trilhões de dólares investidos na capacidade produtiva em 2030, o dobro da atual. Se tudo correr bem.

O capitalismo é muito sábio em entregar aquilo que precisamos, a começar pelo domínio total dos nossos anseios, vontades, desejos e mentalidade política, econômica e social. A nossa sociedade está sempre perto do fim ao mesmo tempo que nunca esteve tão bem: o desenvolvimento real dos últimos 50 anos não encontra precedentes na história. Até quando será possível viver assim e até quando a capacidade de adaptação do sistema dará conta do que ele mesmo produz é uma dúvida que só podemos responder na prática.

Estamos confortavelmente anestesiados.

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