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A elite contra-ataca

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Já era de se esperar que a proposta do governo de reservar 50% das vagas em universidades federais para alunos de escola pública e outras questões dependendo do estado (notícia aqui) fosse gerar uma reação exaltada das nossas tradicionais elites e da meia-dúzia de babacas que acham que detém a “soberania” das ideias e se consideram “formadores de opinião”.

Mesmo com essa expectativa, me deparo hoje com esse inominável texto de Hélio Schwartsman na Folha. Meio atordoado, abri a janela para me certificar de que as tropas da raça superior não estavam à caminho da minha casa. Mas não. Hoje a imposição é mais sutil e funciona por diversos outros caminhos. E sempre que algum deles é ameaçado, a reação vem imediata.

Hélio é “bacharel em filosofia”. Isto dito, o texto merece ser destrinchado. Ele afirma:

O primeiro problema é que ela ignora os mecanismos sociopsicológicos que fazem com que jovens de estratos sociais mais baixos se beneficiem de estudar com alunos ricos.

Somente nessa frase Hélio revela toda a sua mentalidade elitista, seu rancor e suas ideias de raça superior. Ele afirma que os pobres, pretos, pardos, etc, se BENEFICIAM em estudar com alunos ricos e absorver destes seres iluminados toda sua inteligência, classe, educação, caráter e comportamento exemplar.

Continua:

A ideia central é que, se você lançar uns poucos estudantes cotistas num ambiente elitizado dizendo-lhes para nadar ou afogar-se, muitos deles conseguirão dar suas braçadas. Ou eles adotam os valores elitistas do grupo em que se encontram, ou ficam excluídos da vida social, algo a que humanos têm horror.

Ou seja: se os ricos e brancos forem maioria, esses sortudos cotistas poderão se relacionar com eles e aproveitar do ambiente superior em que vivem, sendo forçados a “evoluírem” sob pena da exclusão total.

E finaliza:

Mas, se você atirar um número muito grande de cotistas, esse efeito da socialização pelos pares tende a dissipar-se. O risco é levar para a instituição de elite o mesmo conjunto de problemas que conspira contra a eficácia das escolas frequentadas pelas camadas menos privilegiadas.

Ou seja: se você contaminar o ambiente das escolas de elite com uma quantidade muito grande de cotistas e seres baixos como eles, é provável que, num bando maior, eles destruam o caráter dos alunos de elite, a qualidade da educação e o ambiente universitário num todo. Que tragam para dentro da universidade “o lixo das ruas”.

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Eu não vejo nenhuma diferença entre afirmações como essa e ideias de raça superior ariana, do domínio intelectual da elite e tantas outras. É inacreditável e inadmissível que um jornal de grande circulação abra espaço para algo dessa natureza. Corrijo: inadmissível porém esperado.

Os programas sociais do governo Lula pra cá vem causando uma enxaqueca onipresente na nossa elite e na classe-média alta. Os ataques contra o Bolsa Família são comuns e diários. No ensino superior, o Pro-Uni, instituído em 2004/2005 já começou a tirar o sono dos nossos coronéis. Infelizmente (para eles) os anos de lá pra cá vem provado sistematicamente (dois exemplos, aqui e aqui) que os alunos do Pro-Uni tem desempenho bem superior aos demais em todas as áreas avaliadas pelo ENADE.

Outro texto recente, do jornalista Márvio dos Anjos, toca em outro ponto recorrente desse pensamento contra o sistema de cotas. A ideia de que é absurdo escancarar as portas do ensino superior através de leis ao invés de melhorar o ensino de base e “dar a mesma condição” aos estudantes pobres e/ou de escolas públicas de competir com o das escolas particulares. A aparente “preocupação” com a qualidade da educação pública de base esconde o arrepio que sentem com a possibilidade de ver “seu mundo invadido”.

Apelam para o conceito de “meritocracia”, de “igualdade de oportunidades” para todas as pessoas, independente de classe social, cor, etc. Que seria “injusto” reservar cotas porque isso “tira a igualdade de acesso dos ricos contra os pobres”. É incrível como o pensamento é capaz de distorcer completamente a essência, colocando ao seu favor. Duplipensar, Orwell diria.

O amigo Vinícius Duarte, numa série de tweets, matou a pau ontem: “O “meritocrata-padrão” estudou na melhor escola, fez 3 refeições/dia e o pai tem os melhores contatos. É tipo Bolt correr na paraolimpíada.”.

É claro que nossa educação de base precisa melhorar. É óbvio que a qualidade do nosso ensino, a infra-estrutura, o salário dos professores, etc, precisa evoluir bastante. Os dados, resultados de exames, avaliações e a vida prática mostram isso. Como muitos, sou filho de professora da rede pública e estudei a vida inteira em escola pública, como meus irmãos, a maioria dos meus amigos, parentes, etc. Sabemos na prática como é.

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O problema é que esta “obsessão” da elite em insistir no argumento de “é preciso melhorar a base antes de partir para o superior” não é um desejo ou uma necessidade comum da sociedade, é apenas uma defesa para tentar evitar que mexam naquilo que eles dominaram por tanto e tanto tempo. Acredito que isso seja nítido e flagrante. O problema é que mesmo com um planejamento sério, investimento sistemático e melhores contínuas na educação de base, o que vem sendo feito nos últimos anos, é um processo mais lento que o ideal, que leva – ou levará – alguns bons anos e os resultados idem.

Outro problema é que mesmo que tivéssemos uma educação pública de qualidade, não é só o ambiente escolar que faz diferença, como o Vinícius lembrou. O aluno rico ou com vida confortável tem ao seu redor todas as condições, dentro e fora da escola, para se preocupar apenas em estudar, para se alimentar tremendamente bem, para ter um lazer fantástico, praticar as atividades que quiser, em ser aceito e bem visto no meio social, em não precisar trabalhar cedo e não ter muito com o que se aborrecer.

Como sabemos, o mundo é desigual e tudo indica que permanecerá assim. Portanto, infelizmente precisamos de sistemas como o de cotas para tentar diminuir esse abismo de oportunidades e possibilidades. Tentar. O ideal, claro, seria que nós não precisássemos instituir um sistema de cotas nas universidades federais. Mas ele se faz necessário. O sistema de cotas permite diversas distorções que precisam ser analisadas com atenção e cuidado.

Enquanto as coisas na base não mudam, ou mesmo que mudassem, o adolescente ou o adulto que nunca teve as condições ideias continuaria se dando mal. Enquanto os ricos defendem “a mudança na base”, a injustiça e o abismo na ponta do sistema continua a mesma. É uma posição muito cômoda e fácil.

É de se enojar que tenhamos de ler porcarias autoritárias e de raça superior como o do tal Hélio. É uma afronta à inteligência e à qualquer sociedade que queira ser um pouquinho saudável, um pouquinho mais igualitária e um tanto mais possível de se viver.

É inadmissível que tentem empurrar esse tipo de pensamento nojento goela abaixo sem que recebam a sua farsa desmontada de volta.

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Stanford, Princeton e Berkeley: cursos online e grátis

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Parece bom demais pra ser verdade, mas é. O Coursera oferece cursos online gratuitos com professores de algumas das universidades mais famosas do mundo, como Stanford, Princeton e Berkeley. Várias áreas de conhecimento estão disponíveis: humanas e ciências sociais, computação, economia e negócios, medicina e biologia, etc.

O sistema funciona através de vídeo-aulas semanais, o que inclui vários quiz e outras formas de averiguar o conhecimento. Um bom exemplo é este curso de Game Theory.

As turmas tem data limite para serem fechadas e o site oferece certificado. Excelente dica para quem possui inglês fluente.

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Brasília representa tudo que está errado no Brasil

Ao mesmo tempo em que é a cidade maravilhosa descrita no post anterior, Brasília simboliza, precisamente, muito do pior deste país. A desigualdade e o abismo social não está tão escancarada em nenhum outro lugar como em Brasília. Na capital federal, pobre, definitivamente, não se mistura com os ricos e a classe média. Não dividem o mesmo espaço, as mesmas ruas, os mesmos lugares. Brasília é como um enorme condomínio fechado. Nele, só o funcionalismo público e a classe média alta podem permanecer. No Plano Piloto, a total e irrestrita separação social atinge seu ápice e sua manifestação mais flagrante.

De fato, os candangos pioneiros foram literalmente expulsos à força para as cidades satélites (como brilhantemente mostra o documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra”, do Vladimir Carvalho, obrigatório e já lembrado aqui). A “limpeza social” feita em Brasília deliberadamente desde sua fundação nunca fez questão de ser sutil.

Com a especulação imobiliária a níveis extremos desde sempre, a classe média foi cada vez mais empurrada para rincões pós-Plano Piloto como Guará e Águas Claras. A favelização de Brasília tem no nome abjeto de Joaquim Roriz, que conseguiu a façanha de instalar uma oligarquia por 4 mandatos e 16 anos (!!!!), o maior representante. Roriz alcançou o pleno objetivo de instalar o caos social, econômico e urbano. A capital do país entregue nas mãos de uma besta completa por quase 20 anos. Recomendo o ótimo artigo de Leandro Fortes sobre o tema.

Brasília foi concebida e administrada para os ricos. Os milhões de carros que se amontoam pelo DF expressam não só o alto poder aquisitivo da população, como o descaso total com quem não possui veículo. Os parcos e maltratados ônibus, o metrô caríssimo e ineficiente. As passagens para pedestres no Plano (como a que ilustra este texto) totalmente abandonadas, sujas, escuras e perigosas. Brasília não foi feita para que se ande a pé. Nunca. Jamais. Tente fazer isso e terá a experiência máxima da opulência errônea da capital.

Os pobres que se amontoem e se estrepem nos seus grotões de sujeira, violência e falta de infra-estrutura básica. Os cargos e concursos públicos, vocação por excelência, acabaram por criar a maior obsessão e sentido de vida do brasiliense. Não existe vida fora da teta do Estado/Distrito. Não existe possibilidade de se ter uma carreira ou uma vida “normal” fora de um cargo público. É o Estado paquidérmico, lento, pesado, caríssimo, que oferece empregos que pagam substancialmente acima da média do mercado. É dinheiro mal e porcamente gasto. Desperdiçado.

É a corrupção endêmica, enraizada, esperada. Por concepcão, concentra todo o jogo político podre a que estamos acostumados (e anestesiados). São os recursos recebidos indevidamente da União. A sua questionável natureza administrativa e política. O planejamento para abrigar  o erro.

Lugar de gente fria, egoísta, não raro ignorante. Que a generalização não ofenda quem não se encaixe no perfil. Toda generalização é arbitrária, falha e – até – provocativa. É o reino do dinheiro fácil. Da meritocracia da coleira. Do aplauso ao adestramento. Ao curral da mente. Do clima insuportável. Da bolha imobiliária, automotiva, inflacionária. Do total e irrestrito abandono aos direitos mais básicos. Da vida fútil e das conversas insuportáveis.

Brasília concentra tudo que está presente em outros lugares do Brasil. De forma drástica, maciça, draconiana. É a utopia que não deu certo. A concepção “humanitária” que fracassou miseravelmente. Entre os paradoxos e as questões expostas aqui – dentre outras fatalmente esquecidas – Brasília se equilibra. Tateia no escuro. Se consola com o belíssimo céu favorecido pela arquitetura e posição geográfica.

Muito pouco para uma cidade que nasceu para ser justamente o oposto do que atualmente é. Ou, na verdade, talvez tenha cumprido seu objetivo verdadeiro, principal. Criar uma ilha de riqueza e qualidade de vida para alguns e manter o povo longe, bem longe de suas estruturas, sem nenhuma capacidade de questionamento, resistência. Parabéns, Brasília!

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Brasília é um caminho sem volta

Se não está disposto a se apaixonar, não vá para Brasília. Ela jamais sairá de você. Toda metrópole tem suas similaridades. Toda cidade do interior também. Brasília não. Ela é diferente de todas as cidades do mundo. Singular, única. Sair do ninho do caos normal de qualquer metrópole brasileira e parar em Brasília é uma covardia: com você e sua cidade anterior. O Plano Piloto irá te acostumar mal, muito mal. Este texto não é para analisar os problemas flagrantes do Distrito Federal. Matéria para outro post. É apenas para tentar expressar minha relação com o Plano Piloto.

Brasília não fede a lixo e urina. Não tem vielas incompreensíveis, vias sem saída e sinalização, desordem urbana. É absurdamente segura. Tanto quanto alguém que tenha nascido na cidade sequer pode compreender. Não há pobreza no Plano Piloto. Simplesmente porque não há espaço para isso. O principal problema que você irá encontrar são as hordas de playboys e alguns zumbis do crack. Presentes na maioria das cidades, diga-se.

Brasília é limpa, verde, cordial. As largas ruas planas e arborizadas. O charme do Lago Paranoá. Todo lugar, dentro do Plano, é perto. Supermercados, farmácias, padarias, restaurantes, bares, lojas, shoppings, parques, etc – está tudo ali, a poucos minutos. Brasília zomba do resto do mundo. Experimenta o imponderável. Está contínua e inapelavelmente na frente do seu tempo. Acolhe uma tranquilidade quase surreal.

Marca. Permanece. Desafia e torna pálido os outros lugares. Parece o “mundo de Poliana”. Não é. Dentre os inúmeros defeitos e problemas que a cidade possui, Brasília ainda chega bem perto do melhor cenário possível. Mérito de toda sua concepção e outros elementos posteriores.

É uma delícia e um perigo estar em Brasília. Conseguir quebrar o encantamento. Sair da esfera criada. Tento. Não sei se quero. A tentação é grande demais para ser negada. A cidade chama, ecoa. Faz de tudo para ser amada. Difícil resistir.

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Hora do show?

Edson Moreira: o show não pode parar

Comentei sobre o lado humano e “esportivo” do caso Bruno lá no Olímpico, neste texto aqui. Há outro, inevitável. É regra que a imprensa eleja seus fetiches e proporcione “coberturas” absurdamente massivas 24 horas sobre qualquer coisa que se transforma numa “tragédia nacional” e tenha potencial para audiência. Sempre foi assim. Sempre será. Na época do caso Isabela Nardoni, falei sobre isso aqui. Vale para o momento atual. Se encaixa para a maioria de situações assim.

Fora o papelão habitual da imprensa, há sempre um ou outro “personagem” que, claro, aproveita os holofotes para ter suas (muitas) horas de fama. O delegado Edson Moreira, no entanto, ultrapassa bastante essa média. Piorado por ser algo que interfere diretamente nas investigações e por consequencia no resultado final do processo. Alguém de importância tão grande no caso, que define os rumos a serem dados, não poderia nunca ter o tipo de comportamento que Edson Moreira tem.

Entrevistas coletivas todos os dias. Várias vezes, se necessário. Entrevistas “exclusivas” para programas específicos, como o Brasil Urgente, de Datena. Qualquer indício novo: entrevista. Qualquer coisa que possa causar frisson e ser complicada ao máximo, ele faz. Qual explicação para levar um comboio de carros com Bruno e Macarrão a atravessar Belo Horizonte para fazerem um exame de DNA que poderia ser feito onde estavam e que no fim ainda foi – por direito- negado pelos dois?

Edson Moreira tem necessidade gritante de atenção. De causar “espetáculo”. De extrair cada gota da cobertura da imprensa. Além disso: “interpreta” os depoimentos que recebe, numa clara “atuação”, pretensiosamente dramática. E “atua” como se fossem fatos o que são apenas versões. Aliás, há que se lembrar em que momento da história versões e indícios preliminares, não comprovados e duvidosos tornaram-se fatos incontestáveis, suficientes para condenar alguém e resolver a investigação com rapidez assustadora.

Todas as regras profissionais, éticas, do bom-senso, da razão, do aceitável, do respeito, da lisura, da independência e da competência são quebradas. Lastimável não apenas pelo citado aqui, mas porque este comportamento inaceitável atinge diretamente a capacidade de apuração e levantamento dos dados e o julgamento final. Para todos os lados. “Vergonha” é um termo insuficiente para definir um descalabro desses.

Mais:

Mídia legitima versão policial como única e verdadeira

E se Bruno for inocente?

Nem novela mexicana…

Istoé: A polícia que nada prova

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Futebol, integração (!?) e as feridas expostas da América

Das coisas boas que o futebol traz, é curioso o senso de “integração” manifesto no twitter por diferentes pessoas em relação à América Latina nesta Copa do Mundo. A recente (e dramática) classificação uruguaia para a semifinal do torneio – que não acontecia há 40 anos – foi sintomática em engrossar a torcida por nossos vizinhos. Claro que boa parte disso é efêmero, ancorado numa simpatia frágil, interesse comedido e envolvimento passageiro.

Ainda assim, simboliza algo. Lembrei de um texto que publiquei em 2007: uma breve análise do livro “As Veias Abertas da América Latina”, clássico absoluto sobre a história crítica do continente, lançado pelo escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano em 1971.

Galeano é conhecido, também, por ser fanático por futebol, tendo livros dedicados inteiramente ao tema (como “Futebol Ao Sol e À Sombra”), sendo sempre solicitado para comentar o esporte. No artigo, cito justamente nosso quase total e irrestrito desconhecimento sobre a história da América Latina, além do papel imperialista do Brasil na região. A Copa do Mundo, mesmo que brevemente, ajuda a termos um olhar mais aproximado dos vizinhos, sendo uma boa oportunidade para retomar o tema.

Por isso, republico aqui o artigo lançado originalmente no Simplicíssimo e que na verdade foi escrito por mim para debate num grupo de estudos da América Latina que fundamos na faculdade. Que sirva para mudar velhos hábitos arraigados e que mal percebemos. Ou, menos pretensiosamente, que possa suscitar um novo debate: sadio e necessário.

Eduardo Galeano: as feridas expostas da América


“…temos guardado um silêncio bastante parecido com a estupidez…”

A primeira frase que lemos ao abrir “As Veias Abertas Da América Latina” é de uma pungência reveladora. Inquisitiva, na verdade. Dá para o leitor, senão a vergonha, um possível incômodo muito próximo do real: somos um povo alienado quanto à sua própria origem.

Quantos de nós não somos capazes de tecer longos comentários sobre a história e as vanguardas artísticas européias mas quando apontamos para a América Latina simplesmente engasgamos? Nosso quintal? Quintal dos Estados Unidos? As faces do imperialismo são muitas, inclusive aquela que se transmuta num sub-imperialismo, outorgando sobre os países do bloco, principalmente Brasil, Argentina e México, o papel de devorador de seus próprios semelhantes.

Os brasileiros, em especial, parecem literalmente de costas para o resto do continente. Ilusões de independência ou opulência desmedida, não se sabe. Apreço excessivo por se parecer estadunidense ou europeu. Estranheza quanto à língua mater – afinal, somos os únicos da região que falamos português. As possibilidades variam.

Há um comportamento típico do ignorante: ele evita aquilo que desconhece. Porque isso nada mais significa do que se expor, estar vulnerável às suas indisfarçáveis fraquezas. De fato, não é surpreendente a distância propositadamente criada entre os habitantes desta parte do globo. Vassalos, desde muito, os grilhões ainda permanecem no lugar mais difícil de serem extirpados: nossas mentes.

De nítida tradição marxista, Galeano faz uma reconstrução minuciosa da história do bloco, amparado em inúmeros estudos, dados, referências e fatos sólidos, provendo a base necessária para que suas explanações nos sejam críveis. Difícil, isto sim, contrapor aquilo que é apresentado. Resume ele:


“Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal têm-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar tem sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. (…) Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos.” (pág. 14).

Nossa ruína significou, portanto, o desenvolvimento do velho mundo, o máximo esplendor que o sistema pôde alcançar. Prata, ouro, açúcar, café, estanho, salitre, ferro, petróleo, borracha, cacau e algodão, cada um em seu ciclo, numa determinada época e ocorrendo em vários países, significaram a exploração de todas as riquezas existentes na América Latina, financiando, de modo essencial, a ascensão do capitalismo e o nível de vida que europeus e estadunidenses têm hoje.

Os recursos que uma terra ou região poderia dar, não raro, significavam a destruição completa daquela localidade. O auge e queda de Potosí, na Bolívia, Ouro Preto, no Brasil e Havana em Cuba são sintomáticos em demonstrar o quanto a sede imperialista pode devastar, em tão pouco tempo, redutos de abundância mineral e produtiva. Destino não menos trágico tiveram as principais cidades da Argentina, Peru, Equador, Chile, Uruguai, Paraguai, Venezuela, México e Haiti.

Vista aérea da atual Potosí

Dos 90 milhões de índios que habitavam estas terras antes da chegada dos conquistadores, sobraram apenas 3,5 milhões no impressionante espaço de um século e meio após a descoberta. Dizimados e escravizados, foi principalmente sob a pele indígena que a Europa encontrou o cenário perfeito para a sua salvação: recursos naturais em abundância e mão de obra gratuita. Segundo dados oficiais da época, que não consideram a imensa exportação clandestina para lugares como China e Filipinas, entre 1503 e 1660 chegaram ao porto de San Lucas de Barrameda, na Espanha, 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. Já a produção brasileira de ouro, no século XVIII, proporcionou à Europa um volume maior que o extraído das colônias nos dois séculos anteriores. Dez milhões de escravos africanos foram trazidos para o Brasil.

No mosaico composto por Galeano, há poucos buracos. Demonstra, de forma clara e sistemática, as diferentes formas de expropriação ilegal do continente ao longo das épocas. Intervenções diretas e agressivas nos governos, subjugação literal dos povos oprimidos e, mais recentemente, a ingerência inegável em assuntos internos dos países, além do domínio do capital estrangeiro. Números de 1968 mostraram que este capital externo controlava, no Brasil, 40% do mercado de capitais, 62% de seu comércio exterior, 82% do transporte marítimo, 67% dos transportes aéreos externos, 100% da produção de veículos a motor, 100% dos pneumáticos, mais de 80% da indústria farmacêutica, 50% da química, 59% da produção de máquinas, 62% das fábricas de autopeças, 48% do alumínio e 90% do cimento.

Este quadro se alastra por todos os outros países do bloco. O domínio do sistema bancário, também, é quase absoluto. Empréstimos do FMI e do BID, órgãos que defendem os interesses estadunidenses, são sempre acompanhados por duras exigências e cartilhas inflexíveis que afetam a soberania dos países. Entre as condições, estão, por exemplo, a obrigação de utilizar os fundos em mercadorias dos Estados Unidos e transportar pelo menos a metade para eles. Determinam a política de tarifas e impostos dos serviços, aprovam planos de obras, redigem licitações, administram os fundos, os juros, o pagamento da dívida e vigiam o cumprimento dos mesmos. Interferem até no ensino superior da região. Não se pode modificar, sem seu conhecimento prévio e permissão, as leis orgânicas ou os estatutos, impondo também reformas docentes, administrativas ou financeiras, tudo de acordo com as pautas do neocolonialismo cultural.

"The return of the flame" de Rene Magritte

Não deixam brechas, ressalta Galeano:

“Empobrecidos, sem comunicação, descapitalizados e com gravíssimos problemas de estrutura dentro de cada fronteira, os países latino-americanos abatem progressivamente suas barreiras econômicas, financeiras e fiscais para que os monopólios, que ainda estrangulam cada país separadamente, possam ampliar seus movimentos e consolidar uma nova divisão do trabalho, em escala regional, mediante a especialização de suas atividades por países e por ramos, a fixação de dimensões ótimas para suas filiais, a redução dos custos, a eliminação dos competidores alheios à área e à estabilização dos mercados. As filiais das corporações multinacionais só podem apontar à conquista do mercado latino-americano, em determinadas condições que não afetem a política mundial traçada por suas casas-matrizes.”

Neste ponto, e lembrando que um dos principais problemas do livro referem-se à questão temporal, apresentando muitos dados ultrapassados e obsoletos, que carecem de uma atualização, convém resgatar o ano de 1989, fundamental tanto para a política quanto para o pensamento vigente. Após a queda do muro de Berlim e a apressada declaração de morte do comunismo, o ideal capitalista tratou logo de se solidificar.

O Consenso de Washington, conjunto de medidas englobando dez regras básicas – como disciplina fiscal, abertura comercial, investimento estrangeiro direto sem restrições, privatização das estatais e leis trabalhistas mais “leves”, na verdade prejudicando o trabalhador, formuladas por economistas do FMI, do Banco Mundial e do Departamento de Tesouro do Estados Unidos, sob artigo do economista John Williamson, foram criadas para e seguida a risca por todos os países do bloco latino-americano da década de 90 até hoje. As “orientações” visavam a “recuperação econômica” das nações em desenvolvimento.


Outro marco de 1989 foi o aparecimento do artigo “O Fim da História”, do estadunidense Francis Fukuyama, na revista “The National Interest”. Para Fukuyama, o fim do socialismo era a prova da superioridade da ideologia capitalista e da democracia burguesa, tendo a humanidade atingindo, no final do século XX, o ponto culminante de sua “evolução”, sob todos os demais sistemas concorrentes. Como “solução final do governo humano”, o capitalismo contemporâneo decretava “o fim da história da humanidade”, a única alternativa possível e viável.

Resignar-se, portanto, à sua condição histórica “natural”, respeitando toda a herança imposta pelo imperialismo e sendo complacente com a ingerência do capital externo seria uma espécie de sugestão à América Latina, já que a solução estava dada através da cartilha recomendada.

Após 20 anos de atuação, o neo-liberalismo ainda patina em sua ineficiência e paradoxos.

Curiosa contradição histórica, considerando que os Estados Unidos pregam o liberalismo apenas para os outros, sendo rigorosamente protecionistas para consigo mesmos, transformando “a mão invisível” de Adam Smith no nada sutil big stick do inquisidor Tio Sam de cartola e dedo em prontidão.


Galeano expõe com propriedade tudo de mais intrínseco, e doloroso, que a América Latina possui nestes séculos de vida. O breve panorama traçado por ele comprova, com assustadora exatidão, aquilo que George Orwell constata ao final de “Revolução Dos Bichos”. Observando a notável semelhança adquirida entre homens e porcos, que agora andavam sob duas patas, vestiam ternos, tinham a mesma postura e os mesmos hábitos que os seus inimigos do passado, deixa entrever uma frase tristemente adequada às explanações do livro de Galeano: “todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.”

O uruguaio termina, não por acaso, numa espécie de convocação aos habitantes do bloco, sugerindo um despertar das massas, tal qual Marx e Engels ao final do Manifesto Comunista. Diz ele:

Enquanto o norte da América crescia, desenvolvendo-se para dentro de suas fronteiras em expansão, o sul, desenvolvido para fora, explodia em pedaços como uma granada.

O atual processo de integração não nos faz reencontrar nossa origem nem nos aproxima de nossas metas.

Não há de ser a General Motors ou a IBM que terá a gentileza de levantar, no nosso lugar, as velhas bandeiras de unidade e emancipação caídas na luta, nem hão de ser os traidores contemporâneos os que realizarão, hoje, a redenção dos heróis ontem traídos.

Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos a tarefa. A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre a consciência dos homens.”

Sobrepujar a letargia e servidão de nossas próprias posturas, e pensamentos, parece-me, de fato, o primeiro passo para que isto aconteça.

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Mulheres, SUV’s e a modernidade

O SUV – veículo “utilitário” – sempre foi símbolo do “sonho americano” e, também, do ‘fetiche’ masculino. Veículos que carregam ‘status’, ilusão de ‘poder’ e ‘superioridade’. Para os homens, sempre funcionou como extensão do falo. Sinônimo de “virilidade”, “força” e todas as características típicas do inseguro, acéfalo e estereotipado macho moderno. Bom frisar: tome isto, naturalmente, em termos gerais. Nem todo dono de SUV é  “x” ou “y”. Os apontamentos acima são fruto de um comportamento (e até estatísticas, estudos, etc) largamente conhecidos.

Além disso, os SUV’s tem alto índice de envolvimento em acidentes e são considerados um dos vilões do aquecimento global pelo imenso consumo de combustível. Isto dito, percebi uma mudança notável nas ruas de Brasília: o número incrivelmente crescente de mulheres dirigindo SUV’s, pick-ups e derivados. O que isto indica, afinal? Talvez nada. Ou, talvez, indo fundo numa pretensa observação de mudança de comportamento da sociedade, a apropriação dos piores hábitos masculinos.

A destruição da família nuclear burguesa, cristã e “tradicional” – homem como “provedor”, mulher como dona de casa, etc – e do papel da mulher na sociedade em geral vem sofrendo profundas mudanças desde os anos 60. Todas as conquistas, mais do que justas e necessárias, às vezes, no entanto, caem numa busca interminável por se “igualar” ou “superar” os homens: seja em que esfera e de que maneira for. Erro crasso visto as brutais diferenças inerentes entre os dois.

E pior ainda porque o homem em si, não custa lembrar, é a principal causa do escremento fumegante em que estamos agora. O comportamento masculino – agressivo, autoritário, inescrupoloso, extremamente competitivo – novamente de modo geral e sem esquecer que mulheres podem ser tanto quanto, é um dos responsáveis por colocar o mundo nesse caos crescente. Mulheres, grosso modo, dirigem melhor, governam melhor, administram melhor, etc, etc. De modo que a sadia participação feminina em todas as questões da humanidade – no política, no trabalho, no trânsito,… – sem dúvida contribui para melhorarmos um pouco.

Problema é quando começam a absorver as piores facetas do homem. Quando se preocupam em demasia, como dito, em tentar se igualar. Primeiro porque somos diferentes e segundo porque, de modo geral, não temos boas coisas a passar. O SUV, afinal, é um símbolo de quase tudo de errado no mundo hoje. A obsessão pelo tamanho, pela potência, pela agressividade, pela rapidez, pela força. Sem falar na questão ambiental.


Para uma indústria automobilística que caminha cada vez mais para os carros mini e nano – quanto menor e mais eficiente melhor – as mulheres, me parece, seriam eixo fundamental para essa mudança. Já que o “bicho macho” é naturalmente mais resistente a descer do pedestal e ver seu “falo” diminuído.

Triste, portanto, que a contaminação do lado masculino mais nefasto seja tão crescente entre as mulheres. Claro que isto são apontamentos preliminares sobre um caso específico. O importante é que, independente do sexo, saibamos enxergar os veículos como meios de transporte e não como “extensões” de anseios, personalidades, ambições e fraquezas. Lucidez é o remédio. Chegaremos lá.

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