Já era de se esperar que a proposta do governo de reservar 50% das vagas em universidades federais para alunos de escola pública e outras questões dependendo do estado (notícia aqui) fosse gerar uma reação exaltada das nossas tradicionais elites e da meia-dúzia de babacas que acham que detém a “soberania” das ideias e se consideram “formadores de opinião”.
Mesmo com essa expectativa, me deparo hoje com esse inominável texto de Hélio Schwartsman na Folha. Meio atordoado, abri a janela para me certificar de que as tropas da raça superior não estavam à caminho da minha casa. Mas não. Hoje a imposição é mais sutil e funciona por diversos outros caminhos. E sempre que algum deles é ameaçado, a reação vem imediata.
Hélio é “bacharel em filosofia”. Isto dito, o texto merece ser destrinchado. Ele afirma:
O primeiro problema é que ela ignora os mecanismos sociopsicológicos que fazem com que jovens de estratos sociais mais baixos se beneficiem de estudar com alunos ricos.
Somente nessa frase Hélio revela toda a sua mentalidade elitista, seu rancor e suas ideias de raça superior. Ele afirma que os pobres, pretos, pardos, etc, se BENEFICIAM em estudar com alunos ricos e absorver destes seres iluminados toda sua inteligência, classe, educação, caráter e comportamento exemplar.
Continua:
A ideia central é que, se você lançar uns poucos estudantes cotistas num ambiente elitizado dizendo-lhes para nadar ou afogar-se, muitos deles conseguirão dar suas braçadas. Ou eles adotam os valores elitistas do grupo em que se encontram, ou ficam excluídos da vida social, algo a que humanos têm horror.
Ou seja: se os ricos e brancos forem maioria, esses sortudos cotistas poderão se relacionar com eles e aproveitar do ambiente superior em que vivem, sendo forçados a “evoluírem” sob pena da exclusão total.
E finaliza:
Mas, se você atirar um número muito grande de cotistas, esse efeito da socialização pelos pares tende a dissipar-se. O risco é levar para a instituição de elite o mesmo conjunto de problemas que conspira contra a eficácia das escolas frequentadas pelas camadas menos privilegiadas.
Ou seja: se você contaminar o ambiente das escolas de elite com uma quantidade muito grande de cotistas e seres baixos como eles, é provável que, num bando maior, eles destruam o caráter dos alunos de elite, a qualidade da educação e o ambiente universitário num todo. Que tragam para dentro da universidade “o lixo das ruas”.
Eu não vejo nenhuma diferença entre afirmações como essa e ideias de raça superior ariana, do domínio intelectual da elite e tantas outras. É inacreditável e inadmissível que um jornal de grande circulação abra espaço para algo dessa natureza. Corrijo: inadmissível porém esperado.
Os programas sociais do governo Lula pra cá vem causando uma enxaqueca onipresente na nossa elite e na classe-média alta. Os ataques contra o Bolsa Família são comuns e diários. No ensino superior, o Pro-Uni, instituído em 2004/2005 já começou a tirar o sono dos nossos coronéis. Infelizmente (para eles) os anos de lá pra cá vem provado sistematicamente (dois exemplos, aqui e aqui) que os alunos do Pro-Uni tem desempenho bem superior aos demais em todas as áreas avaliadas pelo ENADE.
Outro texto recente, do jornalista Márvio dos Anjos, toca em outro ponto recorrente desse pensamento contra o sistema de cotas. A ideia de que é absurdo escancarar as portas do ensino superior através de leis ao invés de melhorar o ensino de base e “dar a mesma condição” aos estudantes pobres e/ou de escolas públicas de competir com o das escolas particulares. A aparente “preocupação” com a qualidade da educação pública de base esconde o arrepio que sentem com a possibilidade de ver “seu mundo invadido”.
Apelam para o conceito de “meritocracia”, de “igualdade de oportunidades” para todas as pessoas, independente de classe social, cor, etc. Que seria “injusto” reservar cotas porque isso “tira a igualdade de acesso dos ricos contra os pobres”. É incrível como o pensamento é capaz de distorcer completamente a essência, colocando ao seu favor. Duplipensar, Orwell diria.
O amigo Vinícius Duarte, numa série de tweets, matou a pau ontem: “O “meritocrata-padrão” estudou na melhor escola, fez 3 refeições/dia e o pai tem os melhores contatos. É tipo Bolt correr na paraolimpíada.”.
É claro que nossa educação de base precisa melhorar. É óbvio que a qualidade do nosso ensino, a infra-estrutura, o salário dos professores, etc, precisa evoluir bastante. Os dados, resultados de exames, avaliações e a vida prática mostram isso. Como muitos, sou filho de professora da rede pública e estudei a vida inteira em escola pública, como meus irmãos, a maioria dos meus amigos, parentes, etc. Sabemos na prática como é.
O problema é que esta “obsessão” da elite em insistir no argumento de “é preciso melhorar a base antes de partir para o superior” não é um desejo ou uma necessidade comum da sociedade, é apenas uma defesa para tentar evitar que mexam naquilo que eles dominaram por tanto e tanto tempo. Acredito que isso seja nítido e flagrante. O problema é que mesmo com um planejamento sério, investimento sistemático e melhores contínuas na educação de base, o que vem sendo feito nos últimos anos, é um processo mais lento que o ideal, que leva – ou levará – alguns bons anos e os resultados idem.
Outro problema é que mesmo que tivéssemos uma educação pública de qualidade, não é só o ambiente escolar que faz diferença, como o Vinícius lembrou. O aluno rico ou com vida confortável tem ao seu redor todas as condições, dentro e fora da escola, para se preocupar apenas em estudar, para se alimentar tremendamente bem, para ter um lazer fantástico, praticar as atividades que quiser, em ser aceito e bem visto no meio social, em não precisar trabalhar cedo e não ter muito com o que se aborrecer.
Como sabemos, o mundo é desigual e tudo indica que permanecerá assim. Portanto, infelizmente precisamos de sistemas como o de cotas para tentar diminuir esse abismo de oportunidades e possibilidades. Tentar. O ideal, claro, seria que nós não precisássemos instituir um sistema de cotas nas universidades federais. Mas ele se faz necessário. O sistema de cotas permite diversas distorções que precisam ser analisadas com atenção e cuidado.
Enquanto as coisas na base não mudam, ou mesmo que mudassem, o adolescente ou o adulto que nunca teve as condições ideias continuaria se dando mal. Enquanto os ricos defendem “a mudança na base”, a injustiça e o abismo na ponta do sistema continua a mesma. É uma posição muito cômoda e fácil.
É de se enojar que tenhamos de ler porcarias autoritárias e de raça superior como o do tal Hélio. É uma afronta à inteligência e à qualquer sociedade que queira ser um pouquinho saudável, um pouquinho mais igualitária e um tanto mais possível de se viver.
É inadmissível que tentem empurrar esse tipo de pensamento nojento goela abaixo sem que recebam a sua farsa desmontada de volta.