Teatro

O Mistério Bufo de Maiakóvski

Mistério-Bufo é a nossa grande revolução, condensada em versos e em ação teatral. Mistério: aquilo que há de grande na revolução. Bufo: aquilo que há nela de ridículo. Os versos de Mistério-Bufo são as epígrafes dos comícios, a gritaria das ruas, a linguagem dos jornais. A ação de Mistério-Bufo é o movimento da massa, o conflito das classes, a luta das idéias: miniaturas do mundo entre as paredes do circo.”

Nunca fui um grande frequentador de teatro. Erro grosseiro. Quanto mais se conhece, mais se apaixona. Não cabe aqui entrar na comparação teatro x cinema. São coisas muito, muito diferentes. Guardado o carinho pela sétima arte e toda sua completude por excelência, o teatro me parece algo muito mais quente, visceral, dinâmico. Óbvio. “Mistério Bufo”, do russo Maiakóvski, apresentada no momento no CCBB de Brasília, foi o ápice da minha enxuta experiência teatral.

A começar pelo interesse profundo que os autores russos sempre me despertaram. Dentre os poetas, não há dúvidas de que Maiakóvski foi um dos maiores. O espetáculo em si (desnecessário dizer que ele é extremamente recomendado) seguiu a risca a recomendação do próprio: “No futuro, todos que encenarem, desempenharem os papéis, lerem e imprimirem o MISTÉRIO BUFO, mudem o conteúdo, – façam  ficar contemporâneo, moderno.”

Três atos. Luzes, painéis, rapel, acrobacias, intervenções, diversos ambientes, vídeo, música, dança: uma jornada literal vivida e degustada pelo público nos diferentes momentos e cenários da peça. Ousada, lírica, caótica. Russo, português, inglês, francês, espanhol, hebraico, italiano, difícil contar todas as línguas usadas.

A dualidade da revolução levada além dos clichês. De longe, o espetáculo mais rico em forma e conteúdo que já presenciei. O materialismo e o espiritual. O comportamento e a psiquê. Pequenas concessões cômicas ante o peso natural do tema. Recursos circenses sem estarem ali por acaso, gratuitamente. O quente e o frio. Mais atual e necessária ainda do que era em 1918.

Uma produção artística, afinal, que não te deixa sair ileso. E esta é a maior virtude que posso imaginar.

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Literatura

Homens Comuns

Estes dias me deparei com o lançamento recente da editora 8Inverso: as correspondências de Dostoiévski entre 1838 e 1880. Na verdade, as cartas são unilaterais. Não há contraponto. As respostas não estão presentes. As cartas traduzidas são endereçadas principalmente ao irmão, Mikhail.

A despeito destas falhas, o livro é obrigatório para os interessados pelo autor russo. Nelas, ficam expostas as entranhas de Dostoiévski. O tanto que um dos maiores gênios da literatura mundial é…um homem comum. Comum e ordinário como todos nós.

Oprimido pelo serviço militar, as doenças, a fome, a prisão, a carência, insegurança, o vício no jogo, a falta de dinheiro. Dostoiévski escreve por diversas vezes desesperado implorando por dinheiro ao pai e ao irmão. Lista todas as suas necessidades básicas, justifica o pedido por cada centavo que ele não tem para a mínima sobrevivência.

Como escritor, narra em detalhes o processo de criação das obras. Para além do perfeccionismo quase comum a todos os autores, Dostoiévski deixa claro a necessidade de fazer dinheiro com os livros. O inegável aspecto comercial. O quanto aguarda que se torne um escritor de sucesso para poder quitar as dívidas. O quanto acompanha, crítica por crítica, texto por texto, o que sai em jornais e periódicos sobre ele. Avalia os amigos. Os escritores do seu tempo: Gogol, já consagrado e Turguenev, a quem admira a princípio, tem uma série de desentendimentos e acaba se reconcicliando já no final da vida.

Definindo-se como vaidoso e ambicioso, Dostoiévski deixa entrever tudo que seria inimaginável a quem não conhece sua história, perceber. É óbvio que isto não invalida em absolutamente nada as obras que escreveu. Pelo contrário, as engrandece.

O trágico permeia o livro: além de todas as privações, o exílio na Sibéria, a prisão por conspirar contra o regime, as doenças, a epilepsia, a ordem de execução cancelada na última hora e posteriormente a crueldade do czar que manda os soldados fazerem todo o processo de execução apenas para “pregar uma peça” nos prisioneiros e anunciar a redução da pena. As mortes da esposa, da filha e do irmão no mesmo ano. O dinheiro ganho nos primeiros anos de seu reconhecimento como escritor perdido no jogo.

A inveja. A infinita insegurança. O quanto se preocupava com a opinião alheia. Um Dostoiévski frágil, atormentado, bestialmente comum. Humano. Tudo está em seus livros: cada trama, personagem, pensamento. Tudo é tirado literalmente da vida que teve.

É assustador, mesmo que óbvio, constatar estas mazelas materiais, espirituais e psicológicas, presentes em todos nós.

Ler as correspondências do autor russo é não só mergulhar no seu inferno pessoal como perceber a grandeza e a desgraça da vida. A eterna ânsia. A estupidez, o desejo e as necessidades primais. O quanto somos ridículos. E como os tais raros conseguem equilibrar isto com uma genialidade sem igual.

Fechei o livro com algumas lágrimas nos olhos e muitas feridas por cicatrizar.

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Filmes

O Sonho de Cassandra

Cassandra’s Dream – Woody Allen – 2007 – ***

Rasteiramente, “O Sonho de Cassandra” pode ser visto como o desejo da classe média que vai além de suas perspectivas. O objeto de consumo que, indiretamente, representa (e causa) a desgraça moral, espiritual, familiar…o clichê do reino de aparências, sempre tênue.

Allen faz um filme diferente do seu habitual e o resultado, apesar do bom argumento, é mediano. Falta algo.  A destacar que Farrel, em sua curta carreira, já trabalhou com Steven Spielberg, Oliver Stone, Michael Mann, Terrence Malick e Woody. Em produções diversas e exigentes. Vai longe.

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Filmes

Before the Devil Knows You’re Dead

Before The Devil Knows You’re Dead – Sydnei Lumet – 2007 – ****

Os “30 minutos no paraíso” já são um belo motivo para assistir esta obra de Lumet – a melhor em muito, muito tempo. Hoffman (sempre soberbo) e Finney são outro. Sem esquecer, claro, de Marisa Tomei. Um presente do octogenário Lumet ao mundo. Complexo, maduro e ácido, “Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto” entra no hall de melhores filmes estadunidenses da década.

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Artigos/Matérias/Opinião, Filmes

Michael Moore e a roupa suja

Sicko – Michael Moore – 2007 – ****

A má-vontade (ou “birrinha”) que muitos “críticos” tem com Michael Moore infelizmente quase nunca é acompanhada de uma avaliação profunda dos principais temas levantados por seus documentários. Manipulador, maniqueísta, apelativo, desonesto, sensacionalista, comediante. A lista é longa. As técnicas de Moore são realmente questionáveis. Há até um documentário sobre isso, que infelizmente ainda não vi.

Para horror de quem se limita a falar besteiras muito maiores que qualquer deslize de MM, o gordinho venceu o Oscar, garantia de sucesso comercial, e Cannes, prova de reconhecimento da crítica, que premia o que de mais “artístico” e contundente o cinema faz. Algo ignorado é que Moore me parece inteligente o bastante para ter ciência dos seus pontos falhos e de que forma ele pode ser atacado a cada documentário que produz. Reconhecer a legitimidade do adversário, aliás, é a melhor maneira de enfraquecê-lo. Isso inclui até a artimanha de enviar um cheque anônimo de 20 mil dólares ao mantenedor do maior site anti-Moore do mundo, porque o sujeito não conseguia pagar o atendimento médico necessário para a esposa. Já o argumento de que em Guantanamo (base militar dos EUA em Cuba) os prisioneiros da Al-Qaeda são tratados com muito mais cuidados que boa parte da população dos EUA é, claro, frágil. Qualquer um sabe que Guantanamo não é exatamente uma filial do paraíso.

Sicko aborda o sistema de saúde no mundo (em especial nos EUA). Difícil imaginar tema mais importante. Os depoimentos e argumentos se sucedem, afim de mostrar que quem não tem cobertura médica nos EUA está literalmente ferrado e quem tem também. Não por acaso Obama tenta, no momento, aprovar um projeto de reforma do sistema de saúde.

Mesmo com todas as restrições de “doenças pré-existentes” possíveis (uma lista infindável), 250 milhões de estadunidenses tem algum tipo de plano. Moore mostra a máfia por trás da indústria médica (e farmacêutica). Que tem o simples objetivo que toda empresa capitalista têm: fazer dinheiro a qualquer custo. Mesmo que isto seja sob a vida dos outros. Apenas um detalhe.

Histórias verídicas de pessoas que perderam familiares e amigos porque os planos negaram os tratamentos necessários sob qualquer pretexto forçoso (um absurdo descomunal) se empilham na tela. Dívidas com hospitais. Instituições que mandam despejar seus doentes na rua enfiando-os num táxi qualquer. Quanto custou para a indústria médica comprar o senado e o presidente Bush, permitindo que nada mudasse e o lucro continuasse a ser gerado como bem entendem. O terrorismo (este sim) feito sob o sistema de saúde socializado. O dinheiro em primeiro lugar, no público ou privado. Se você não tem como pagar, não é atendido. Simples assim. E mesmo quem pode, encontra dificuldade. Basta que o plano avalie que o custo será maior que o ganho. Bye bye. We are america. Self-made man.

Afim de comparar o sistema de saúde dos EUA com o de outros países, Moore vai até o Canadá, a França e a Inglaterra, entrevistando pessoas nativas destes lugares bem como estadunidenses que se mudaram para lá. A diferença gritante – atendimento respeitoso, humano, de ponta, rápido, inclusive com os médicos indo até a casa do paciente, como na França, ou o hospital dando o dinheiro para o transporte, se a pessoa não puder pagar, como na Inglaterra – aparece. Americanos (sic) contam, com os olhos brilhando, que se sentem abençoados por não dependerem do sistema de saúde do seu país de origem.

Moore certamente desconfia que impostos altíssimos devem bancar isto. E escolhe visitar a casa de um médico inglês do serviço público, na esperança dele viver endividado, como a imensa maioria dos estadunidenses. Para “surpresa” o médico ganha muito bem, tem uma casa de três andares e não possui dívidas acumuladas. Seu principal gasto são frutas e férias.

Aqui fica evidente o maniqueísmo de Moore e o mundo encantado fora dos EUA que ele cuidadosamente cria. Parece óbvio que a história não se resume ao dualismo visto na tela. Os confortáveis benefícios conquistados pelos trabalhadores franceses ao custo, literal, de suor e sangue ao longo da história, proporciona um universo de vantagens que pesam, enormemente, no orçamento do governo. A previdência estourada, a bolha crescente difícil de ser contida. E quando o governo tenta, o país pára. Os benefícios são legítimos. Funcionam. Não caíram no colo de ninguém. Mas os problemas atuais enfrentados por este quadro nem de longe são pincelados por Moore.

Assim como é óbvio que ingleses, franceses e canadenses não vivem exatamente no paraíso. Mesmo com essa ressalva, o sistema de saúde nestes países é o que deveria ser o brasileiro se a carga monstruosa de impostos que pagamos fosse bem administrada, não sendo dragada (também) pela corrupção no meio do caminho. Lá eles pagam mas tem o retorno. Aqui…bem, você sabe como é.

O que os exemplos de Moore tem em comum são a imigração explosiva, o desemprego, enfim, todas as mazelas compartilhadas em maior ou menor grau por quase todos os cidadãos do mundo. Exceto pelos 1% daqueles que detém 80% da riqueza do planeta. Aspas para Orwell, por favor:

“Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição – com efeito, de certo modo era a destruição – de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e a aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância.”

Eis a síntese do que realmente importa em Sicko. Em outras palavras, é o mesmo que é dito não por coincidência por um inglês: o governo dos EUA não parece muito interessado em ter pessoas educadas e saudáveis, porque, assim sendo, o seu poder seria questionado e destruído. Como nos EUA, assim é em boa parte do mundo. E Moore demonstra como somos enrolados numa teia de dívidas e preocupações mundanas demais durante toda a vida para não termos o que pensar, argumentar. Para ficarmos reféns do establishment. Não é nenhuma novidade. Eis a base da nossa sociedade. Sem isso, ela se implode.

O que aconteceria na Inglaterra se o sistema de saúde universal fosse alterado? Uma revolução. É o que o senhor diz. E uma estadunidense, morando na França, percebe a diferença básica: aqui (na França), o governo tem receio das pessoas, lá (EUA), as pessoas tem medo do governo. E isto muda tudo. “Não se revoltarão enquanto não tiverem consciência; não terão consciência enquanto não se revoltarem”

Por fim, Moore vai à Cuba. Lá, os “heróis” do 11 de setembro (voluntários que ajudaram o trabalho dos bombeiros e acabaram desenvolvendo uma série de doenças principalmente respiratórias com o passar dos anos) encontram o tratamento adequado – e gratuito – que lhes fora negado nos EUA. Em Cuba, o remédio que custa 120 dólares nos EUA é encontrado por 5 centavos de dólar. Somente na ilha de Fidel (onde você acha que Lúcifer mora, brinca Moore) os “heróis da América” são tratados com a dignidade merecida. Não é preciso ser “herói” para receber o mesmo atendimento.

O paradoxo é o que define o mundo moderno. Como um ilhazinha como Cuba, com todas as restrições comerciais impostas pelo próprio EUA, comunista, consegue ter um dos melhores sistemas de saúde do mundo, gratuito, e os EUA, a nação mais rica do planeta, não? Ora, tanta riqueza precisa vir de algum lugar. A indústria médica (incluindo a farmacêutica) é só um deles.

O próximo filme de Moore (a sair em outubro) é, claro, sobre a crise econômica. A verdade, no entanto, a respeito dessa galhofa toda, é só uma. Como diz Marshal Berman em “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”:

A economia moderna provavelmente continuará em expansão, embora talvez em novas direções, adaptando-se às crises crônicas de energia e do meio ambiente que seu sucesso criou. As adaptações futuras exigirão grandes turbulências sociais e políticas; mas a modernização sempre sobreviveu em meio a problemas, em uma atmosfera de “incerteza e agitação constantes” em que, como diz o Manifesto Comunista, “todas as relações fixas e congeladas são suprimidas”. Em tal ambiente, a cultura do modernismo continuará a desenvolver novas visões e expressões de vida, pois as mesmas tendências econômicas e sociais que incessantemente transformam o mundo que nos rodeia, tanto para o bem como para o mal, também transformam as vidas interiores dos homens e das mulheres que ocupam esse mundo e o fazem caminhar. O processo de modernização, ao mesmo tempo que nos explora e nos atormenta, nos impele a apreender e a enfrentar o mundo que a modernização constrói e a lutar por torna-lo o nosso mundo. Creio que nós e aqueles que virão depois de nós continuarão lutando para fazer com que nos sintamos em casa neste mundo, mesmo que os lares que construímos, a rua moderna, o espírito moderno continuem a desmanchar no ar.

Não lhe parece familiar?

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