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Bertrand Russel: o ócio e a falácia do trabalho

Anos atrás me deparei com o livro “Elogio Ao Ócio”, do pensador britânico Bertrand Russel. O livro é uma compilação de textos escritos por Russel sobre assuntos como trabalho, educação, comportamento, etc. Ao que parece, está esgotado na editora Sextante, pois só pode ser encontrado em sebos como a Traça Virtual (como este exemplar, por módicos 14 reais).

Teve um impacto decisivo em minha vida. Russel é claro, lúcido, argumentador talentoso, capaz de expor as coisas sem fazer uso de retóricas desnecessárias e do estilo “entrecortado” e forçosamente hermético de alguns “filósofos” enganadores da modernidade.

O eixo central do livro é o texto que dá nome à ele: O Elogio Ao Ócio, disponível aparentemente completo aqui, com a ressalva apenas de leves deslizes de tradução que não comprometem em nada sua importância. Com a licença do hiperbolismo, é a única coisa que você precisa ler. Depois pode partir para outros.

Sei que muita gente não lê textos com mais de dois parágrafos. Sintomático. Outros tantos dispensam coisas longas justamente porque a jornada de trabalho e tudo que a envolve toma muito tempo e muita energia vital. Ironia. Parece claro que esta é uma das formas básicas de como o sistema age para manter as coisas como são: tentar retirar ao máximo do ser humano a possibilidade de se dedicar a reflexões que exijam mais do que uma rápida olhadela e uma informação curta, seca, “direta”. Neste sentido, aliás, os “princípios” do jornalismo são a manifestação mais flagrante. A mídia atua como o operário mais incansável do esquema.

Não pensar. Não ter tempo para refletir. Além disso: extirpar desde o nascimento a vontade, o tesão, o interesse, a curiosidade e a dedicação necessária para ultrapassar a mediocridade. Nos deixar confortavelmente anestesiados, acomodados, ignorantes. Cada vez mais. Fazer com que nos contentemos com pouco, muito pouco.

Russel destrói com uma mentira fulcral da sociedade: “o trabalho dignifica o homem”. Mostra como essa falácia histórica contribuiu (e contribui) para o estado das coisas. O texto, escrito no início dos anos 30, soa (infelizmente) atemporal. Podem alegar que o cenário analisado por Russel ainda se concentrava demasiadamente no trabalho físico, na produção de bens materiais, na incipiência da Revolução Industrial. Russel mostra, já naquela época, como a jornada de trabalho (que chegava a 15 horas para um adulto na Inglaterra) poderia ser convertida para 4 hs. Como nos concentrávamos excessivamente no frisson em produzir bens inúteis e dispensáveis.

Fato que muita coisa mudou de lá pra cá. Mas Russel acreditava que quanto mais as máquinas evoluíssem, quanto mais a tecnologia fosse capaz de contribuir para a substituição do trabalho pesado na indústria e demais setores, mais razões existiriam e mais a sociedade poderia caminhar para uma substituição deste tipo de trabalho e mentalidade. É indiscutível que, sim, houve avanços descomunais nesta área nos últimos 80 anos. Ao mesmo tempo em que o capitalismo tratou de manter o mesmo tipo de consciência e o mesmo tipo de jornada excruciante na “era da informação”. Daí a tristeza por constatar que o texto de Russel se mantém atual, presente. Que suas passagens possam falar tão forte e tão diretamente ao que vivemos hoje.

Selecionei alguns trechos essenciais do texto completo:

(…)

Uma das coisas mais comuns que se faz com a poupança é emprestá-la a algum governo. Considerando-se o fato de que a maior parte das despesas públicas de quase todos os governos civilizados consiste nas dívidas das guerras passadas ou na preparação de guerras futuras, quem empresta seu dinheiro ao governo acha-se na mesma posição do vilão que aluga assassinos de Shakespeare. O resultado líquido de seus hábitos econômicos é aumentar as forças armadas do Estado ao qual ele empresta sua poupança. Obviamente, seria melhor gastar o dinheiro, mesmo que fosse com bebida ou no jogo.

(…)

Antes de mais nada: o que é trabalho? Há dois tipos de trabalho: o primeiro, alterar a posição de um corpo na ou próximo à superfície da Terra relativamente a outro corpo; o segundo, mandar outra pessoa fazê-lo. O primeiro tipo é desagradável e mal pago; o segundo é agradável e muito bem pago. O segundo tipo é capaz de extensão indefinida: há não somente aqueles que dão ordens, mas aqueles que dão conselhos sobre que ordens deveriam ser dadas. Geralmente dois tipos opostos de conselhos são dados simultaneamente por dois grupos organizados; a isto se chama política. A habilidade necessária a este tipo de trabalho não é conhecimento dos assuntos sobre os quais são dados conselhos, mas conhecimento da arte da fala e da escrita persuasiva, isto é, da propaganda.

Na Europa, mas não na América, há uma terceira classe de homens, mais respeitada do que qualquer uma das outras classes de trabalhadores. Há homens que, pela propriedade da terra, podem fazer outros pagarem pelo privilégio de poderem existir e trabalhar. Estes proprietários de terras são ociosos, e portanto se esperaria que eu os elogiasse. Infelizmente, a sua ociosidade se torna possível pelo trabalho de outros; de fato, seu desejo pelo ócio confortável é historicamente a fonte de todo evangelho do trabalho. A última coisa que eles desejariam é que outros seguissem o seu exemplo.

(…)

A técnica moderna tornou possível que o lazer, dentro de certos limites, não seja uma prerrogativa de uma pequena classe privilegiada, mas um direito distribuído eqüanimamente pela comunidade. A moral do trabalho é a moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão.

(…)

A técnica moderna tornou possível diminuir enormemente a quantidade de trabalho necessário para assegurar as necessidades vitais para todos. Isto se tornou óbvio durante a Primeira Guerra Mundial. Naquele tempo todos os homens nas forças armadas, e todos os homens e mulheres envolvidos na produção de munição, e todos os homens e mulheres envolvidos com espionagem, propaganda de guerra ou escritórios governamentais relacionados com a guerra foram tirados de ocupações produtivas. Apesar disto, o nível geral de bem-estar entre assalariados não-qualificados do lado dos aliados era mais alto do que antes ou mesmo depois da Guerra. O significado deste fato era escondido pelas finanças: empréstimos fizeram parecer que o futuro estava nutrindo o presente. Mas isto, é claro, seria impossível; um homem não pode comer um pão que não existe. A guerra mostrou conclusivamente que, através da organização científica da produção, é possível manter as populações modernas em razoável conforto com uma pequena parte da capacidade de trabalho do mundo moderno. Se, ao final da guerra, a organização científica que foi criada para liberar homens para as guerras e produção de munição fosse preservada, e as jornada de trabalho fosse reduzida para quatro horas, tudo teria ficado bem. Aos invés disto, o antigo caos foi restaurado, aqueles cujo trabalho era necessário voltaram às longas horas de trabalho, e o restante foi deixado à míngua no desemprego. Por quê? Porque o trabalho é um dever, e um homem não deveria receber salários proporcionalmente ao que produz, mas proporcionalmente à virtude demonstrada em seu esforço.

Esta é a moral do Estado escravista, aplicada em circunstâncias totalmente diferentes daqueles na qual surgiu. Não é surpresa que o resultado tenha sido desastroso.

(…)

A ideia de que os pobres devam ter lazer sempre foi chocante para os ricos. Na Inglaterra, no início do século dezenove, quinze horas era a jornada comum para um homem; algumas vezes crianças trabalhavam tanto quanto, e muito comumente trabalhavam doze horas por dia. Quando alguns intrometidos sugeriram que talvez estas horas fossem exageradas, foi-lhes dito que o trabalho afastava os adultos da bebida e as crianças da marginalidade. (…)

Se o trabalhador comum trabalhasse quatro horas por dia, haveria o suficiente para todos e não haveria desemprego – assumindo um moderado senso de organização. Essa ideia choca os abastados, porque eles estão convencidos de que os pobres não saberiam como usar tanto lazer. Nos Estados Unidos, os homens freqüentemente trabalham longas horas mesmo quando estão bem financeiramente; tais homens, naturalmente, se indignam com a ideia do lazer para assalariados, exceto na forma do cruel castigo do desemprego; de fato, eles não gostam de lazer nem mesmo para seus filhos. Estranhamente, enquanto querem que seus filhos trabalhem tão duro que não tenham tempo para serem civilizados, eles não se importam que suas esposas e filhas não tenham absolutamente nenhum trabalho. A inutilidade esnobe, que em uma sociedade aristocrática se estende a ambos os sexos, é, sob uma plutocracia, confinada às mulheres; isto, entretanto, não a torna mais sensata.

O uso sábio do lazer, deve-se conceder, é produto de civilização e educação. Um homem que tenha trabalhado longas horas a vida inteira fica entendiado se se torna subitamente ocioso. Mas sem considerável quantidade de lazer um homem é privado de muitas das melhores coisas. Não há mais nenhuma razão para que a maior parte da população sofra dessa privação; somente um ascetismo tolo, geralmente paroquiano, nos faz continuar a insistir em excessivas quantidades de trabalho agora que não há mais necessidade.

(…)

Não tentamos fazer justiça econômica, de forma que uma grande proporção da produção total vai para uma pequena minoria da população, e boa parte dela simplesmente não trabalha. Devido à ausência de qualquer controle central sobre a produção, produzimos grande quantidade de coisas que não precisamos. Mantemos uma grande percentagem da população trabalhadora ociosa, porque podemos dispensar seu trabalho dando sobretrabalho a outros. Quando todos estes métodos se provarem inadequados, temos a guerra: colocamos muitas pessoas a fabricar explosivos, e muitas outras para explodi-los, como se fôssemos crianças que recém descobriram os fogos de artifício. Combinando estes mecanismo, somos capazes, com dificuldade, de manter viva a noção de que uma grande quantidade de trabalho manual intenso é o quinhão inevitável do homem comum.

(…)

O fato é que mudar corpos de lugar, ainda que em certa quantidade seja necessário à nossa existência, não é, em absoluto, um dos objetivos da vida humana. Se fosse, teríamos que considerar todo operador de britadeira superior a Shakespeare. Temos sido enganados neste aspecto por duas razões. Uma é a necessidade de manter os pobres aplacados, o que levou os ricos, por milhares de anos, a defender a dignidade do trabalho, enquanto cuidavam eles mesmos de se manterem indignos a este respeito. A outra é o novo prazer no maquinismo, que nos delicia com as espantosas transformações que podemos causar na superfície da Terra. Nenhum destes motivos tem grande apelo ao trabalhador real. Se se pergunta a ele o qual ele acha a melhor parte de sua vida, não é provável que ele dia: “Eu gosto do trabalho manual porque ele me faz sentir que estou fazendo a tarefa mais nobre do homem, e porque eu gosto de pensar o quanto o homem pode transformar o planeta. É verdade que o meu corpo necessitam períodos de descanso, que devo preencher da melhor forma possível, mas eu nunca fico tão feliz quanto quando chega a manhã e eu posso retornar ao trabalho duro do qual provém o meu contentamento”. Eu nunca ouvi trabalhadores dizerem este tipo de coisa. Eles consideram o trabalho como ele deve ser considerado, um meio necessário à sobrevivência, e é de seu lazer que eles obtém qualquer felicidade que possam ter.

Há quem diga que, enquanto um pouco de lazer é prazeroso, os homens não saberiam como preencher seus dias se tivessem somente quatro horas de trabalho nas suas vinte e quatro horas do dia. Considerar isto uma verdade no mundo moderno é uma condenação de nossa civilização; as coisas nunca foram assim. Havia anteriormente uma capacidade de despreocupação e divertimento que foi de certo modo inibido pelo culto à eficiência. O homem moderno pensa que tudo deve ser feito pelo bem de alguma outra coisa, e nunca por seu próprio bem.

(…)

E A PARTE FINAL, RESUMO COMPLETO E PUNGENTE DO PENSAMENTO DE RUSSEL:

A noção de que as atividades desejáveis são aquelas que trazem lucro é uma inversão da ordem das coisas. O açougueiro que lhe fornece carne e o padeiro que lhe fornece pão são dignos de louvor, porque estão ganhando dinheiro; mas quando se saboreia a comida que eles forneceram, se é frívolo, a não ser que se coma somente para ficar forte para o seu trabalho. Falando de maneira geral, diz-se que ganhar dinheiro é bom e gastar dinheiro é ruim. Vendo que são dois lado de uma transação, isto é absurdo; poderia se dizer que chaves são boas, mas fechaduras são ruins. Qualquer mérito que haja na produção de bens deve ser inteiramente retirado da vantagem a ser obtida consumindo-os. O indivíduo, em nossa sociedade, trabalha pelo lucro; mas a finalidade social do trabalho se baseia no consumo do que ele produz. É este divórcio entre o indivíduo e a finalidade social da produção que torna tão difícil aos homens pensar claramente em um mundo no qual fazer lucro é o incentivo da indústria. Pensamos demais na produção, e de menos no consumo. Um resultado é que atribuímos muito pouca importância ao divertimento e à simples felicidade, e que não julgamos a produção pelo prazer que ela proporciona ao consumidor.

Quando sugiro que a jornada de trabalho deveria ser reduzida para quatro horas, não quero dizer que todo o tempo restante deveria necessariamente ser gasto em frivolidade pura. Quero dizer que um dia de trabalho de quatro horas deveriam ser suficientes para as necessidades e confortos elementares da vida, e que o resto de seu tempo deveria ser seu para usá-lo como achasse conveniente. É uma parte essencial em qualquer sistema social que a educação deva ser levada além do que normalmente é no presente e deveria por objetivo, em parte, prover gosto que iriam tornar um homem apto a usar o lazer inteligentemente. Não estou pensando aqui no tipo de coisa que seria considerada “intelectualizada”. Danças camponesas desapareceram exceto em remotas áreas rurais, mas os impulsos que levaram ao seu cultivo ainda devem existir na natureza humana. Os prazeres das populações urbanas se tornaram na maior parte passivos: ver filmes no cinema, assistir jogos de futebol, escutar rádio, e assim por diante. Isto resulta do fato de que suas energias ativas são totalmente gastas com o trabalho; se tivessem mais lazer, iriam aproveitar novamente os prazeres nos quais tem um papel ativo.

No passado havia uma pequena classe ociosa e uma grande classe trabalhadora. A classe ociosa desfrutava de vantagens para as quais não havia base em justiça social; isto necessariamente as fez opressivas, limitou sua simpatia, e levou à invenção de teorias para justificar seus privilégios. Isto fez diminuir enormemente a sua excelência, mas apesar disto elas contribuíram com quase tudo do que chamamos de civilização. Ela cultivou as artes e descobriu as ciências; escreveu os livros, inventou as filosofias, e refinou as relações sociais. Mesmo a libertação dos oprimidos foi geralmente iniciada de cima. Sem a classe ociosa, a humanidade nunca teria emergido da barbárie.

O método da classe ociosa sem deveres, entretanto, gerou enormes desperdícios. Nenhum de seus membros tinha que aprender a ser trabalhador, e a classe como um todo não era excepcionalmente inteligente. A classe podia produzir um Darwin, mas a ele se opunham dezenas de milhares de proprietários rurais que nunca pensavam em nada mais inteligente do que caçar à raposa e punir invasores de propriedades. No presente, espera-se que as universidades forneçam, de forma mais sistemática, o que a classe ociosa fornecia acidentalmente e como um subproduto. Isto é um grande avanço, mas tem certas desvantagens. A vida universitária é tão diferente da vida do mundo exterior que os homens que vivem no meio acadêmico tendem a ficar alheios das preocupações e problemas de homens e mulheres comuns; além disso, suas formas de se expressar é geralmente tal que rouba de suas opiniões a influência que elas deveriam ter no público em geral. Outra desvantagem é que nas universidades os estudos são organizados, e o homem que pensa sobre alguma pesquisa original provavelmente será desencorajado. As instituições acadêmicas, portanto, úteis como são, não são guardiãs adequadas para os interesses da civilização em um mundo onde todos fora de seus muros estão ocupados demais para objetivos não-utilitários.

Em um mundo em que ninguém seja compelido a trabalhar mais do que quatro horas por dia, todas as pessoas que possuíssem curiosidade científica seriam capazes de satisfazê-la, e todo pintor seria capaz de pintar sem passar por privações, qualquer que seja a qualidade de suas pinturas. Jovens escritores não precisarão procurar a independência econômica indispensável às grandes obras, para as quais, quando a hora finalmente chega, terão perdido o gosto e a capacidade. Homens que, em seu trabalho profissional, tenham se interessado em alguma fase da economia ou governo, serão capazes de desenvolver suas idéias sem a distância acadêmica que faz o trabalho de economistas universitários freqüentemente parecer fora da realidade. Médicos terão tempo para aprender sobre o progresso da medicina, professores não estarão lutando exasperadamente para ensinar por métodos rotineiros coisas que aprenderam na juventude, que podem, no intervalo, terem se revelado falsas.

Acima de tudo, haverá felicidade e alegria de viver, ao invés de nervos em frangalhos, fadiga e má digestão. O trabalho exigido será suficiente para tornar o lazer agradável, mas não suficiente para causar exaustão. Uma vez que os homens não ficarão cansados em seu tempo livre, eles não exigirão somente diversões passivas e monótonas. Ao menos um por cento provavelmente devotará o tempo não gasto no trabalho profissional para objetivos de alguma importância pública e, como não dependerão destes objetivos para viver, sua originalidade não será tolhida, e não haverá necessidade de adaptar-se aos padrões estabelecidos pelos velhos mestres.

Mas não é somente nestes casos excepcionais que as vantagens do lazer aparecerão. Homens e mulheres comuns, tendo a oportunidade de uma vida feliz, se tornarão mais gentis, menos persecutórios e menos inclinados a ver os outros com desconfiança. O gosto pela guerra desaparecerá, parcialmente por esta razão, e parcialmente porque ele envolverá trabalho longo e severo para todos. A boa índole é, de todas as qualidades, a que o mundo mais precisa, e boa índole é o resultado de segurança e bem-estar, não de uma vida de árdua luta. Os métodos modernos de produção nos deram a possibilidade de bem-estar e segurança para todos; escolhemos, ao invés disso, ter sobretrabalho para alguns e privação para outros. Ainda somos tão energéticos quanto éramos antes do surgimento das máquinas; neste aspecto temos sido tolos, mas não há razão para continuarmos sendo tolos para sempre.

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As bravatas e as fraquezas

Sempre que ouço alguém falar que “lugar x não é para os fracos” sinto uma pontada de repulsa no cérebro. É inevitável. Aparentemente, o tal chavão vem acompanhado de um bairrismo grosseiro, de um maniqueísmo ultra barato e de uma maneira no mínimo limitada de enxergar as coisas.

Não há dúvidas de que o bairrismo/ufanismo é uma das maiores desgraças e idiotices da Terra desde sempre. Causador de muitos conflitos, guerras e estupidez generalizada. Gostar de onde se nasceu/mora pode ser algo natural, ter certo orgulho do que o lugar  tem de bom também. Transformar isso em objeto de paixão desmedida e verdade absoluta começa a ficar perigoso. Pessoas que se apegam à isso são ridículas e limitadas com frequencia.

A frase “não é para os fracos” revela uma mentalidade de filme estadunidense de quinta categoria. Aos olhos do dono da bravata, todo lugar onde ele supostamente “venceu” não é para os fracos. Algo que chega a ofender o maniqueísmo e a inteligência. Os “fortes”, imagina-se, são aqueles que provavelmente tem um emprego razoável pra bom, vivem suas vidas na normalidade, conseguiram se estabilizar ali naquele pedaço de terra e, claro, acabam por defender com todas as forças o seu mundinho.

A necessidade risível de tentar menosprezar o outro é sintoma clássico do inseguro. Para o bairrista, para aquele que “veste a camisa” da cidade, parece inconcebível que se faça críticas de qualquer espécie, num comportamento nada menos que acéfalo.

No simplório mundo onde essas pessoas vivem, em que as coisas são definidas pela moral de um filme da sessão da tarde, realmente tudo deve ser mais fácil. A ignorância é uma benção, já se diz por aí. O mesmo tipo de gente que parece acreditar que sua personalidade está expressa no carro que dirige. Exemplo simples de quando a intolerância, a estupidez e a cegueira caminham juntas.

No fim, são dignas de pena, por não conseguirem ir além do que sua limitação mental permite. A fraqueza, como se vê, é um conceito bem relativo. Nada que quem goste de viver num aparente joguinho de “perde e ganha”, “fortes e fracos”, seja capaz de compreender.

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A busca da pureza (e a cadeia alimentar)

Em tempos pretensiosamente “modernos”, onde tudo é fundido, misturado, remixado, falar em “pureza”, por si só, soa arcaico. Óbvio que não se fala aqui de qualquer busca da “pureza moral”, sexual, de caráter, etc, algo que cheira a conservadorismo extremo, além de no mínimo estúpido e infrutífero.

A pureza do título é, principalmente, do consumo e da alimentação. Outra vez, a ideia não é cair no papo “ecochato”, vegan chiita nem nada do gênero. Longe de mim. Vade retro. Fato é que quase nada do que comemos e bebemos é puro. Desde os iogurtes, recheados de conservantes, gomas, essências, coloríficos até a cerveja, igualmente imersa em cereais não maltados (milho, arroz e o que mais se puder imaginar), aditivos e corantes medonhos. Comida industrializada é um show de sódio, açúcar, gorduras saturadas e trans, farinhas “especiais”, conservantes que mantém a “validade” por meses a fio.

Independente de se gostar ou não dessa história, de simpatizar com essas preocupações ou não, é a sua vida. Simples assim. Uma escolha que você faz absolutamente todos os dias, por diversas vezes. E que pode definir a qualidade da sua existência, sua imunidade, fator de risco para doenças, dores, influi no funcionamento total do seu corpo: física e mentalmente. Não quero com isso dizer que precisamos todos ser ultra esportistas, manter uma dieta regrada passada por um nutricionista e só comer alimentos A ou B. Não é por aí.

Tentar equilibrar as porcarias que inevitavelmente ingerimos com outras melhores, mais naturais, integrais, puras, etc, faz bem. Sempre que comecei a cuidar da alimentação, tudo melhorou. Tornei a relaxar e o impacto é imediato. Para além das questões pessoais, é bom lembrar porque tudo que comemos é tão entupido de veneno…

Por que? Porque é barato. A escala industrial do capitalismo impôs, necessariamente, meios extremos de baratear o produto para se obter o maior lucro final. A obviedade da obviedade. E os alimentos seguem a risca esta receita, reproduzida em absolutamente tudo que conhecemos e consumimos. Com a diferença de que roupas, carros, utensílios, etc, não ingerimos. Ou seja…sempre faço questão de tentar sugerir que, pelo menos, crie-se o hábito de conferir os rótulos dos produtos. Está ali descrito, muitas vezes sob mentiras, termos confusos e sinônimos malandros, todo o lixo que mandamos para dentro com a maior felicidade.

Se é no bolso que dói mais, basta observar que tudo que é industrial é mais barato, ralo, de baixa qualidade. Alimentos naturais, integrais, etc, mais caros. Mesmo que, às vezes, sendo cultivados e produzidos por métodos mais em conta que o “tradicional”. Podemos substituir muita coisa da nossa escala de produção com inúmeros benefícios: econômicos, para a natureza e para quem consome. Parece um bom negócio, não?

Você pode não gostar, mas a diferença é nítida cada vez que se põe algo na boca. Muita gente “adora” cerveja, é consumidor contumaz há anos e nunca tomou uma de verdade. Quando toma, pode até estranhar. Pode ser que, no fundo, a pessoa nem goste de cerveja, mas daquela outra coisa que ela acostumou e foi adestrada a “apreciar”.

De todos os clichês e obviedades do mundo, um é indiscutível: enquanto estivermos fundados sob a escala industrial, o padrão de consumo extremo, a velocidade, a potência, a plena indiferença ante os mínimos direitos do outro e no desrespeito mútuo, no maniqueísmo e na exploração alheia (base da maioria das relações profissionais e até pessoais), tudo só vai piorar.

Você pode não gostar, mas vivencia tudo isso diariamente: no que come, no trânsito infernal, na sua relação com seu chefe, nas filas e nas mais variadas situações de convivência social transgredidas, na falta de educação e do respeito, na violência, nas querelas financeiras com os pais, os filhos, os parceiros, talvez até com os amigos. Um querendo se impor sob o outro pela “autoridade” que o dinheiro dá.

Para usar uma expressão popular: tá tudo dominado.

A solução? É aquela que todos nós conhecemos. Mas a verdade é que ninguém quer abrir mão de nada. Eu inclusive. Especialmente aqueles que saem da pobreza/classe média baixa agora. Quando chegam na festa alguém vira e diz que já acabou?

Traduzindo: quanto mais o capitalismo gera “desenvolvimento”, nos moldes que ele mesmo introduziu, mais o mundo caminha para o colapso. Quanto mais gente começa a alcançar o padrão de consumo dos estadunidenses e até europeus, mais rápido as coisas se deterioram. O “progresso” é seu próprio predador.

Do outro lado, não conheço nenhum “alternativo” que já não esteja com sua vida estabelecida, as coisas ganhas, os filhos encaminhados, que já não desfrutou do que bem quis. Repare. As “soluções” propostas, 90% paliativas, não encontram eco (ironia) em quem, no fundo, não tá nem aí pra isso. Parte por falta de formação, parte porque quer “tudo que tem direito” mesmo e o resto que vá para o inferno.

Agora é que tudo começa a ficar cada vez mais rápido, potente, destruidor, espetaculoso. Do jeitinho que nós adoramos. Prepare a pipoca. “Aproveite” o show.

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O que importa na educação

“O mais interessante é a exatidão do título. O tema fundamental dos Discursos era a educação. O “mundo novo” donde viria a salvação para a nação alemã, devia nascer pela transformação absoluta do sistema de educação até então em vigor.

“Tudo perdemos, diz Fichte, mas resta-nos a educação.”

Educação nova que – segundo a linha geral da filosofia idealista de Fichte – desprenderá a “Idéia”, verdadeira realidade, “terra prometida humanidade”; assegurará, pela clareza do entendimento, a pureza da vontade; expulsará o egoísmo, fonte de todas as desgraças da Alemanha. Porque a antiga educação é, segundo Fichte, totalmente desclassificada. Apela exclusivamente para a memória: pode povoa-la de certas palavras, de certas locuções, pode impregnar a imaginação fria e insensível com algumas imagens vagas e pálidas, mas nunca alcançou pintar a ordem moral do mundo com suficiente calor, a fim de despertar nos alunos o amor ardente, a nostalgia da ordem moral, a emoção profunda perante a qual desaparece o egoísmo, como folhas secas ao sopro do vento. Por conseguinte, essa educação jamais penetrou até a raiz real da vida psíquica e física. E tal raiz, negligenciada…, desenvolveu-se ao acaso.

A educação antiga só guiou a criança pela esperança ou pelo receio de resultados materiais. Numa palavra, nunca foi, nem podia ser, “a arte de formar homens’. Em especial porque só era concedia a uma ínfima minoria, por isso mesmo chamada de classes cultas.

A educação nova, ao contrário, dirigir-se-á à grande maioria, ao povo. Educação não “popular”, mas “nacional”.

Será a arte de formar homens, Penetrará até a raiz real da vida psíquica e física. Fará da cultura não um bem qualquer, exterior ao homem, mas um elemento constitutivo do próprio homem. Desenvolverá verdadeiramente no aluno a atividade do espírito criador, ao mesmo tempo que as aptidões corporais e a destreza para os trabalhos manuais. Nele criará uma vontade em que se poderá ter a mais tranqüila confiança: ele se comprazerá na verdade e no bem, considerados em si mesmos. Dar-lhe-á o verdadeiro sentido religioso, ensinando-a a “considerar e respeitar sua própria vida, e qualquer outra vida espiritual , como um eterno anel na cadeia da revelação da vida divina”. E todas estas noções, religiosas, morais, intelectuais, longe de permaneceram “frias e mortas”, haverão de achar, a cada instante, sua expressão na vida real do aluno. Cada um dos seus conhecimentos se tornará vivo, desde que a vida o “requeira”.

Tais resultados, porém, exigem certas condições. A mais necessária é a de que as crianças formem uma comunidade á parte, autônoma, sem contato com a sociedade dos adultos corrompidos pelo egoísmo. Seus mestres, bem entendido, vivem com elas, mas os pais são cuidadosamente separados. Os dois sexos são educados em conjunto. É no seio dessa comunidade reduzida e ciosamente isolada que as crianças podem transformar-se me homens, nos quais se gravará automaticamente a imagem da ordem social comunitária.

Quem, pois, senão o Estado, pode por em prática tal novo plano de educação “ativa”!? O Estado, porque os pais resistirão e será preciso exercer certa violência, ao menos para educar a primeira geração: depois, tendo a nova educação produzido os seus primeiros frutos, não mais haverá resistência. O Estado, porque se precisará de imensos recursos para enfrentar imensas despesas. Mas pode existir mais vantajosos investimento? O Estado lucrará gerações formadas no amor da coletividade, no labor, na disciplina moral; recuperará suas despesas iniciais “ao cêntuplo”.

Trecho do livro “Discursos a Nação Alemã”, publicado em 1808 pelo filósofo Johann Gottlieb Fichte. O trecho acima foi retirado de ““As Grandes Obras Políticas de Maquiavel a Nossos Dias” de Jean-Jacques Chevallier, daí os comentários iniciais.

Fora a duvidosa noção de “moral”, “ética”, a religião e alguns objetivos “pouco nobres”, digamos, que cerca o livro de Fichte, impregnado de xenofobia e outras coisas no mínimo passíveis de discussão, a ideia central dessa passagem de Fichte sempre me perturbou. Desde 2004, quando a li pela primeira vez. Sua ideia central parece-me o que realmente importa na educação.

Escrevi um artigo inflamado em 2005 (e que recomendo com algumas ressalvas) sobre  o tema, aqui.

No entanto, 200 anos depois que o livro de Fichte foi publicado, analisando a proposta básica do alemão, como o Brasil está?

“Arcaico” é um termo que não define com precisão a barbárie (mental, física, psíquica, humana) das nossas escolas. Parte do caminho para mudar isto está nessa passagem do filósofo, sempre (e infelizmente) atual.

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Michael Moore e a roupa suja

Sicko – Michael Moore – 2007 – ****

A má-vontade (ou “birrinha”) que muitos “críticos” tem com Michael Moore infelizmente quase nunca é acompanhada de uma avaliação profunda dos principais temas levantados por seus documentários. Manipulador, maniqueísta, apelativo, desonesto, sensacionalista, comediante. A lista é longa. As técnicas de Moore são realmente questionáveis. Há até um documentário sobre isso, que infelizmente ainda não vi.

Para horror de quem se limita a falar besteiras muito maiores que qualquer deslize de MM, o gordinho venceu o Oscar, garantia de sucesso comercial, e Cannes, prova de reconhecimento da crítica, que premia o que de mais “artístico” e contundente o cinema faz. Algo ignorado é que Moore me parece inteligente o bastante para ter ciência dos seus pontos falhos e de que forma ele pode ser atacado a cada documentário que produz. Reconhecer a legitimidade do adversário, aliás, é a melhor maneira de enfraquecê-lo. Isso inclui até a artimanha de enviar um cheque anônimo de 20 mil dólares ao mantenedor do maior site anti-Moore do mundo, porque o sujeito não conseguia pagar o atendimento médico necessário para a esposa. Já o argumento de que em Guantanamo (base militar dos EUA em Cuba) os prisioneiros da Al-Qaeda são tratados com muito mais cuidados que boa parte da população dos EUA é, claro, frágil. Qualquer um sabe que Guantanamo não é exatamente uma filial do paraíso.

Sicko aborda o sistema de saúde no mundo (em especial nos EUA). Difícil imaginar tema mais importante. Os depoimentos e argumentos se sucedem, afim de mostrar que quem não tem cobertura médica nos EUA está literalmente ferrado e quem tem também. Não por acaso Obama tenta, no momento, aprovar um projeto de reforma do sistema de saúde.

Mesmo com todas as restrições de “doenças pré-existentes” possíveis (uma lista infindável), 250 milhões de estadunidenses tem algum tipo de plano. Moore mostra a máfia por trás da indústria médica (e farmacêutica). Que tem o simples objetivo que toda empresa capitalista têm: fazer dinheiro a qualquer custo. Mesmo que isto seja sob a vida dos outros. Apenas um detalhe.

Histórias verídicas de pessoas que perderam familiares e amigos porque os planos negaram os tratamentos necessários sob qualquer pretexto forçoso (um absurdo descomunal) se empilham na tela. Dívidas com hospitais. Instituições que mandam despejar seus doentes na rua enfiando-os num táxi qualquer. Quanto custou para a indústria médica comprar o senado e o presidente Bush, permitindo que nada mudasse e o lucro continuasse a ser gerado como bem entendem. O terrorismo (este sim) feito sob o sistema de saúde socializado. O dinheiro em primeiro lugar, no público ou privado. Se você não tem como pagar, não é atendido. Simples assim. E mesmo quem pode, encontra dificuldade. Basta que o plano avalie que o custo será maior que o ganho. Bye bye. We are america. Self-made man.

Afim de comparar o sistema de saúde dos EUA com o de outros países, Moore vai até o Canadá, a França e a Inglaterra, entrevistando pessoas nativas destes lugares bem como estadunidenses que se mudaram para lá. A diferença gritante – atendimento respeitoso, humano, de ponta, rápido, inclusive com os médicos indo até a casa do paciente, como na França, ou o hospital dando o dinheiro para o transporte, se a pessoa não puder pagar, como na Inglaterra – aparece. Americanos (sic) contam, com os olhos brilhando, que se sentem abençoados por não dependerem do sistema de saúde do seu país de origem.

Moore certamente desconfia que impostos altíssimos devem bancar isto. E escolhe visitar a casa de um médico inglês do serviço público, na esperança dele viver endividado, como a imensa maioria dos estadunidenses. Para “surpresa” o médico ganha muito bem, tem uma casa de três andares e não possui dívidas acumuladas. Seu principal gasto são frutas e férias.

Aqui fica evidente o maniqueísmo de Moore e o mundo encantado fora dos EUA que ele cuidadosamente cria. Parece óbvio que a história não se resume ao dualismo visto na tela. Os confortáveis benefícios conquistados pelos trabalhadores franceses ao custo, literal, de suor e sangue ao longo da história, proporciona um universo de vantagens que pesam, enormemente, no orçamento do governo. A previdência estourada, a bolha crescente difícil de ser contida. E quando o governo tenta, o país pára. Os benefícios são legítimos. Funcionam. Não caíram no colo de ninguém. Mas os problemas atuais enfrentados por este quadro nem de longe são pincelados por Moore.

Assim como é óbvio que ingleses, franceses e canadenses não vivem exatamente no paraíso. Mesmo com essa ressalva, o sistema de saúde nestes países é o que deveria ser o brasileiro se a carga monstruosa de impostos que pagamos fosse bem administrada, não sendo dragada (também) pela corrupção no meio do caminho. Lá eles pagam mas tem o retorno. Aqui…bem, você sabe como é.

O que os exemplos de Moore tem em comum são a imigração explosiva, o desemprego, enfim, todas as mazelas compartilhadas em maior ou menor grau por quase todos os cidadãos do mundo. Exceto pelos 1% daqueles que detém 80% da riqueza do planeta. Aspas para Orwell, por favor:

“Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição – com efeito, de certo modo era a destruição – de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e a aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância.”

Eis a síntese do que realmente importa em Sicko. Em outras palavras, é o mesmo que é dito não por coincidência por um inglês: o governo dos EUA não parece muito interessado em ter pessoas educadas e saudáveis, porque, assim sendo, o seu poder seria questionado e destruído. Como nos EUA, assim é em boa parte do mundo. E Moore demonstra como somos enrolados numa teia de dívidas e preocupações mundanas demais durante toda a vida para não termos o que pensar, argumentar. Para ficarmos reféns do establishment. Não é nenhuma novidade. Eis a base da nossa sociedade. Sem isso, ela se implode.

O que aconteceria na Inglaterra se o sistema de saúde universal fosse alterado? Uma revolução. É o que o senhor diz. E uma estadunidense, morando na França, percebe a diferença básica: aqui (na França), o governo tem receio das pessoas, lá (EUA), as pessoas tem medo do governo. E isto muda tudo. “Não se revoltarão enquanto não tiverem consciência; não terão consciência enquanto não se revoltarem”

Por fim, Moore vai à Cuba. Lá, os “heróis” do 11 de setembro (voluntários que ajudaram o trabalho dos bombeiros e acabaram desenvolvendo uma série de doenças principalmente respiratórias com o passar dos anos) encontram o tratamento adequado – e gratuito – que lhes fora negado nos EUA. Em Cuba, o remédio que custa 120 dólares nos EUA é encontrado por 5 centavos de dólar. Somente na ilha de Fidel (onde você acha que Lúcifer mora, brinca Moore) os “heróis da América” são tratados com a dignidade merecida. Não é preciso ser “herói” para receber o mesmo atendimento.

O paradoxo é o que define o mundo moderno. Como um ilhazinha como Cuba, com todas as restrições comerciais impostas pelo próprio EUA, comunista, consegue ter um dos melhores sistemas de saúde do mundo, gratuito, e os EUA, a nação mais rica do planeta, não? Ora, tanta riqueza precisa vir de algum lugar. A indústria médica (incluindo a farmacêutica) é só um deles.

O próximo filme de Moore (a sair em outubro) é, claro, sobre a crise econômica. A verdade, no entanto, a respeito dessa galhofa toda, é só uma. Como diz Marshal Berman em “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”:

A economia moderna provavelmente continuará em expansão, embora talvez em novas direções, adaptando-se às crises crônicas de energia e do meio ambiente que seu sucesso criou. As adaptações futuras exigirão grandes turbulências sociais e políticas; mas a modernização sempre sobreviveu em meio a problemas, em uma atmosfera de “incerteza e agitação constantes” em que, como diz o Manifesto Comunista, “todas as relações fixas e congeladas são suprimidas”. Em tal ambiente, a cultura do modernismo continuará a desenvolver novas visões e expressões de vida, pois as mesmas tendências econômicas e sociais que incessantemente transformam o mundo que nos rodeia, tanto para o bem como para o mal, também transformam as vidas interiores dos homens e das mulheres que ocupam esse mundo e o fazem caminhar. O processo de modernização, ao mesmo tempo que nos explora e nos atormenta, nos impele a apreender e a enfrentar o mundo que a modernização constrói e a lutar por torna-lo o nosso mundo. Creio que nós e aqueles que virão depois de nós continuarão lutando para fazer com que nos sintamos em casa neste mundo, mesmo que os lares que construímos, a rua moderna, o espírito moderno continuem a desmanchar no ar.

Não lhe parece familiar?

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Pensando o impensável (ou, prosperidade sem crescimento)

Toda sociedade precisa de um mito para sobreviver. O nosso é o crescimento econômico. Nas últimas 5 décadas, a corrida pelo crescimento é “o” objetivo mais importante de todo político ao redor do mundo. A economia global atual é 5 vezes maior do que era meio século atrás. Se continuar neste ritmo, será 80 vezes o que era em 2100.

Este extraordinário crescimento não tem precedentes. E acompanha o nosso saber científico sobre os recursos finitos do frágil ecossistema que dependemos para sobreviver. 60% dele já foi totalmente devastado.

Na maioria das vezes, nós evitamos a dura realidade destes números. A preocupação principal – a crise financeira – é como continuar “crescendo” indefinidamente. Não apenas para os países mais pobres, que inegavelmente precisam de uma qualidade de vida melhor, mas também para as nações mais ricas, afundadas na abundância de material publicitário, que começa a ameaçar o seu bem-estar.

As razões para essa cegueira coletiva são fáceis de encontrar. A economia moderna está estruturada sob o “crescimento econômico” para se estabilizar. Quando esse crescimento falha – como aconteceu recentemente – os políticos entram em pânico. O mercado luta para sobreviver. Pessoas perdem seus empregos e até suas casas. A recessão surge. Questionar o crescimento é coisa de lunáticos, idealistas e revolucionários.

Mas a questão vai além. O mito do crescimento econômico falhou para nós. Falhou para as 2 bilhões de pessoas que vivem com menos de 2 dólares por dia. Falhou quando destruiu o nosso ecossistema. E falhou espetacularmente, em seus próprios termos, em prover estabilidade e segurança para a vida das pessoas.

Atualmente nos encontramos diante do fim iminente da era do petróleo barato; o prospecto (para além da bolha recente) é de altíssimo incremento no valor das commodities; a degradação das florestas, lagos e solos; conflitos por água; e, no momento, o desafio de estabilizar a concentração da emissão de carbono na atmosfera. Encaramos estes desafios com uma economia fundamentalmente destruída, desesperadamente precisando de renovação.

Nestas circunstâncias, um retorno ao mercado como ele era não é uma opção. Prosperidade para poucos baseada na destruição do meio ambiente e na injustiça social crônica não é algo aceitável para uma sociedade civilizada. Recuperação econômica é vital. Proteger os empregos das pessoas – e criar novos – também. Mas continuamos diante da necessidade urgente de renovar a divisão da prosperidade.

Buscar estes objetivos ainda soa estranho e incongruente para a agenda política da era moderna. Todo o governo está tomado tão intensamente por preocupações materiais e é engolido pela errônea visão de que somos “livres consumidores”. A concepção de governabilidade, por si só, precisa de uma mudança drástica.

A crise econômica atual nos coloca diante duma oportunidade única de investir na mudança. De afastar definitivamente o pensamento diminuto que foi a praga da nossa sociedade por décadas. Recompor isto com uma política capaz de lidar com essa enorme mudança é vital.

No fim, “prosperidade” vai muito além de desejos materiais. Transcende preocupações materiais. Reside na qualidade de vida e na saúde e felicidade de nossas famílias. Na força dos relacionamentos e da confiança na comunidade. É dada pela satisfação no trabalho e pelo senso de compartilhar um sentido e um caminho. Está presente no nosso potencial de participar ativamente na vida da sociedade.

Prosperidade consiste na nossa habilidade de florescer como seres humanos – respeitando os limites ecológicos de recursos finitos. O desafio para a nossa sociedade é criar as condições de vida sob o que é possível – e não transgredir tudo arbitrariarmente. Este é o dever mais urgente de nossos tempos.

(Tim Jackson, de “Prosperidade Sem Crescimento“)

Traduzido livremente por mim, daqui.

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Duas tragédias, duas medidas

Perguntar não ofende: cade a comoção nacional? A mobilização ferrenha de entidades do terceiro setor, das diferentes esferas governamentais e da população? Porque não vejo campanhas de doação a cada esquina?

Porque, quando a enchente atingiu Santa Catarina em 2008, o país literalmente parou para ajudar e agora, quando TODO o norte e nordeste do Brasil está literalmente debaixo d’água, muito pouco se faz? Porque quando uma enchente atinge uma extensão territorial e uma população infinitamente maior a reação é tão tímida em comparação com o que ocorreu com SC ano passado?

Seria porque o sul é uma região econômica vista com “muito mais carinho”, pra dizer o mínimo? Está mais perto do Sudeste e o Nordeste, afinal, passa por desgraças todos os anos…seria?

Não, não. Deve ser outra coisa…

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