Política & Economia

A desigualdade comprova: o capitalismo falhou para 99% da humanidade

desigualdade

O relatório mais recente da Oxfam, ONG que é a maior referência mundial no tema, confirma o que a própria Oxfam e tantos especialistas e analistas sérios (Paul Krugman, Thomas Piketty e outros) vem repetindo e estudando nos últimos anos: o mundo nunca esteve tão desigual, a crise de 2008 aprofundou o lucro do 1% mais rico da população, a igualdade de gênero é uma realidade distante e a evasão fiscal e o lobby são instrumentos fartamente usados para potencializar esses lucros irreais e piorar sistematicamente a situação de quem está na base da pirâmide. Destaquei alguns pontos essenciais do relatório completo, disponível aqui.

  • Em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas – a metade mais afetada pela pobreza da humanidade. Esse número representa uma queda em relação aos 388 indivíduos que se enquadravam nessa categoria há bem pouco tempo, em 2010.
  • A riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em 44% nos cinco anos decorridos desde 2010 – o que representa um aumento de mais de meio trilhão de dólares (US$ 542 bilhões) nessa riqueza, que saltou para US$ 1,76 trilhão. 
  •  Ao mesmo tempo, a riqueza da metade mais pobre caiu em pouco mais de um trilhão de dólares no mesmo período – uma queda de 41%.
  •  Desde a virada do século, a metade da população mundial mais afetada pela pobreza ficou com apenas 1% do aumento total da riqueza global, enquanto metade desse aumento beneficiou a camada mais rica de 1% da população.
  • O rendimento médio anual dos 10% da população mundial mais afetados pela pobreza no mundo aumentou menos de US$ 3 em quase um quarto de século. Sua renda diária aumentou menos de um centavo a cada ano.
  •  Segundo uma estimativa recente, riquezas individuais que somam US$ 7,6 trilhões – equivalentes a mais que o produto interno bruto (PIB) combinado do Reino Unido e da Alemanha – estão sendo mantidas offshore atualmente.
  • A instituição observou ainda que a distância salarial entre os gêneros também é maior em sociedades mais desiguais. É interessante observar que 53 das 62 pessoas mais ricas do mundo são homens. 
  • Em todo o mundo, o impacto ambiental médio do 1% mais rico da população mundial pode ser até 175 vezes mais intenso que o dos 10% mais pobres. 
  • Os salários dos diretores executivos das maiores empresas norte-americanas aumentaram em mais da metade (54,3%) desde 2009, enquanto os dos trabalhadores permaneceram praticamente inalterados. O diretor executivo da maior empresa de informática da Índia ganha 416 vezes mais que um funcionário médio da mesma empresa. As mulheres ocupam apenas 24 dos cargos de direção executiva das empresas listadas na Fortune 500. 
  • A evasão fiscal é um problema que está se agravando rapidamente. A Oxfam analisou 200 empresas, entre as quais as maiores do mundo e as que são parceiras estratégicas do Fórum Econômico Mundial, e verificou que nove de cada dez delas estão presentes em pelo menos um paraíso fiscal. Em 2014, os investimentos de empresas nesses paraísos fiscais foram quase quatro vezes maiores do que em 2001.
  • Quase um terço (30%) da riqueza dos africanos ricos – que totaliza US$ 500 bilhões – é mantido em paraísos fiscais offshore. Estima-se que essa prática custe US$ 14 bilhões por ano em receitas fiscais perdidas para os países africanos. Esse valor é suficiente para oferecer serviços de saúde que poderiam salvar a vida de 4 milhões de crianças e empregar professores em número suficiente para que todas as crianças africanas pudessem frequentar uma escola.
  • O setor financeiro tem crescido mais rapidamente nas últimas décadas e é atualmente responsável por um de cada cinco bilionários. Nesse setor, a diferença entre salários e benefícios e o valor efetivamente agregado à economia é maior do que em qualquer outro. Um estudo realizado recentemente pela OCDE revelou que países com setores financeiros inchados caracterizam-se por uma maior instabilidade econômica e uma desigualdade maior. Não há dúvida de que a crise das dívidas públicas provocada pela crise financeira, por resgates de bancos e pela subsequente adoção de políticas de austeridade tem afetado mais intensamente as pessoas pobres. O setor bancário permanece no cerne do sistema dos paraísos fiscais; a maioria da riqueza mantida offshore é gerida por apenas 50 grandes bancos.
  • Empresas farmacêuticas gastaram mais de US$ 228 milhões em 2014 em atividades de lobby em Washington. Quando a Tailândia decidiu emitir uma licença compulsória para uma série de medicamentos essenciais – uma disposição que garante a governos a flexibilidade necessária para produzir medicamentos localmente a um preço bem mais baixo, sem a necessidade de obter a permissão do titular da respectiva patente internacional –, essas empresas pressionaram com sucesso o governo dos Estados Unidos para incluir a Tailândia em uma lista de países que poderiam sofrer sanções comerciais.

CZKXam9WIAAMqF3

SOLUÇÕES PROPOSTAS PELA OXFAM

  • Garantir o pagamento de um salário digno aos trabalhadores e fechar a distância das bonificações dos executivos: aumentando o salário mínimo para que se torne um salário digno; garantindo a transparência na relação salário-lucro; e protegendo os direitos dos trabalhadores à sindicalização e à greve.
  • Promover a igualdade econômica das mulheres e seus direitos: oferecendo compensação pela prestação de cuidados não remunerados; eliminando a distância salarial entre os gêneros; promovendo direitos iguais de herança e de titularidade de terras para as mulheres; e melhorando a coleta de dados para avaliar como mulheres e meninas são afetadas por políticas econômicas.
  • Controlar a influência de elites poderosas: estabelecendo registros obrigatórios de atividades de lobby e normas mais robustas para conflitos de interesse; garantindo que informações de boa qualidade sobre processos administrativos e orçamentários sejam publicamente divulgadas e facilmente acessíveis; reformando o ambiente regulatório, com ênfase na promoção da transparência governamental; separando empresas do financiamento de campanhas; e adotando medidas para fechar as “portas giratórias” entre grandes empresas e o governo.
  • Mudar o sistema global de P&D e de fixação de preços para medicamentos para que todos tenham acesso a medicamentos adequados e acessíveis: negociando um novo tratado global de P&D; aumentando investimentos em medicamentos, incluindo em medicamente genéricos acessíveis; e excluindo normas de propriedade intelectual de acordos comerciais. O financiamento de P&D deve ser desvinculado da fixação de preços de medicamentos para romper os monopólios das empresas e garantir um financiamento adequado para atividades de P&D em torno de terapias necessárias e a acessibilidade dos produtos resultantes.
  • Dividir a carga tributária em bases justas: diminuindo o peso da carga tributária sobre o trabalho e o consumo e aumentando essa carga sobre a riqueza, o capital e a renda decorrente desses ativos; aumentando a transparência dos incentivos fiscais; e adotando impostos nacionais sobre grandes fortunas.
  • Adotar medidas progressistas em relação aos gastos públicos para combater a desigualdade: priorizando políticas, práticas e gastos que aumentem o financiamento de sistemas públicos de saúde e educação no sentido de combater a pobreza e a desigualdade em nível nacional. Abrindo mão de promover reformas não comprovadas e impraticáveis baseadas na lógica do mercado nos sistemas públicos de saúde e educação e ampliando a prestação de serviços essenciais por parte do setor público e não do privado.
Padrão
Ativismo

Peter Sunde: “não existe internet livre”

Captura de tela de 2015-12-18 12:23:18

Peter Sunde é um dos fundadores do Pirate Bay, o agregador de torrents mais famoso dos anos 00, o símbolo da internet livre e do compartilhamento de arquivos. Condenado em 2009 e preso em 2014, a experiência de Sunde diz muito do estado de coisas atual. Destaco dois trechos dessa ótima entrevista para a Vice: 

“Não temos uma internet livre. Estamos perdendo privilégios e direitos o tempo inteiro. Não ganhamos nada em setor algum. A tendência é uma só: uma internet cada vez mais controlada e fechada. Isso tem um impacto enorme na nossa sociedade. Se você tem uma internet mais oprimida, você tem também uma sociedade oprimida. E deveríamos nos focar nisso. Nunca vimos tanta centralização, desigualdade e capitalismo extremos. Porém, de acordo com o marketing feito por gente como Mark Zuckerberg e empresas como o Google, tudo é feito para ajudar a rede aberta e promover democracia, e por aí vai. Ao mesmo tempo, são monopólios capitalistas. É como confiar no vilão pra fazer boas ações. É bizarro.

(…)

Penso que para vencer a guerra, primeiro precisamos entender o que é a luta e pra mim está claro que lidamos com algo ideológico: o capitalismo extremo em voga, o lobby extremo em voga e a centralização do poder. A internet é só uma peça em um quebra-cabeça ainda maior. E o lance com o ativismo é que preciso agir na hora certa para ganhar atenção e tudo mais. Mandamos muito mal nisso. Paramos a ACTA, mas então ela voltou com outro nome. Na época, já tínhamos gasto todos nossos recursos e atenção do público com aquilo. O motivo pelo qual foco no mundo real é porque a internet o emula. Estamos tentando recriar uma sociedade capitalista na internet. Logo, a internet tem servido de combustível para a chama capitalista ao fingir ser algo que te conectará ao mundo todo mas que, no final, tem interesses capitalistas. Observe as maiores empresas do mundo, todas tem base na internet. Veja o que elas vendem: nada. O Facebook não tem produto. O Airbnb, maior rede de hotelaria do mundo, não tem hoteis. Uber, a maior empresa de táxis mundial, não tem nem táxis. A quantidade de funcionários nessas empresas está mais reduzida que nunca e os lucros, por sua vez, maiores. Apple e Google ganham de petroleiras fácil. Minecraft foi vendido por 2,6 bilhões de dólares e o WhatsApp por uns 19 bilhões. São quantias absurdas de dinheiro trocadas por nada. Por isso a internet e o capitalismo se amam tanto.”

Sunde tem um ponto e está corretíssimo na sua avaliação. O recente bloqueio do Whatsapp no Brasil ilustra PERFEITAMENTE isso. Zuckerberg, que é dono do Whatsapp, se apressou em afirmar que “este é um dia triste para o Brasil” e “estamos” – risos – “lutando por uma internet independente”. É no mínimo “curioso” que uma empresa que colabora pesadamente com o governo dos EUA (assim como todas as outras) fornecendo dados dos usuários e que também usa cada letra que você escreve e cada click que você dá para filtrar a timeline, direcionar anúncios, etc, se negue a fornecer dados de um criminoso para a justiça brasileira (o que gerou a estapafúrdia interrupção temporária do Whatsapp).

Claro, nosso Marco Civil (apesar de erroneamente atacado no episódio) é patético. Claro, o que não falta é juiz fazendo “juizices” pra aparecer. Claro, é um absurdo que só acontece porquê ainda somos capitanias hereditárias. Mas serve pra esfregar na sua cara de quem parece viver em uma realidade paralela o óbvio ululante: não existe internet livre nem nunca existiu.

Essa é uma história sem mocinhos. O doc “Citizen Four”, sobre Edward Snowden e o vazamento de informações sobre as práticas da NSA mostra, desenhadinho, que isso nunca foi teoria da conspiração. Há uma estrutura gigantesca construída e mantida com esse único foco: espionar o usuário e manter todas as informações que circulam na internet bem controladas. Eles fazem o que querem e nós trabalhamos gratuitamente gerando conteúdo para eles. É 1984 aperfeiçoado. Quem controla o presente, controla o passado e o futuro.

Ter isso em mente é fundamental para não cairmos em falácias muito bem construídas de quem tenta se vender como o oposto do que realmente é.

httpv://www.youtube.com/watch?v=6yYYuBCfzh4

Padrão
Política & Economia

Mapa mostra a desigualdade social e a “democracia racial” no Brasil

mapabrasilgeral

Trabalho sensacional do grupo pata, esse Mapa Racial do Brasil (usando dados do IBGE) mostra a sabida e profunda desigualdade social do Brasil, assim como (sempre bom lembrar) expõe o ridículo da “democracia racial” usada por Gilberto Freyre e outros, segundo a qual nós seríamos “menos racistas e mais tolerantes” que outros países e por aí afora. Para consultar e guardar.

Separei alguns exemplos de regiões específicas que mostram como os negros são excluídos das áreas nobres das cidades:

Distrito Federal

maparacialbrasilia

Rio de Janeiro

maparioracial

São Paulo

maparacialsp

Salvador

maparacialsalvador

Recife

maparacialrecife

Como foi feito?

O que você está vendo é um mapa interativo de distribuição racial no Brasil. Através dele é possível observar a distribuição geográfica, densidade demográfica, e diversidade racial do povo brasileiro. Cada um dos pontos no mapa representa uma pessoa¹. O local e cor dos pontos são baseados nos dados do Censo IBGE de 2010 disponível online; cada cor no mapa representa uma das opções de raça possível no referido censo.

O censo fornece, entre outras coisas, dados georreferenciados (distribuídos em setores censitários, a menor unidade geográfica da pesquisa) sobre a raça auto-declarada por cada cidadão brasileiro.

Em poucas palavras, o mapa foi gerado posicionando aleatoriamente no espaço de cada setor censitário os pontos/pessoas que pertenciam ali. Como os setores censitários são, via de regra, unidades geográficas relativamente pequenas, este método proporciona um resultado bastante fiel da distribuição racial no espaço.

A motivação para esse projeto adveio da falta de visualizações geográficas da população, que frequentemente são realizadas com base em divisões geográficas artificiais, como municípios ou estados. Queríamos um método eficaz e fácil de visualizar os dados obtidos pelo censo.

O mapa foi criado pos nós da pata, a inspiração e a base do código utilizado para gerar o mapa vieram de Dustin Cable, um ex-pesquisador do Cooper Center for Public Service da University of Virginia, e autor de um mapa racial dos Estados Unidos. Ele, por sua vez, foi inspirado por Brandon Martin-Anderson do MIT Media Lab, e Eric Fischer, mapmaker/programador.

¹ Ou quase: por questões de segurança, não são divulgados os dados de setores censitários com menos de cinco domicílios.

Os pontos

Cada um dos mais de 190 milhões de pontos no mapa representa um cidadão brasileiro. Devido à escala do mapa, cada ponto é menor que um pixel na maioria dos níveis de zoom disponíveis. Isso quer dizer que o que você vê são na verdade aglomerado de pontos (e, consequentemente, de pessoas), a não ser que esteja visualizando em um zoom alto suficiente para focar em cidades ou bairros.

Cada cor diferente representa uma das raças que os cidadãos podiam escolher no censo. Verde são pardos, vermelho são pretos, azul são brancos, marrom são indígenas, e amarelo são, bem, amarelos… (vale sempre dizer que esta é a terminologia adotada pelo IBGE).

Leia mais.

Padrão
Ciência & Saúde

Saúde Mental em Dados – 2015

cobertura_caps

(evolução da cobertura dos CAPS, clique para ampliar)

Nesta semana, a Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, liderada por Roberto Tykanori Kinoshita, lançou a novíssima edição do documento “Saúde Mental em Dados”, traçando um completíssimo panorama da deste tema no Brasil. Apesar dos desafios de implantação nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e da própria reforma psiquiátrica (falei mais sobre isso aqui), observa-se claramente os efeitos da mudança do modelo de atendimento nos últimos anos, como ilustra a imagem acima.

Melhoraram a presença dos Centros de Atenção Psicossocial, os Serviços Residenciais Terapêuticos, Consultórios na Rua, o atendimento em saúde mental na atenção básica, o Programa de Volta Pra Casa, além dos formação dos profissionais e os programas de prevenção.

Acesse aqui o documento.

O relatório é um achado para qualquer um interessado no tema no país, dos profissionais da saúde ao cidadão, da imprensa aos gestores, capaz de gerar inúmeros debates e pautas.

Padrão
Literatura

“Escrever é meter as mãos na imundície”

madame-bovary-mia1

A brilhante estreia de José Castello no Suplemento Pernambuco, resumindo muito do que eu acredito na literatura (e muito do que está errado hoje em dia na nossa eterna obsessão tecnicista). Um trecho:

“Vivemos a era da técnica — vivemos o tempo da perícia, da habilidade e da atuação. O tempo do desempenho e da competência. Flaubert, porém, desprezava enfaticamente os engenhosos. Defendia a força, e não a engenhosidade. No lugar da destreza, preferia a potência. Entendia que a maior característica do artista era justamente ser forte, e não ser hábil. “Logo, o que eu mais detesto nas artes, o que me crispa, é o engenhoso”. Não se trata de fazer bem feito. Tampouco de ostentar autoridade, ou competência. Trata-se de outra coisa bem mais difícil: da doação. Ou o escritor se entrega a sua escrita, ou ele a faz com sangue e com febre, ou nada o salvará. Nem a elegância, nem a correção, nem a habilidade. Nada. Por isso o escritor não deve ser visto como um técnico que desempenha adequadamente seu papel, mas como um homem que, entregue a seus impulsos e à sua desordem interior, simplesmente se deixa fazer. Faz até o que desconhece. Faz até o que não sabe que faz.

É por isso que as palavras deformam e aniquilam aqueles que escrevem. “Estou arrasado de fadigas e de fadiga e de tédio”, diz Flaubert no ano de 1853. No período em que se dedica a escrever sua Bovary, ele desabafa: “Esse livro me mata; nunca mais farei nada semelhante”. Não é fácil lidar com sentimentos e impulsos extremos. Não é nada fácil encarnar o outro. Exausto, retido sob o peso da própria escrita, Flaubert reconhece, porém, que não lhe resta outro caminho. Que escrever é isso: entregar-se, deixar-se aniquilar, submergir. Nada daquela escrita asséptica e “bem editada” que tanto fascina os escritores _ e os editores _ de hoje. Escrever é meter as mãos na imundície. É sujar-se daquilo que se desconhece, ou nada que preste se fará.”

Padrão
Entrevistas

Robert Crumb em três tempos

Crumb, Robert - Comiczeichner, USA

Crumb certamente é um dos maiores cartunistas de todos os tempos. Aos 72 e morando numa pequena vila no sul da França desde os anos 90, Crumb é controverso e paradoxal como quase todo artista acima da média normalmente é.  Nesta entrevistaça que cedeu para o Observer, Crumb fala longamente sobre suas taras sexuais e o fardo do sexo, a cultura undergound, as benesses e os inconvenientes da fama, algumas escolhas da carreira, as implicâncias, o público, o feminismo, influências, as simpatias políticas e sua nostalgia cultural do início do século 20, especialmente na música. É leitura divertidíssima, enriquecedora e brilhante. Vale a pena reservar um pouco do seu tempo para ler. Selecionei alguns momentos:

SEX

“I have tried to talk to women about that very issue of male domination, power and feminism many times before to no avail. They don’t wanna hear about it. One rejection and that’s it for me. That just kills me,” said Mr. Crumb. “I couldn’t take all those nos so I don’t do anything. I’m just paralyzed. Women expect men to take the initiative, to be forceful, assertive; they expect to be courted and seduced. In spite of feminism, women still want to be the object of attraction, and the male’s confidence in courting her is a test that he must pass in order to win her.”

“So, before you became famous, how did you get laid?”

“I didn’t.”

“You must have a big ego,” I told him.

“Gigantic, but fame changed all of this,” he said, “I got married to the first overweight woman passing by, this deeply neurotic, insecure woman. I was living the life of a wage slave in Cleveland and then one day in January, 1967, I just hitched a ride to San Francisco without telling her, and left my job in the greeting card business. The hippie culture of Haight-Ashbury, where it all started for me, was full of men doing nothing all day and expecting women to bring them food. The ‘chick’ had to provide a home for them, cook meals for them, even pay the rent. It was still very much ingrained from the earlier patriarchal mentality of our fathers, except that our fathers, generally, were providers. Free love meant free sex and food for men. Sure, women enjoyed it, too, and had a lot of sex, but then they served men. Even among left-wing political groups, women were always relegated to secretarial, menial jobs. We were all on LSD, so it took a few years for the smoke to dissipate and for women to realize what a raw deal they were getting with the ne’er-do-well hippie male. Men who acquired preeminence at the time were all frauds, fake gurus who were paying lip service to peace and love, charismatic cons who just wanted to fuck all their adoring disciples. Timothy Leary was like that. A big phony.”

“With fame you didn’t have to avoid rejection and jerk off forever,” I observed.

“It was the most remarkable change in my life,” he agreed, “and it came very suddenly, too. All of a sudden beautiful women started flocking to me. It happened, like, overnight, in the year 1968. It took my breath away.”

“When you have sex in your drawings, like in the bus story, it is usually from behind,” I observed. “But we never see if it’s anal sex or vaginal.”

“I’ve never been asked that before,” Mr. Crumb said. “It’s vaginal, although the act of penetration itself is not the main event for me. It’s the psychological stuff around it, what’s called ‘foreplay,’ I guess you might say. That’s where the big thrills are for me. Intercourse for me is just, you know, the icing on the cake, or something. These things are hard to talk about. Anyway, it’s all in the comics.”

(…)

What is your favorite sexual position?” I asked him.

“Mr. Crumb giggled nervously and shifted in his chair. “I dunno… Is that something I really have to…? I can’t really talk about it. I can draw it in my comics, but I can’t actually talk about it… It’s embarrassing. Then how was I able to draw it for all the world to see, you might ask? I don’t know the answer. I like to be sucked while I’m sitting on a chair with the woman kneeling, all spread out sprawling so I can slap her big ass,” he said. “A big ass is just heaven. Like two giant basketballs.

MEDIA & READERS

“Have you ever thought of actually committing suicide?” I asked.

“Yes. The last time I came close was 1986,” Mr. Crumb said, “I was at the peak of my fame. The BBC came to my house to make a documentary on me and I got a tribute at this comic convention, the Angoulême International Comics Festival in France. All of these ordeals had to do with being famous. I needed money, so I accepted the BBC offer. They invaded my house with their cameras, lights and their shit — it was awful. Then I went to this big comics convention in France, where I was the main event. They built a giant head of me, people could actually walk through it. All my comic stuff was pasted inside this giant head. It was torture. There were journalists, photographers everywhere. I felt disgusted with life.

“So who buys your shit? Some fat, balding wanker guy in mommy’s basement?”

“Yes,” Mr. Crumb said.

“No wonder you want to kill yourself.” I said.

“I see them at conventions,” Mr. Crumb said. “Nerdy guys or fat, aging hippies. One time I was signing books next to this guy Peter Bagge, who had young cute teenage girls lining up for him. His comics are very funny stories about young punk rock-type kids, a very sympathetic portrayal of their world. My work creeps women out. The very thing that you are talking about that you think should make it sympathetic to them, they find very creepy. This introspective, self-loathing guy who then wants to dominate and do all these crazy things to women. In real life, some women might respond to that sort of man, but believe me, it’s not what they want in their entertainment. They want Fifty Shades of Grey, which sold 50 million copies, all to women.”

POLITICS

“Peripherally, I had left-wing sympathies,” Mr. Crumb said, “but a lot of these extreme left-wing groups became hopelessly doctrinaire to the point where they became rigid and dogmatic and unattractive. Life is not that simple…when people start spewing Marxist doctrine around, I just fade out. One of my best friends, the cartoonist Spain Rodriguez, was a very committed Marxist, and his point of view was subtle enough that he gave me a lot of clarity regarding class allegiance. The difference between the value systems of the proletariat and the bourgeoisie used to be much clearer than it is nowadays. Spain would always bring it back to that class difference. Who are you going to align yourself with? The values of the working class or the bourgeoisie? That was very enlightening; it helped me a lot because the bourgeoisie is always trying to erode the other side away, to obfuscate it.”

(…)

“We should still bomb motherfucking banks,” he said.

“What did you make of Occupy Wall Street?” I asked him.

“I thought it was a worthy effort,” he said.

“I walked through Zuccotti Park and these fools were calling for ‘good’ banks, the church and Thomas Jefferson’s ideals.”

“That’s sad. 2008 was the biggest robbery in history and who goes to jail? Some poor black kid who stole some sneakers at a fucking Wal-Mart if he gets lucky enough to not get shot in the back on his way there,” Mr Crumb said,

“A black kid recently in New York ended up at Rikers Island for stealing a backpack. He couldn’t make bond, always denied the charges, stayed at Rikers for years and after he finally got out, killed himself. Obama, in his final year in office, finally realizes that he spent his presidency trying to please the white man who hates him on sight, he did nothing to help black people.”

“Yes. He’s a house Negro,” Crumb said.

“That’s what Osama bin Laden said about Obama.”

“Really? Wow! I didn’t know that. And the bankers and corporations keep on raping America and most of the poor don’t vote at all, and when they do, they keep on voting their shills into office. I’m so glad I don’t live there anymore. I haven’t had a boss since 1967, when I quit the greeting card company. I’m an exceptionally free agent in this world. Ninety-nine percent of the population lives in fear of losing their job. I’ve been lucky that way I’m free to speak my mind and not fear for my livelihood,” Mr. Crumb said.

MUSIC & AMERICA

“The America that I missed died in about 1935. That’s why I have all this old stuff, all these old 78 records from that era. It was the golden age of recorded music, before the music business poisoned the people’s music, the same way that ‘agribusiness’ poisoned the very soil of the earth. In the old days, music was produced by common people, the music they produced to entertain themselves. The record industry took it and resold it, repackaged and killed it, spewed it out in a bland, artificial, ersatz version of itself. This goes along with the rise of the mass media, the spread of radio. My mother, born in the 1920s, remembered walking in the street in the summertime in Philadelphia, and in every other house, people were playing some kind of live music. Her parents played music and sang together. In her generation, her brothers didn’t want to play an instrument anymore. It was the swing era and all they wanted to do was to listen to Benny Goodman on the radio. The takeover of radio happened much later. In places like Africa, you can still find great recorded music from the ’50s. I have many 78s from Africa at that time that sound like some great rural music from America in the ’20s. In the U.S at that time there were thousands and thousands of bands, dance halls, ballrooms in hotels, restaurants had dance floors, school auditoriums, clubs in small towns. A small town of 10,000 would have a least a hundred bands. In the mid 30’s radio spread very fast in America and the depression killed a lot of the venues where live music was performed. You could go to the movies for 10 cents. Then in the 50’s TV finished it all off. Mass media makes you stay home, passive. In the 20’s there was live music everywhere in the States.”

Padrão
Entrevistas

Edyr Augusto: “na literatura, é preciso ousar”

destaque-342501-edyr-proenca-2--danilo-verpa-folhapress

Por Maurício Angelo

Falei recentemente da obra do paraense Edyr Augusto Proença aqui no blog. Com 6 livros lançados e “Pssica”, de 2015, fresquinho nas prateleiras, nada melhor que bater um papo rápido com o autor e jornalista sobre algumas das principais questões da sua literatura, sua linguagem, sua forma de ver o mundo e o estado atual das coisas, seja ele qual for. Entrevista que você confere abaixo.

Você mora no centro de Belém e o centro de grandes cidades (talvez especialmente cidades portuárias) costuma ser uma região especialmente “degradada”. E você já disse o quanto esse convívio com os diferentes tipos de figuras que habitam esse cenário é importante para a sua literatura. Ao mesmo tempo, você não acha que falta, talvez, justamente essa vivência para escritores de centros que costumam se isolar em seus apartamentos em bairros de classe média alta e ter uma visão quase superficial e fortuita com o pulso das cidades em que vivem? A literatura não fica razoavelmente fake com isso?

É difícil responder. Cada escritor tem seu próprio universo e seu método de trabalho. Não posso responder pelos outros. No meu caso, é essencial ouvir a melodia, o ritmo, as palavras usadas. Há pessoas do povo também circulando em bairros de classe media alta onde poderiam ouvir suas falas. Enfim, é uma questão de método.

Sua linguagem é extremamente direta, talvez mais que qualquer outro nome. A princípio, confesso, isso me incomoda. Essa ânsia em pegar o leitor pela jugular e não deixá-lo respirar. Mas funciona. Como você equilibra essa pegada para, paradoxalmente, não cansar o leitor? Entre todas suas atividades – escritor de teatro, radialista, redator publicitário etc – qual tem mais influência nisso?

Escrever para teatro me deu uma certa medida, que fui percebendo ao longo do tempo. Entre o palco e a plateia, há uma tensão alta e qualquer movimento em falso, pode-se perder a atenção de todos. Escrever de maneira concisa, é a premissa para a redação publicitária, radio e jornal. Não sei qual a maior influência, mas cheguei ao estilo por conta dessas atividades. Escrever é cortar palavras.

Escrever cenas de sexo é sempre uma armadilha. A chance de soar patético, pueril, forçado ou algo que o valha é sempre enorme. Mas as suas, talvez por conservarem um teor típico de algo crível, rotineiro, sujo na medida, comum a todos nós, conserva uma identidade. Há um cuidado maior em escrever tais cenas?

Não tenho maior cuidado do que tenho com outras. As cenas de sexo são provocadas por uma grande emoção, nervos à flor da pele e mais do que tudo, são descargas de violência, tensão e erotismo. Escrevo de uma vez. Escrevo como quem enxerga na tela do computador, os personagens se relacionando. E ali já estão dentro de um contexto. Estão imersos em seu desespero.

A investigação jornalística, em fatos “reais” retratados por jornais, é um processo pelo qual você já disse que são fundamentais para o seu livro. A brutalidade do real sempre supera a ficção?

Como diz Marcelo Mirisola, “ficcionistas, cuidado, a realidade é uma concorrente”. Com tantas câmeras, tantos programas policiais ou investigativos, é cada vez mais difícil os acontecimentos não estarem na mídia. No caso do “Pssica”, usei como pano de fundo, fatos cansativamente noticiados nos cadernos policiais. Todo o resto é ficção. O real é sempre brutal. Muito. Nós, escritores, tentamos provocar no leitor essa emoção. Nem sempre conseguimos.

No seu blog, no texto “Nós, os invisíveis”, você comenta o quanto os principais veículos de imprensa e o próprio poder público desconhecem ou não dão o devido valor ou não tem o mínimo de política e incentivo para estimular a cultura local. Seja em Belém, seja em SP, megalópole e principal cidade do continente, isso parece queixa comum. A cultura no Brasil realmente está condenada à marginalização eterna? Em viver de migalhas do poder público e midiático? Somos um país que lê e se importa pouco e quase nada mudou nas últimas décadas?

Em âmbito nacional, é mais difícil opinar, mas posso dizer que a Cultura, nos últimos vinte anos, profissionalizou-se, é uma atividade que gera empregos, impostos, uma indústria. Mas os dirigentes não acompanharam esse processo, o que é uma pena. No caso do Pará, temos há longos anos, uma campanha justamente de dizimação da classe artística. Não há nenhuma política cultural para nenhuma area. Nós, escritores, promovemos a segunda FLiPa, Feira Literária do Pará, iniciativa completamente particular. Não estamos parados. É preciso profissionalização. Chega de amadorismo.

Jornalistas são, grosso modo, bichos ignorantes?

Eu sou jornalista. Há bons e maus em qualquer lugar. No Pará, sou muito bem noticiado pelos colegas, fora o caso de donos de jornais que brigam e quem escreve em um jornal (escrevo semanalmente em O Diário do Pará), não é noticiado em outro. Coisa provinciana.

Você teme uma possível ‘exaustão’ de estilos, temas e abordagens? Ou, na linha do “minha aldeia é o mundo” e sendo o Pará uma sociedade tão complexa e sincretista, há material suficiente para uma carreira inteira? Pode sair do seu lugar de origem para ambientar uma obra futura?

O Pará e Belém são assuntos ótimos. Tudo o que escrevi até hoje tem a ver com isso. Mas nada me impede de ter outras ideias, também. Sou absolutamente livre para escrever sobre o que quiser. Escritores de best sellers parecem escrever o mesmo livro há longos anos e são admirados. O estilo será o mesmo. As histórias, sempre diferentes.

Se fosse possível traçar um desejo, e não apenas individual, mas amplo, o que seria essencial para mudar o cenário que encontramos em 2015 em todo o país em termos de literatura, etc?

Educação. Temos, hoje, pelo menos umas três gerações perdidas, sem cultura, educação, ética, nada. Não sou técnico, mas é preciso cuidar imediatamente das novas gerações. Um choque brutal. Para tudo. Recomeça. Em uns doze anos, talvez tenhamos algum horizonte. Com isso, a literatura. O que fazer com essas gerações perdidas? Não sei. Mas sei que não se pode dar a um moleque que passa o dia mexendo com twitter, whatsapp, facebook e outros, um Machado de Assis para ler. O cara precisa se identificar com a linguagem. Precisa gostar. Não ler por obrigação. Mais tarde ele procurará por Machado.

Seria arbitrário identificar um eixo comum para a geração 00 ou, em termos práticos, você enxerga alguém capaz de quebrar o nicho a que a literatura está normalmente confinada? Isto é importante?

Não vou citar nomes. Fatalmente esqueceria alguém. Mas tenho gostado de alguns jovens escritores. Gosto dos temas, da linguagem. É preciso ousar. Com a internet, os jovens têm acesso ao que é produzido no mundo inteiro. Precisamos ganhar essa aposta com textos fortes, criativos e interessantes. O grande problema é chegar a eles. Interessá-los. Tirá-los dos smartphones. E isso tem a ver com a questão de educação.  

A desigualdade social brasileira – uma das 10 maiores do mundo – de alguma forma, e longe do clichê tão normalmente abordado na arte nacional (por gente da classe média alta) é um dos panos de fundo da sua narrativa? O Pará é um universo simbólico neste aspecto e na “ausência de lei” em algumas regiões. O Brasil profundo que a maioria das capitais gosta de não enxergar. É possível que isto seja um dos fatores fundamentais do seu texto? 

O Brasil é muito grande. O Pará, também. Terra de contrastes. Talvez o Estado potencialmente mais rico e ao mesmo tempo, economicamente um dos mais pobres. Com as riquezas descobertas, desesperados correram para ficar ricos. Hoje, jazem pelas ruas esfomeados, sem porvir. O Marajó é a maior ilha fluvial do mundo. Um arquipélago de cem ilhas. A Lei não chega. A miséria é maior. O Estado é incompetente. Falta tudo. Vira lei do cão. Lei da selva. Manda o mais forte. São esses contrastes que me interessam. Que fazem minha literatura. Dou voz aos ricos e a quem está nas sombras, perdido, assustado, armando o bote para alguma presa.

Padrão