Literatura

O brutalismo regional de Edyr Augusto Proença

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Por Maurício Angelo

Quando se fala em “brutalismo”, a referência inevitável no Brasil e para quem o termo foi inicialmente empregado, é Rubem Fonseca. Mas seria o paraense Edyr Augusto Proença apenas mais um entre tantos que buscam emular Fonseca? Ou trata-se de uma influência inevitável do escritor policial onipresente nestas terras nos últimos 60 anos? Logo nas primeiras páginas de “Os Éguas”, objeto deste texto, o primeiro romance de Edyr, lançado em 98, a resposta fica clara.

Ao contrário de Fonseca, dado sempre a digressões filosóficas, referências cinematográficas e da arte em geral, em descrições enciclopédicas de lugares e objetos, Edyr preza pelo texto extremamente exíguo, direto, coloquial, frases curtíssimas e que bebem diretamente do regionalismo próprio do meio em que sempre viveu: Belém do Pará.

E essa é uma característica importantíssima não só em “Os Éguas”, como em toda a obra de Edyr. É ao se apropriar do que conhece tão bem, em apostar na vida característica do que o circunda que a sua literatura ganha contornos mais próprios e interessantes. Já se falou de forma exaustiva que, paradoxalmente, quanto mais regional, mais mundial a arte se torna (minha aldeia é o mundo, disse Pessoa) e o sucesso de Edyr na França, por exemplo, onde vem sendo celebrado como um dos grandes autores contemporâneos, parece confirmar isso.

Sua linguagem seca (mas não rígida), vem do teatro, início da sua carreira como escritor e que o ocupa até hoje (Edyr tem uma companhia de teatro em Belém há 30 anos). O cenário são as ruas de Belém, inundadas de violência, corrupção, estupro, drogas, pedofilia, relações destroçadas e figuras decadentes. O cenário é Belém, mas poderia ser São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Paris, Los Angeles, Tóquio ou São Mateus. Nada que não aconteça desde o início dos tempos. A escrita, de modo surpreendente, flui.

O ritmo sempre frenético e alucinante de Edyr é do tipo que te faz ler o livro quase num fôlego só, parando no meio pra respirar. Sem se expor demais, no entanto, para não levar uma bordoada na cabeça. Tem sexo, sem ser pueril. A putaria não é estilizada ou grandiloquente, mas calcada no dia a dia, real e imediata. Edyr é econômico e preciso, quando acerta ou erra.

“Pssica”, de 2015, bem recebido pela crítica, é outro que segue nessa toada. Há um trecho disponibilizado aqui pela Boitempo. Radialista, jornalista e até redator publicitário, Proença não abre concessões. O seu brutalismo é tão “verdadeiro” quanto uma página de jornal. Assim, entre aspas.

Leia o blog do autor. 

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Violência

11 fatos sobre a violência por armas de fogo nos Estados Unidos

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Brilhante trabalho do pessoal do Vox. Entender a cultura americana no que se refere à armas de fogo e como isso é exportado para o planeta inteiro através de diversas maneiras é fundamental. Afinal, estamos falando de um país em que um candidato à presidência (Ted Cruz) acha razoável como marketing de campanha fritar bacon numa metralhadora. Clique no link no final da lista para detalhes de cada item.
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  1. Há aproximadamente uma arma para cada cidadão americano.
  2. Crimes com armas de fogo é muito mais comum nos Estados Unidos que em qualquer outro país desenvolvido.
  3. Homicídios por armas de fogo (assim como homicídios em geral) estão diminuindo.
  4. Lugares com mais armas registram maior índice de homicídios.
  5. Há mais suicídios com armas de fogo do que homicídios nos EUA.
  6. Suicídio é mais comum em lugares com mais armas.
  7. Morar numa casa com uma arma aumenta as suas chances de morrer.
  8. Armas contribuem para a violência doméstica.
  9. Homicídios em massa não estão ocorrendo com mais frequência – e é uma mínima parte do problema.
  10. Uma fração muito pequena da violência por armas é cometida por pessoas com problemas mentais.
  11. O controle de armas ainda é popular, mas já foi mais aceito.

11 facts about gun violence in the United States

 

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Jornalismo

HSM Management: Wäls e Bohemia andando lado a lado

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Maurício Angelo

Na edição de julho/agosto da revista HSM Management (você pode acessar uma degustação da edição aqui) fiz uma matéria contando os bastidores da aquisição da Wäls Cervejas feita pela Bohemia, do grupo AB-INBEV, o maior conglomerado cervejeiro do mundo. Na matéria, José Felipe Carneiro, sócio e mestre-cervejeiro da Wäls e Daniel Wakswaser, diretor da Bohemia, contam como foi a aproximação da Inbev, a trajetória da Wäls e tudo que isso simboliza para o mercado cervejeiro brasileiro, já que é a primeira vez que um grande grupo adquire uma empresa artesanal, o que não acontecia desde 2007 quando a então Schincariol (hoje Brasil Kirin) comprou a Eisenbahn, Baden Baden e Devassa.

O que na época da matéria era ainda boato (que a Ambev preferiu não comentar) acabou se confirmando na última semana: após a Wäls, a empresa adquiriu também a Colorado, uma das mais antigas cervejarias artesanais brasileiras. A estratégia é muito semelhante ao que a INBEV vem fazendo nos Estados Unidos na última década. Reconhecendo que chegou tarde no mercado artesanal, que viveu um momento de legítima expansão nos Estados Unidos nos últimos 20 anos, gerando uma legítima nova escola de cervejas e crescendo absurdamente sua fatia de mercado (hoje chegam a incríveis 6,5% do mercado em volume e 10,2% em receita) a INBEV adquiriu diversas cervejarias artesanais: Goose Island (a primeira e que também acaba de chegar ao Brasil), Blue Point, 10 Barrel e Elysian.

Concentradas sob o guarda-chuva da Bohemia, tanto Wäls quanto Colorado seguem tendo autonomia operacional e seguirão com suas marcas separadas no mercado, mas ganharão em escala, distribuição e, claro, poder de fogo e inovação, com todos os recursos da INBEV disponíveis. A Bohemia sempre foi a marca premium da Ambev, apostando em lançamentos sazonais ou de linha fixa que fugiam do padrão de massa da empresa, sem, no entanto, alcançar conceitos realmente altos entre o público especialista.

As cervejas artesanais (microcervejarias, etc) representam hoje, no Brasil, somente 0,15% do mercado, com previsão de chegar a 2% em 10 anos. Mesmo o mercado considerado “premium”, que engloba marcas como Heineken, Original, etc, chega a apenas 6,5%. O apetite de aquisições da Ambev tem tudo para ser um novo marco cervejeiro no Brasil, se bem administrado. Apesar de ter crescido exponecialmente nos últimos anos, ainda há muito para expandir. E, em se tratando de inovação, Wäls e Colorado tem muito, muito mesmo para contribuir.

A revista está nas bancas de todo o país.

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Artigos/Matérias/Opinião

60 milhões de pessoas: o planeta nunca teve tantos refugiados

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Um novo recorde negativo acaba de ser registrado pela ACNUR, a agência de refugiados da ONU: 59,5 milhões de pessoas são refugiadas em todo mundo, forçadas a abandonarem suas casas por motivos de guerras, violência generalizada e violação de direitos humanos. Metade destas são crianças.

Nunca, em toda a história da humanidade, houveram tantas pessoas nesta situação. Não, nem na época da segunda guerra mundial. É o que afirma o novíssimo relatório da ACNUR.

O resumo é alarmante.

Esta tendência de crescimento tem sido principalmente verificada desde 2011, quando se iniciou a guerra na Síria – e que se transformou no maior evento individual causador de deslocamento no mundo. Em 2014, uma média de 42,5 mil pessoas por dia se tornaram refugiadas, solicitantes de refúgio ou deslocadas internos – um crescimento quadruplicado em apenas quatro anos. Em todo o mundo, 01 em cada 122 indivíduos é atualmente refugiado, deslocado interno ou solicitante de refúgio. Se fossem a população de um país, representariam a 24º nação mais populosa do planeta.

“Estamos testemunhando uma mudança de paradigma, entrando em uma nova era na qual a escala do deslocamento global e a resposta necessária a este fenômeno é claramente superior a tudo que já aconteceu até agora”, disse o Alto Comissário da ONU para Refugiados, António Guterres. “É aterrorizante verificar que, de um lado, há mais e mais impunidade para os conflitos que se iniciam, e, por outro, há uma absoluta inabilidade da comunidade internacional em trabalhar junto para encerrar as guerras e construir uma paz perseverante”, afirmou o Alto Comissário.

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O relatório do ACNUR mostra que as populações refugiadas e de deslocados internos cresceram em todas as regiões do mundo. Nos últimos cinco anos, pelo menos 15 conflitos se iniciaram ou foram retomados: oito na África (Costa do Marfim, República Centro Africana, Líbia, Mali, nordeste da Nigéria, República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi, neste ano); três no Oriente Médio (Síria, Iraque e Iêmen); um na Europa (Ucrânia); e três na Ásia (Quirguistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão).

Poucas dessas crises foram solucionadas e muitas ainda geram novos deslocamentos. Em 2014, apenas 126,8 mil refugiados conseguiram retornar para seus países de origem – o menor número em 31 anos.

Enquanto isso, conflitos longevos no Afeganistão, Somália e outros lugares fazem com que milhões de pessoas originárias destas regiões permaneçam em movimento, à margem da sociedade ou vivendo a incerteza de continuarem como refugiadas ou deslocadas internas por muitos anos. Entre as mais recentes e visíveis consequências dos conflitos globais está o dramático crescimento de refugiados que, em busca de proteção, realizam jornadas marítimas perigosas no Mediterrâneo, no Golfo de Áden, no Mar Vermelho e no Sudeste da Ásia.

Crianças são a metade – O relatório Tendências Globais mostra que 13,9 milhões de pessoas se somaram ao número de novos deslocados, apenas em 2014 – quatro vezes mais que em 2010. Em todo o mundo, foram contabilizados 19,5 milhões de refugiados (acima dos 16,7 milhões de 2013), 38,2 milhões de deslocados dentro de seus próprios países (contra 33,3 milhões em 2013) e 1,8 milhão de solicitantes de refúgio (em comparação com 1,2 milhão em 2013). Um dado alarmante: metade dos refugiados no mundo é formada por jovens e crianças de até 18 anos de idade.

Confira mais detalhes no release oficial da entidade.

Acesse também todo o material em diversas línguas.

O quanto isto é simbólico em relação ao buraco que nos metemos tanto em políticas internas quanto nas relações internacionais? Impossível mensurar. O que isso tem a ver com a nossa vida aqui no Brasil? Bastante coisa. A realidade é sempre pior que a ficção.

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#BlackLivesMatter e o mundo em que estamos metidos

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 Maurício Angelo

Uma série de acontecimentos similares despertaram protestos pontuais nos Estados Unidos, incluindo a mobilização de celebridades e atletas: o assassinato de negros por policiais em serviço. É o que aconteceu com Michael Brown em Ferguson, com Eric Gardner em Nova York e mais recentemente com Freddie Gray em Baltimore. Uma verdadeira convulsão social e uma discussão intensa da sociedade está acontecendo neste momento.

Pois bem: em SP, só no PRIMEIRO TRIMESTRE de 2015, 185 pessoas morreram em confronto com a PM. CENTO E OITENTA E CINCO. Se você considerar dados estatísticos históricos, verá que aproximadamente 80% desses são negros. Só em São Paulo. Em 3 meses. Aos fatos: em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. Mas o assassinato de jovens negros está tão institucionalizado no Brasil que isso não é capaz de envolver quase ninguém.

O assassinato de Freddie Gray através do uso excessivo da força (seis policiais estão sendo indiciados por terem atacado Gray covardemente na van após a prisão) é algo tão comum por aqui que já acaba entrando na categoria “absurdo, mas não chocante”. Pior: esse tipo de reação é pedida pela sociedade e pelos cães raivosos e acéfalos da mídia. Os exemplos que demonstram isso são abundantes, basta lembrar do caso do rapaz acorrentado nu e severamente castigado de todas as formas (com estrelas da imprensa batendo palma), para ficar no mais notório em tempos recentes.

Fechamos um contrato social bem perverso e distorcido, transformado em naturalidade. Lá fora, o caso Gray desperta protestos incessantes nas ruas e nas redes sociais (a hashtag #BlackLivesMatter ou #VidasNegrasImportam) representa isso, além do intenso debate na mídia e nos órgãos oficiais que está acontecendo neste momento.

David Simon, produtor da premiadíssima série “The Wire”, que durou 5 temporadas na HBO e mostrava justamente, e de forma extremamente crua, meticulosa e detalhista o cotidiano de policiais em Baltimore e da vida na periferia, de jovens negros entregues à própria sorte e as consequencias disso, escreveu um dos melhores artigos dos últimos tempos. Nele, Simon desenvolve de forma brilhante como as situações citadas acima estão conectadas com a brutal desigualdade social e o espírito do capitalismo. Afirma (em trechos selecionados de tradução livre):

Estados Unidos está completamente dividido no que se refere à sociedade, economia e política. Definitivamente: existem dois países. Eu vivo em um deles, um quarteirão em Baltimore que é parte da América viável, a América que está conectada com a sua economia, onde parece plausível um futuro para as pessoas que nela nasceram. Mas 20 quarteirões adiante você encontra uma América completamente diferente. É assustador perceber quão pouco nós temos em comum já que vivemos em tamanha proximidade.

Uma coisa que nós entendemos é o lucro. No nosso país nós medimos todas as coisas pelo lucro. Nós ouvimos os analistas de Wall Street. Eles nos dizem o que supostamente devemos fazer todos os trimestres. Os relatórios trimestrais são deuses. Olhe para Meca, você sabe. Você atingiu o objetivo ou você não atingiu seu objetivo? Você quer o seu bônus ou você não quer o seu bônus?

Os sindicatos importam. Eles são parte da equação. Não interessa que eles não vençam o tempo todo ou que percam sempre, mas importa é que eles vencerão em boa parte do tempo e que colocarão na mesa a parte da equação que nos mostra que os trabalhadores não importam menos, eles importam mais.

Mas agora o que você vê nos Estados Unidos é um show de horror. O que você vê é uma retração da renda familiar, o abandono de serviços básicos, como educação. Você vê uma classe menos privilegiada sendo perseguida no que eles alegam ser uma “guerra contra drogas perigosas” mas que, de fato, é apenas uma guerra contra os pobres que se transformou no maior estado carcerário da história da humanidade, em termos de porcentagem de quantos americanos nós colocamos na cadeia. Nenhum país na face da Terra aprisiona pessoas no número e nas taxas que nós fazemos.

Nos transformamos exatamente no oposto do que uma vez chamamos de “sonho americano” e isso se deve basicamente à nossa incapacidade de dividir, de apenas contemplar um certo impulso socialista.

Estou definitivamente convencido de que o capitalismo precisa ser o caminho pelo qual geraremos riqueza em massa neste século. Isso não se discute. Mas a noção de que isso não vem acompanhado de um impacto social, de como distribuímos os benefícios do capitalismo para incluir a todos numa sociedade razoavelmente justa, é chocante para mim.

E uma das coisas que o capital sem dúvida quer é a desvalorização do trabalho. Eles querem que o trabalho seja desprezado porque o trabalho tem um custo. E se ele é desvalorizado, vamos traduzir isso: no popular, significa que os humanos estão valendo menos.

Em resumo: falhamos. Falhamos lá e falhamos aqui. Aceitamos a perversão completa da vida em sociedade: estamos submissos, não associados. E por séculos e séculos esta condição encontra-se demonstrada de todas as maneiras possíveis. Na desigualdade social instaurada, na pornográfica diferença de qualidade de vida entre as nações, no abismo de salários numa mesma empresa/cidade/etc, no assassinato indiscriminado de jovens negros, na completa invasão de privacidade do cidadão pelos governos e empresas, na opressão contínua e onipresente.

Que esta discussão esteja em voga atualmente (Piketty, Zizek, Paul Krugman, Snowden, etc, etc) já é mais do que se costuma ter e sinal de que as coisas, pelo menos em parte, ainda que de maneira tímida e lenta, começam a mudar. Ver isso tomar as ruas, os noticiários e as redes sociais é fundamental para que essa transformação, de fato, aconteça. Nada disso virá por acaso. Precisamos entender que a revolução não só não será televisionada, nem acontecerá na internet como jamais irá se concretizar. Precisamos superar conceitos obsoletos, ideias viciadas e compreender que a “mudança” acontece na prática, no dia a dia. Agora. E tanto já aconteceu nos últimos anos. Para ir além é preciso estar atento e não ocioso.

Eu acredito na informação como a mais poderosa ferramenta de transformação social do mundo contemporâneo. E justamente por isso é que não podemos aceitar que aqueles que se apropriam dela para disseminar interesses escusos e ao mesmo tempo bem especificados, em distorcer a realidade, em manter o status quo imutável e irredutível, usando para isso técnicas claríssimas de duplipensar, passem graciosamente. Esta é uma guerra de sutilezas e por isto mesmo muito mais difícil de ser travada. Não guardar um silêncio bem parecido com a estupidez, como diria Galeano, parece-me o primeiro passo para tanto.

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A transformação da saúde mental no Brasil

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Por Maurício Angelo*

A mudança da lógica de atendimento ao paciente com transtornos mentais no SUS é fruto de um processo social complexo e inclusivo. O resultado desse amplo debate com especialistas, entidades representativas, os movimentos de luta antimanicomial, incluindo o protagonismo de usuários e familiares, foi a promulgação da Lei 10.2016 em abril de 2011, após mais de uma década de discussão, instituindo efetivamente a Reforma Psiquiátrica como política do Estado Brasileiro.

Substituindo o obsoleto modelo de internação hospitalar, responsável por anos de dor e exclusão para pacientes e suas famílias, a nova política de atenção passou a priorizar serviços comunitários e multidisciplinares, garantindo o cuidado com liberdade e permitindo a efetivação da cidadania das pessoas com transtornos mentais e problemas relacionados ao uso de álcool e drogas.

Esta nova política nacional transformou a saúde mental no Brasil na última década. Neste processo, destaca-se a adoção do território como conceito organizador da atenção, a contínua expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diferentes modalidades – CAPS I, II, III, CAPSad e CAPSi – ampliando o acesso e a interiorização de serviços em todo o Brasil; a redução significativa do número de leitos e de hospitais psiquiátricos; a criação do Programa de Volta para Casa, com o auxílio-reabilitação psicossocial instituído pela Lei 10.708/2003; e a reversão, desde 2006, dos recursos financeiros, anteriormente destinados quase exclusivamente à assistência hospitalar.

Os avanços são notáveis: em 12 anos, o número de CAPS no Brasil aumentou mais de 400%, passando de 424 CAPS em 2002 para 2.209 CAPS atualmente. A criação dos CAPS Álcool e Outras Drogas representa a crescente preocupação da sociedade sobre o tema, com a rede trabalhando na perspectiva de redução de danos.

O Ministério da Saúde, em conjunto com estados e municípios, também criou novos leitos em enfermarias especializadas (hospitais gerais), nos 69 CAPS AD que funcionam 24 horas e nas 61 novas unidades de acolhimento criadas. A rede de atendimento a dependentes químicos ainda é composta por 131 Consultórios na Rua, que atendem aos usuários nos locais de uso e pelos mais de 600 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), implantados para responder às necessidades de moradia de pessoas com transtornos psicológicos graves, que ficaram longo período internadas. Eles garantem residência e ajudam na reinserção dos moradores na rede social existente (trabalho, lazer e educação). No final de 2014, foram lançados diversos protocolos de suporte básico e avançado de vida, voltados para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Entre eles, protocolos para o Manejo da Crise em Saúde Mental, situações de agitação e agressividade, tentativa e risco de suicídio, bem como intoxicação e abstinência alcoólica e intoxicação por drogas estimulantes. Os protocolos serão acompanhados de capacitação para os profissionais do SAMU, o que vai gerar um impacto positivo para o acesso e a assistência.

É de certa forma esperado que setores conservadores e com visão reducionista da questão da saúde mental, acostumados a obter o monopólio intelectual e prático do atendimento, sejam resistentes à mudança. A reforma psiquiátrica, de fato, exige uma profunda transformação das instituições.

Novas diretrizes colidem numa arena em que visões de mundo concorrentes se enfrentam: a garantia da cidadania e de direitos universais, numa construção coletiva permanente, frente o confinamento e o estigma abstrato de “doença” imposto aos pacientes.

No estabelecimento da Rede de Atenção Psicossocial, as ações de saúde mental passaram a fazer parte do conjunto de exigências fundamentais para a instituição das regiões de saúde. A RAPS conta com componentes da atenção básica; atenção psicossocial; atenção de urgência e emergência; atenção residencial de caráter transitório; atenção hospitalar em hospitais gerais; estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial. É nesse contexto que se inserem o Projeto Terapêutico Singular e as diversas formas de ação.

O reconhecimento do sucesso dessa política se dá na prática e também pelo interesse de países como Equador, Paraguai, Costa Rica, Honduras, Haiti e Angola, que já buscaram cooperação técnica com o Brasil para aperfeiçoar as suas políticas de saúde mental.

Somente o constante desenvolvimento dessa política, estabelecida em parceria com todos os principais agentes envolvidos, poderá oferecer a possibilidade de um tratamento verdadeiramente eficaz, com cuidado territorial, humanizado, integral e multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar e intersetorial, com participação e controle social de usuários e de familiares.

Defender o retorno a um modelo arcaico de atenção é pactuar com a barbárie praticada durante décadas pelos manicômios tradicionais, algo impensável e incompatível com a sociedade atual.

* Maurício Angelo é jornalista e foi assessor do Ministério da Saúde, atendendo também a área de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, que inclui o programa “Crack, É Possível Vencer”. 

Leitura recomendada: Holocausto Brasileiro – Daniela Arbex

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Política & Economia

Mexeu com a carrolatria, mexeu com todos

CONGESTIONAMENTO EM SP

Por Maurício Angelo

Crescemos acreditando que o carro é uma das maiores paixões do brasileiro, um símbolo da vida nacional, motivo de orgulho, carinho, status, poder e ostentação. Que o carro ocupa papel central na vida das famílias, na comodidade, no lazer. Que é o meio de locomoção essencial, indispensável. Gerações cresceram endeusando Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet, Ayrton Senna e tantos outros, ídolos máximos, martelados incessantemente pela mídia.

A indústria automotiva nacional é um dos maiores símbolos do nosso “desenvolvimentismo”, do pujante “milagre econômico”. FIAT, FORD, VOLKSWAGEN, CHEVROLET…todas recebidas com pompa e circunstância, com inúmeros incentivos fiscais dos governos federal, estadual e municipal…assim como nos últimos anos foram implantadas fábricas da NISSAN, MERCEDES, HYUNDAI, CHERY e por aí afora.

Para incentivar o consumo e facilitar o acesso, o governo do PT reduziu sistematicamente o IPI e deu certo durante muito tempo. Contra todo tipo de planejamento, a indústria automotiva bateu recorde atrás de recorde nos últimos anos, inundando as ruas com centenas de milhares de veículos, entupindo as vias não só das principais cidades do país, mas também das médias e pequenas. Os veículos se popularizaram e toda a cadeia que lucra absurdamente com eles nas ruas sorriram de orelha a orelha. O resto que se dane.

Daí que o surto de indignação coletiva que ganha corpo neste primeiro trimestre de 2015, babando raivosamente nas ruas e nas redes sociais o impeachment de Dilma Rousseff tem, na verdade, pouquíssimo a ver com os desdobramentos da Operação Lava Jato, gerando uma verdadeira devassa nas contas e nos contratos da Petrobrás nos últimos 30 anos.

O que realmente gerou o estopim da indignação foi o aumento significativo no valor do combustível, que subiu em média R$ 0,22 centavos para a gasolina e R$ 0,15 para o diesel. Aí, meu amigo, não tem uma viva alma que não tenha esperneado. “Ameaçar” o deus automóvel é um pecado grande demais para ser perdoado. Encarecer esse objeto de adoração do brasileiro é jogar ácido na ferida. Podemos ficar sem água na torneira, mas aceitar o aumento de combustível, jamais!

Não importa que a mídia brasileira tenha batido duramente no governo por não repassar as variações do preço do petróleo para a população, vide essa manchete educativa da Veja: “Defasagem do preço da gasolina faz Petrobras perder R$ 14 bi em 2013”. Repetindo: o governo apanhava por SEGURAR O PREÇO da gasolina. E apanha agora, novamente, por repassar o prejuízo. Não importa que o petróleo encontra-se em uma das maiores crises da sua história, com o barril abaixo dos R$60 dólares, menos da metade de uma média dos últimos anos. Que a situação gere problemas em todos os países do globo. Os Estados Unidos, por exemplo (aqui e aqui).

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O mundo inteiro está em alerta. Não importa que, mesmo afundada numa crise institucional sem precedentes, numa investigação que atinge todos os partidos da política brasileira, em descobertas de abusos que vem desde a década de 90 (e 70, 80…), a Petrobrás ainda alcance resultados técnicos exuberantes.

Lembra Jânio de Freitas:

Se a Petrobras ainda estivesse sob a ação ignorada e tranquila de gatunos, a realidade dos últimos 11 meses seria assim: suas ações em altas cotações na Bolsa, bafejadas pelo crescimento da produção a despeito da queda de preço do petróleo, os corruptos embolsando seus ganhos com a segurança de sempre, e bancos e corretoras festejando em vez de derrubar os dirigentes da empresa. (…) Essa Petrobras “levada à destruição” conseguiu em 2014, portanto quando os diretores a destruíam, o recorde da produção de derivados com 2,17 milhões de barris de petróleo por dia. O sexto recorde anual seguido, sendo este último, deduz-se, de produção fantasmagórica.

Ontem [4/2] se teve a notícia de que a Petrobras recebeu o OTC-2015, o Distinguished Achievement Award for Companies, Organizations and Institutions, “o mais importante para operadoras off-shore”. O prêmio foi em reconhecimento ao “conjunto de tecnologias desenvolvidas para a produção na camada pré-sal.

Não é a corrupção que indigna o brasileiro. Sublinhe-se: que ela deve ser investigada minuciosamente e punida com tudo que estiver disponível, não se discute. Seja quais nomes estiverem envolvidos, de que partido for. A história de corrupção na Petrobras apenas reforça ainda mais a necessidade e a importância da Lava Jato.

Mas o que realmente revolta o brasileiro é ver o seu Deus ameaçado. Em bom texto de julho do ano passado, Ricardo Alexandre conta uma história muito didática e pertinente:

Na época em que dirigi a revista Trip, organizei uma entrevista entre o jornalista americano Tom Vanderbilt, especializado em trânsito, e o sociólogo niteroiense Roberto Da Matta. “No Brasil, o carro é um dos principais símbolos das pessoas bem sucedidas”, disse o Roberto da Matta, autor do belo livro Fé em Deus e Pé na Tábua (Rocco) na qual associa nossa idolatria ao carro à herança dos tempos coloniais nos quais escravos levavam seus senhores nas liteiras, como na foto que ilustra este post. “Para redefinir esse papel seria necessário redefinir o modo como criamos a identidade social do sucesso”.  Tom Vanderbilt lembrou que a palavra “pedestre” é sinônimo de “banal” e “tosco”. “Isso remonta aos tempos da cavalaria: se você não estivesse montado, seria considerado inferior. Nós depreciamos andar a pé mesmo antes do carro”. Ou seja, em terra do “doutor fulano”, do “você sabe com quem você está falando”, quem está de carro só pode ser alguém melhor do que eu, que estou a pé, ou de ônibus. Pode passar, dotô, desculpe atravessar o caminho de vossa senhoria.

Mexer com a carrolatria do brasileiro gera uma reação instantânea, ainda alimentada pelos resquícios das últimas eleições, pelo sentimento acéfalo anti-PT que corre no imaginário popular do brasileiro de classe média, incluindo esse mesmo brasileiro que foi alçado a ela por este mesmo governo. Mexer com a carrolatria inflama o terceiro turno, obsessão da oposição desde o primeiro minuto que o resultado final das eleições foi anunciado (e já falamos disso aqui).

A corrupção endêmica na Petrobrás é, também, uma oportunidade para vermos como essa adoração ao automóvel e todos os movimentos da indústria e da sociedade nos últimos anos, fortemente potencializados pelo PT, pode se voltar não só contra ele, mas contra qualquer visão razoável de mundo, que ainda celebra uma indústria que luta contra a obsolescência, que tenta se readequar aos novos tempos, investindo pesado em inovação e tecnologia nos últimos anos para, quem sabe, conseguir permanecer em pé e relevante frente todos os desafios ambientais inescapáveis. Desafios dos quais o petróleo é um dos principais.

Tentar entender todas as camadas da questão é um exercício muito mais trabalhoso do que o senso comum está acostumado a entregar. Como diz o ditado, de onde não espera nada, é de lá que não sai nada mesmo.

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