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“Surpresa”: somos muito melhores do que fomos ensinados a acreditar

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Desde sempre, o brasileiro é ensinado a crer que somos absolutamente incompetentes em organização, administração, em prover infraestrutura adequada, produzimos pouco e que tudo nesse país, resumindo, é uma bandalheira sem limites, que estamos muito abaixo do resto do mundo e que pagamos impostos demais e recebemos de menos.

Esse discurso é muito interessante para uma classe abastada repleta de privilégios – isenção fiscal aos milhões e bilhões, financiamento federal pra lá de generoso, dívidas que são roladas a perder de vista, falta de respeito às leis trabalhistas – gente que sonega, rouba, lucra altíssimo com “essa bandalheira toda que tá aí”, gosta de espernear ao menor sinal de redução de seus ganhos históricos e por aí afora. Taí a desindustrialização que não me deixa mentir, tema para outro post.

Tomamos como exemplo a Copa do Mundo: o fracasso absoluto e a vergonha que passaríamos diante do mundo, alardeado exaustivamente por toda a imprensa durante os últimos anos, “subitamente”, transformou-se num evento de sucesso fora e dentro e dos estádios. Esportivamente já celebrada como uma das melhores Copas de todos os tempos (média de gols, qualidade dos jogos) e também pela estrutura, pelo povo, etc.

Daí que esse editorial da Folha é didático. O “torneio de surpresas” que, opa, tá dando muito certo mas, err, bem, tivemos um probleminha no som, chilenos invadiram a sala de imprensa do Maracanã – coisas minúsculas e irrelevantes e tudo de organização da FIFA, lembrem-se – resultam no famoso engolir à seco a história toda.

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E é preciso que gringos venham para cá para dizer que nossos aeroportos são tão ou mais eficientes e rápidos que os aeroportos mundo afora – taí o Alexis Lalas, referência do futebol dos EUA – para a tigrada reconhecer. Síndrome maior do complexo de vira-lata não há: somente após a validação estrangeira é que passamos a ver certa coisa com outros olhos. Foi sempre assim e há poucos indicativos que passará a ser diferente. Em eventos, serviços e na música, no cinema, no diabo a quatro.

“Só no Brasil” é que erros acontecem, “só no brasil” é que as coisas podem não funcionar perfeitamente, “só aqui” é que isso e aquilo ocorre, “o horror”, “o horror”, se apressa em gritar a elite dominada pelo senso comum mais rasteiro e previsível. E aí qualquer mínimo problema, qualquer contratempo, por mais irrelevante que seja, é tratado com alarde e ranger de dentes. A mesma mídia está aí nos oferecendo exemplos diários e fartos disso.

Nos Estados Unidos, o ápice do capitalismo funcional por excelência e ficando na esfera esportiva, sempre tido como exemplo máximo de competência e organização, conseguiu, na final do Super Bowl, tido como o evento esportivo mais importante do país, vitrine pro mundo, ACABAR A ENERGIA, atrasando e muito o espetáculo midiático todo. Há pouquíssimo tempo, nas finais da NBA, maior liga de alcance mundial dos EUA, o sistema de ar-condicionado do San Antonio Spurs DEU PANE e jogadores foram obrigados a disputar a partida acima dos 30 graus (quando se joga abaixo dos 18), fazendo com que Lebron James, maior astro da NBA, passasse mal de desidratação, com cãibras, saindo do jogo carregado.

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Caso algo minimamente parecido acontecesse por aqui, o escarcéu seria geral e infinito, textos e mais textos, comentários e mais comentários seriam gerados sobre o “vexame histórico”, a “inaceitável” organização, o maldito “jeitinho brasileiro”, tascando o selo vira-lata de inferioridade perante o mundo. Mas não. Foi lá. Em momentos chaves das ligas esportivas mais milionárias e visadas do planeta, no país exemplar “que deve servir de modelo sempre”. Acontece, né? Nem um pio.

Luiz Caversan, na Folha, pergunta:

“”Algum caro economista aí é capaz de me dizer como faço para calcular o prejuízo que os arautos do pessimismo e do mau humor, ‘black blocks’ e cia. à frente, causaram ao país?

Por conta de tudo o que não foi feito, tudo o que deixou de ser investido para gerar receita, com tudo o que se poderia ter sido oferecido, vendido para torcedores, turistas, comitivas e quetais, tendo como temática a Copa, e não foi. Quanto?”

Bota na conta da mídia. Pode botar na nossa conta. O terrorismo incansável – e acéfalo, com pouquíssima base no mundo real – é grande responsável por tudo isso. Não foi a primeira vez e não será a última. As eleições de 2002 são outro exemplo óbvio.

E você, talvez, está revoltado com “os gastos abusivos realizados pelo governo brasileiro com a Copa do Mundo”? Saiba que os 11.5 bilhões de dólares gastos em projetos de transporte, infraestrutura e nos próprios estádios, representam somente 0.7% – ZERO PONTO SETE PORCENTO – do que foi investido no Brasil entre 2010 e 2014. Matéria do Wall Street Journal. 

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Governos municipais e estaduais, no entanto, excederam bastante sua previsão de gastos para a Copa. Caso de Belo Horizonte e Mato Grosso, como mostra a matéria. De vez em quando é bom entender um pouco de gestão compartilhada – ou tripartite, em termos oficiais.

Óbvio, tudo isso não significa que todos os nossos problemas se resolveram e nossa abissal desigualdade social, etc, etc, etc. Não se trata de ser mero ufanista e pacheco. Muitas outras coisas estão sendo feitas para mudar isso. Significa somente reconhecer o estado das coisas em que estamos metidos. O desserviço prestado pela imprensa, que coloca o público e o cidadão como o último interessado do que produz, porque tem muitos outros interesses prévios para atender – e sabemos muito bem quais são.

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Literatura

Os Negros na América Latina – Henry Louis Gates Jr.

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 Em livro decepcionante, Henry L. G. Jr faz uma viagem pela história negra da região

A história da escravidão na América Latina é marcada por um traço comum: a negação sistemática das raízes negras de todas as formas em virtude da primazia de um suposto orgulho “mestiço”. A celebração da raiz européia e índia, povos mais “evoluídos” e de origem mais “nobre” em detrimento da flagrante, vasta e inegável herança africana não só na pele, mas na cultura, nas artes, na religião, na gastronomia e por aí afora.

É isso que Henry Louis Gates Jr procura mostrar nesse livro. Pesquisador de Harvard e diretor do W. E. B. Du Bois Research Institute no Hutchins Center for African and African American Research, Henry visitou o Brasil, México, Peru, República Dominicana, Haiti e Cuba para investigar a história negra desses países e como cada um lida com essa herança atualmente. Inicialmente dando origem a uma série de tv, as viagens também resultaram nesse livro. E daí talvez resulte no principal problema: a narrativa funciona como um diário de viagem de Henry, que descreve seus encontros com personalidades diversas nos países que visita – de Abdias do Nascimento a MV Bill, no Brasil – e suas impressões sobre o que vê ao seu redor, muitas vezes “fascinado” com o que desconhece.

Assim, o livro perde muito em força e vigor acadêmico, pesquisa sistemática e dialética histórica. Ainda assim, Henry oferece um panorama geral muitíssimo interessante, na teoria e na prática, ao investigar o que teses como a “democracia racial” de Gilberto Freyre, no Brasil e o “orgulho pardo”, de José María Vasconcelos, no México, causaram na população.

Cabe lembrar que, dos 11 milhões de escravos africanos que chegaram ao Novo Mundo entre 1500 e 1866, aproximadamente 5 milhões vieram para o Brasil. Quase metade do total. E fomos o último país a abolir a escravidão. Os Estados Unidos receberam “apenas” 450 mil escravos e o impacto da cultura negra é vasto e evidente. Em suma – e percebe Gates Jr. ao longo da sua viagem – as 134 (cento e trinta e quatro!) categorias de “cor” catalogadas no Brasil para designar os afro-brasileiros (segundo o IBGE) são, não só uma consequencia da extrema mistura racial desse país (intensificada com o branqueamento tardio da população através do incentivo da imigração europeia nos séculos XVIII e XIX), mas também uma tentativa declarada de se eximir da negritude propriamente dita.

Assim, e é um teste que o pesquisador faz nas ruas, ouvimos as mais diversas classificações quando perguntamos que cor determinada pessoa é. “Café com leite”, “queimado de sol”, “burro quando foge”, “morena bem chegada”, “morena cor de canela”, “sapecado” e “branca suja” são alguns exemplos. A história mostra que, quanto mais negro de fato, mais perseguido e mais excluído socialmente.

Justiça feita, Gates Jr. oferece vários insights interessantes: em meados do século XIX, lembra ele, não havia em todo o hemisfério ocidental uma cidade com maior número de escravos que o Rio de Janeiro, cerca de 100 mil. Aqui, com mão de obra farta, sendo o destino mais próximo da África que os demais países da América, a vida era particularmente dura. “Os senhores de escravos podiam sempre substituir africanos mortos por africanos vivos, a custo módico”. O que não acontecia, por exemplo, nos Estados Unidos.

Não é difícil desmistificar a democracia racial de Freyre – teoria segundo o Brasil é tão mestiço que estaria “além do racismo”. Basta viver por aqui. Por mais que seja difícil para nós, classe média-branca-hétero-descendente-de-europeus-profissionais-liberais perceber isso.

Fora do nosso curral – digo, a mania do brasileiro em olhar sempre para o próprio umbigo no continente e esquecer nossa condição de império da América Latina – o livro mostra como é vasto o racismo na região em todas as suas formas. Os quadros de castas no México, personagens como El Negro Mama, no Peru e Memín Pinguín, também no México, o sistemático branqueamento e/ou relativização dos heróis negros que comandaram muitas revoluções e contribuíram de forma decisiva para a história latina. Nós, brasileiros, extremamente preconceituosos em relação aos índios, podemos ver como o orgulho da origem indígena no Peru, no México, na República Dominicana funcionam, por sua vez, para tentar apagar os traços africanos.

Considerados povos “mais evoluídos” que os negros, o orgulho ameríndio sobrepuja fortemente os negros nesses países, encostados em rincões de pobreza e apagados da história da família. É interessante as visitas de Henry Louis Gates Jr. em diferentes regiões dentro de um mesmo país, mostrando a cultura como resistência, as políticas sociais que ainda engatinham, as várias formas de visão de pesquisadores, acadêmicos e personalidades locais, a realidade mutável e diversa.

No fim, fica aquela sensação que conhecemos bem: a história oficial é contada por quem pode contá-la. Por quem tem os meios de fazê-lo. Não pelos vencedores, porque mesmo os vencedores são borrados e menosprezados quando aquilo não interessa para a primazia dos livros. Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai, Venezuela, Equador, etc, são muitos os países ausentes nesta obra e que merecem um escrutínio básico.

“Os Negros na América Latina” serve de boa introdução para o nosso profundo desconhecimento da história local e para a visão contaminada que temos das nossas próprias raízes. Ainda estamos engatinhando quando se trata de igualdade, respeito, isonomia, inclusão social – falsos pleonasmos – e estudo razoavelmente aprofundado daquilo que nos constitui e estamos mergulhados. Começar a se inteirar de verdade sobre isso parece o primeiro passo para mudar essa realidade.

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Política & Economia

Thomas Piketty e o óbvio ululante do capitalismo

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Sobretudo, o grande mérito do economista francês Thomas Piketty é colocar no centro do debate mundial, extrapolando o gueto acadêmico da economia e sociologia – e qual área acadêmica não é um gueto? – a questão da desigualdade evidente do capitalismo, porquê ela existe e como chegamos à ela no contexto da economia contemporânea.

É o óbvio ululante sistematizado, bem estruturado, resultado de toda a carreira acadêmica de Piketty e seus muitos colegas, parceiros e colaboradores. As principais conclusões de “O Capital no Século XXI” circulam pela mídia mundial, pelas redes sociais num momento relevante, pós crise de 2008, pós Occupy Wall Street e pós um turbilhão de coisas que aconteceram nos últimos anos, direta ou indiretamente ligadas aos problemas intrínsecos do capital que não preciso elencar aqui.

Vendendo mais de 100 mil exemplares somente nos últimos 60 dias, Piketty se mantém nas listas dos mais vendidos dos Estados Unidos e foi lançado ao curioso status de economia pop. Entender suas origens, parece-me, é importante. Escreve Ivan Martins:

“Como estudioso de desigualdade mais respeitado da última década nos meios acadêmicos, é improvável que Piketty seja efêmero. Prodígio matemático, ele chegou aos Estados Unidos em 1993 para dar aulas de economia no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), uma das universidades mais respeitadas do mundo. Tinha 22 anos. Três anos depois, voltou à França, convencido de que os americanos se preocupavam mais com matemática e teoria do que com o mundo real. Admirador do historiador Fernand Braudel e do antropólogo Claude Lévi-Strauss, sonhava testar com fatos as convicções que sobravam no seu meio. Mergulhou na pesquisa histórica sobre renda e patrimônio e criou, em 15 anos de trabalho, com ajuda de colaboradores no mundo todo, um banco de dados sobre a evolução da renda e da desigualdade que cobre 30 países. Esse acervo é a base de seu livro.”

E lembra Pascal Emmanuel-Gobry, no Wall Street Journal.

“Alguns no pequeno círculo dos economistas respeitados da França dizem que Piketty pode ser melhor compreendido através de sua história pessoal. Ele vem de uma família da classe trabalhadora. Seus pais foram membros ativos do radical partido trotskista Lutte Ouvrière (Luta dos Trabalhadores). Após concluir o ensino médio numa escola pública, aos 16 anos, ele foi aceito na Ecole Normale Supérieure, a mais seletiva das superseletivas grandes faculdades francesas. Ele terminou o doutorado aos 22 anos, tendo recebido um prêmio da Associação Francesa de Economia pela melhor tese do ano. O tema: a redistribuição da riqueza.

Em suma, Piketty é algo cada vez mais raro: um produto puro da meritocracia francesa, um jovem da classe trabalhadora que frequentou escola pública, conseguiu entrar numa faculdade de elite e acabou numa área prestigiada do serviço público (ele ajudou a fundar e liderou a Escola de Economia de Paris). Esse foi o modelo responsável por reviver a França no pós-guerra, mas que agora está em frangalhos.”

Se Piketty não é tão radical quanto parece – já que se opôs à última medida do governo socialista francês, as famosas 35 horas de trabalho por semana, e defendeu cortes nos impostos trabalhistas – é um alívio que não seja. Uma das premissas do radicalismo, especialmente o tipo de radicalismo caduco e viciado que (felizmente) uma parte cada vez menor da esquerda mundial conserva, é que ele fica restrito a pouquíssima gente e tem falhas clamorosas já na fonte.

Não é o caso do francês e esta é ótima notícia. O que ele apresenta?

Afirma que a distribuição de renda, marca da prosperidade no século XX, estancou e hoje regride. Desde os anos 1970, as curvas de desigualdade começaram a subir na Europa e nos Estados Unidos. Na última contagem, em 2010, o 1% mais rico dos EUA detinha 20% da renda total, percentual equivalente ao da Europa em 1910 – época de privilégios hereditários, em que a mobilidade social era pífia; a meritocracia, mínima; e os mais pobres, estruturalmente condenados a continuar assim – a menos que casassem com a fortuna.

(…)

Com a desaceleração das economias ocidentais e a suspensão dos controles sobre as finanças, Piketty afirma que a força da concentração voltou a prevalecer – e sugere, polidamente, que a tendência é piorar no século XXI. Se alguma providência não for tomada, diz ele, poderemos chegar rapidamente a um cenário em que 0,1% da população mundial – cerca de 4,5 milhões de pessoas – detenha entre 40% e 60% da riqueza global. Seria a volta ao mundo econômico de Charles Dickens e Machado de Assis, em que herdeiros afortunados viviam cercados de aproveitadores ou dependentes. Nesse universo, havia pouco espaço para o mérito pessoal, para a iniciativa empreendedora ou para uma vida estável de classe média.

Os supersalários e/ou a brutal diferença entre a remuneração dos mais ricos – nas mais diversas formas do capitalismo videofinanceiro – faria o resto. Não é novidade e estamos rodeados de exemplos suficientes que corroboram a tese. É só olhar ao redor, acompanhar as notícias e o mercado mundial, o óbvio ululante de Piketty, graças a alguma coisa, embalado com verniz inteligível, chega disponível para uma parcela maior de pessoas e chama atenção para o problema.

Em excelente (e longo) artigo na Piauí, Marcelo Medeiros traz alguns recortes interessantes:

Como a concentração da riqueza afeta a dinâmica política e as oportunidades econômicas, seus resultados de longo prazo são difíceis de prever.

Piketty argumenta que os mercados não possuem nem os mecanismos nem os incentivos para frear esse processo. Ele precisa ser controlado por instituições, a começar pelo Estado. Em apoio a esse raciocínio, Piketty invoca a história de mais de vinte países: nos períodos em que os mercados são desregulados, a desigualdade aumenta; nos períodos em que são regulados, cai. Um debate que era antes travado de forma acalorada no terreno da especulação e da ideologia agora tem mais de 100 anos de estatísticas exaustivas como critério de desempate.

 Uh-oh, olha o Estado aí novamente. O Estado que foi chamado para limpar a sujeira que a crise de 2008 gerou. Em resumo, para salvar da bancarrota completa centenas de empresas, bancos, etc. Para tirar do bolso do contribuinte o que a falta de regulação gerou, devolvendo os ativos podres que esse mesmo sistema nos vendeu.

Explica Marcelo:

Temos um Estado com razoável capacidade para fazer investimentos em políticas públicas. Mas que usa uma parte pequena dessa capacidade para promover a igualdade. Proporcionalmente, o poder público contribui mais para as rendas dos 5% mais ricos do que para as rendas dos 50% mais pobres, mesmo depois de considerar as transferências da assistência social. Ou seja, por não ser suficientemente igualitarista, o Estado contribui para aumentar a desigualdade, em vez de minorá-la. Serviços públicos, como os de educação e saúde,  melhoram o cenário, é verdade, mas não são suficientes para revertê-lo.

O imposto de renda, que no Brasil tem alíquotas ainda menores que as dos Estados Unidos, ajuda a frear os níveis de desigualdade, mas pouco. O imposto de renda brasileiro é bastante progressivo, mas limitado. Isso porque a carga do imposto de renda no país é baixa, ao contrário do que se costuma anunciar. “Escorchante” é um adjetivo que só se usa para tributos. Os dados de Piketty mostram que de escorchante o imposto de renda não tem nada: países desenvolvidos optaram por ter uma carga de impostos muito maior do que a nossa quando ainda estavam no nível em que estamos hoje. Além disso, enquanto esses países sempre taxaram patrimônio e heranças, no Brasil esses tributos são de pouca importância. Nos Estados Unidos, boa parte da educação pública é financiada com o equivalente do nosso iptu,e a prática de doações a fundações é disseminada porque os impostos sobre heranças são expressivos.

Ao que tudo indica, a desigualdade entre os ricos e o restante da população é um tipo particular de desigualdade, bem mais particular do que a diferença entre pobres e não pobres. Aquilo que tradicionalmente se usa para explicar as diferenças de renda entre os 99% mais pobres não explica tão bem a desigualdade entre o 1% mais rico e os demais.

“Todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”, lembram? É ótima notícia que isso esteja, em todas as esferas e de todas as maneiras, sendo finalmente posto em cheque.

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Curiosidades

Rotinas

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(clique para ampliar)

Como alguns dos maiores nomes da história gastavam seu tempo? O infográfico acima pode ser uma boa inspiração para questionar como as nossas rotinas inspiram – ou não – o que fazemos…….

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Esportes

O testamento da NBA contra o racismo

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A NBA, especialmente na gestão de David Stern, que acabou de se aposentar do cargo de comissário que ocupou de 84 até recentemente, dando lugar a Adam Silver, tornou-se uma potência mundial, ajudada pela melhor geração de jogadores da história da liga: Michael Jordan, Magic Johnson, Larry Bird, Shaquille O’Neal, Hakeem Olajuwon, Reggie Miller, Charles Barkley, Karl Malone, John Stockton, e tantos e tantos outros que reinaram entre as décadas de 80 e 90.

Com Stern, a NBA tornou-se a liga americana mais famosa, assistida e respeitada no mundo. Mais de 215 países acompanham a liga, que acumula quase 1 bilhão de views em vídeos no YouTube desde 2005 e mais de 300 milhões de followers e fans em redes sociais como Facebook e Twitter. Mais de 50% da audiência da liga é de fora dos EUA.

O fenômeno global que se tornou a NBA, portanto, especialmente com Michael Jordan (e, hoje, Lebron James), uma liga formada majoritariamente por negros, tem papel importantíssimo em combater o racismo, servindo não só de símbolo de ascensão social, como de respeito, de “role model”, de representação na mídia, de poder, de igualdade.

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Esta semana, Adam Silver reagiu de forma veemente contra as acusações de racismo ao dono do Los Angeles Clippers, Donald Sterling. O TMZ vazou a gravação de uma conversa de Sterling com a namorada – uma mexicana negra, diga-se – dizendo que “não quero negros nos meus jogos” e recomendando que ela “evitasse ser vista publicamente com esse tipo de gente”, comentando sobre uma foto que ela postou no Instagram ao lado de Magic Johnson.

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Óbvio, toda a liga reagiu. Michael Jordan, que além de maior estrela da história da NBA também é dono do Charlotte Bobcats (que será Charlotte Hornets em 2015), Magic, dezenas de jogadores, mídia, patrocinadores, etc. Agindo rápido, a resposta foi duríssima: a NBA investigou o conteúdo das gravações para confirmar se a voz era mesmo de Sterling, confirmou e Adam Silver anunciou em coletiva que o dono do LA Clippers está banido para sempre dos jogos da equipe e de qualquer envolvimento nas atividades da equipe, multou Sterling em 2.5 milhões de dólares, o máximo permitido pela constituição da NBA e, além disso, anunciou que irá forçar Sterling a vender o LA Clippers.

Claro, isso não irá fazer com que Sterling deixe de ser bilionário (ele comprou o Clippers em 81 por 12 milhões e hoje a equipe vale aproximadamente 575 milhões). Mas a mensagem é clara: não queremos você envolvido com a nossa liga, é inadmissível que alguém com essa postura faça parte da nossa organização.

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É uma aula para qualquer liga de esportes profissionais do mundo. Um exemplo de administração e respeito para todo o mundo. No futebol, seja por racismo – e os acontecimentos esse ano no Peru contra Tinga, do Cruzeiro, episódios de violência, por qualquer coisa – a Conmebol sempre foi uma nulidade absoluta. A CBF, a UEFA e a FIFA também não ficam muito atrás. Na Espanha, o recente episódio envolvendo Daniel Alves, extensamente comentado – e alvo de aproveitadores da pior espécie como Luciano Huck – também não gerou nem deve gerar sanções graves, exceto para o autor da ação. Na Itália, episódios de racismo são extremamente comuns há muito tempo.

Com a decisão da liga e de Adam Silver, a NBA dá um testamento para toda a comunidade esportiva do planeta. Episódios do tipo nunca devem sair por menos.

Recomendado:

The Last Day Of Old NBA

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Jornalismo

Os grandes jornais ainda sofrem para entender a web

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Já falei aqui sobre isso algumas vezes. A mais recente, em 2012, neste post. Mas, ainda em 2014, especialmente os grandes jornais, penam para ter o mínimo de compreensão sobre o que a sua presença online representa e, mais especificamente, como lidar com o leitor e as questões que isto traz.

Hoje, ao tentar postar um trecho do texto do Contardo Calligaris no twitter, sujeito que anda falando muita asneira não é de hoje, a Folha me saiu com esse aviso:

“Para compartilhar esse conteúdo, por favor utilize o link http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2014/02/1411422-amor-de-maquina.shtml ou as ferramentas oferecidas na página. Textos, fotos, artes e vídeos da Folha estão protegidos pela legislação brasileira sobre direito autoral. Não reproduza o conteúdo do jornal em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br). As regras têm como objetivo proteger o investimento que a Folha faz na qualidade de seu jornalismo.”

Além de impedir o compartilhamento de parte do texto, o jornal ainda se sai com uma mensagem automática autoritária, com uma ameaça disfarçada de lembrete – “estão protegidos pela legislação brasileira” – pede que o leitor solicite autorização e ainda finaliza com um discurso típico de auto-piedade do capital, “isso é pra proteger o excelente serviço que fazemos por você, esperamos que você reconheça”. É muito erro junto.

É ir contra tudo o que estes quase 20 anos de experiência online nos mostra. É arbitrário e, sobretudo, burro, por tratar o usuário praticamente como inimigo e dificultar ao máximo a reprodução da informação. O jornal O Globo também faz o mesmo, colocando um aviso automático sempre que você tenta copiar parte de algo.

O Estadão, se não chega a tanto, comete outro erro capital: a abominável atualização automática, explodindo um flash de F5 na sua cara bem durante a leitura de um artigo, algo odiado por 11 entre 10 pessoas que conheço.

Contra o aspecto cada vez mais livre da web, em que não só o conteúdo – e o bom conteúdo – grátis está disponível com enorme facilidade, quanto a pirataria de músicas, filmes e seriados ganhou alcance ainda mais brutal com a disseminação da banda larga no mundo nos últimos 10 anos, a indústria e o mercado tem reagido como pode. Desde a prisão de usuários que utilizavam serviços de P2P em diversos países, leis contra a pirataria e compartilhamento de arquivos locais, SOPA e PIPA nos EUA, a vigilância permanente da indústria musical e dos estúdios de Hollywood e, como discuto no artigo citado no início, o desespero dos meios de comunicação para tentar encontrar uma forma de financiamento viável.

Como campo de conhecimento mais fluído e, portanto, impreciso, complicado de se delimitar – ainda que vários tenham tentado, a exemplo de nomes famosos como Pierre Levy, Manuel Castells e por aí afora – a relação da mídia com o seu público, na web, muda a cada dia. E, ao contrário do que gostariam, vai muito além da zona de conforto a que estão acostumados. O pior, afinal, é assumir a postura que Folha e Globo praticam atualmente. Indo contra os princípios mais básicos da maneira com que essa relação deveria ser pautada em 2014.

O conteúdo dos grandes portais, em sua maioria – e aí basta navegar pela home de qualquer um deles neste momento – é uma piada, sobretudo com a quantidade de dinheiro que investem. Pensados para a web, resvalam no patético. Não sou fatalista como muitos amigos e – ainda – acredito que o jornalismo não morreu. Apenas boa parte dele, e a parte com mais recursos, é que parece estar em estado terminal, resistindo por aparelhos.

É sabido que o bom jornalismo custa caro. E má gestão mais ainda.

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Filmes

Eduardo Coutinho e Philip Seymour Hoffman

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Duas mortes trágicas no mesmo dia. Duas enormes perdas para o cinema mundial. A vida é cruel às vezes. E é cruel em primas diferentes, tragédias diversas, etc. Coutinho, 81, foi um dos maiores cineastas que o Brasil já teve. Após as incursões como roteirista e produtor de TV no início da carreira, nos entregou o seminal – palavra mais clichê e melhor não há – “Cabra Marcado Pra Morrer”, de 85, um marco do cinema nacional. Sua “segunda vinda”, a partir dos anos 90 é, não raro, brilhante.

Meus preferidos são “O Fim e o Princípio”, com sua incursão mezzo espontânea por histórias do Nordeste brasileiro e “Edifício Master”, o querido de muita gente por seu retrato tão humano e irresistível, além do já citado Cabra. Dos últimos, só não gosto mesmo de  “Jogo de Cena”, exercício de método e de conceito (etc) que me pareceu intragável, realmente forçado, realmente com a mão pesada da forma em detrimento do resto. Mas isso são implicâncias minhas. Recomendo o excelente texto de José Geraldo Couto, aqui. Apesar da idade avançada, morrer esfaqueado pelo próprio filho é por demais trágico para ser digerido. Extremamente influente, Coutinho era, talvez, o maior expoente do que a produção brasileira faz de melhor: documentários.

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Já Philip Seymour Hoffman soa chocante. Pelas circunstâncias, pela idade – somente 46 anos! – por ser o melhor ator da sua geração e por ser tão produtivo. Esse ótimo artigo da Slate define com precisão: um ator que poderia fazer de tudo e que estava apenas começando. Em papéis pequenos ou como o principal, Hoffman sempre sobrou em cena. Ainda lembro quando, em 2005, saí da faculdade e fui conferir a primeira sessão do cinema, às 14h, numa sala vazia com apenas umas 3 pessoas, para conferir “Capote”, que lhe rendeu o Oscar. De fato, é uma atuação hipnotizante, absorvendo como poucos seriam capazes a fala e os trejeitos de Truman Capote. O trabalho físico de PSH, diga-se, sempre foi uma de suas maiores qualidades.

No recente “The Master”, PSH contracena com outro gênio da mesma geração, Joaquin Phoenix, em filme de um autor que foi importantíssimo na carreira de Hoffman: Paul Thomas Anderson. Com Anderson, PSH brilhou em “Boogie Nights” e sua incursão na indústria pornô dos anos 70/80, em Magnolia, Punch Drunk Love e no já citado “O Mestre”. Mesmo em filmes menores, Hoffman deixava sua marca. No irregular “Ninguém é Perfeito”, com Robert De Niro, de 1999, ele entrega uma das melhores interpretações de uma drag queen que se tem notícia. Na comédia bobinha “Quero Ficar Com Polly”, Hoffman novamente se destaca.

Trabalhando com grandes diretores em filmes de orçamentos diversos, como Sidney Lumet, Joel & Ethan Cohen, Spike Lee, Charlie Kaufmann, Mike Nichols e outros, Hoffman conseguia se destacar enormemente desde papéis num blockbuster em “Missão Impossível”, entregando o melhor vilão da série, até em filmes independentes, como “Savages”, Hoffman era um monstro e sempre sobrava em tela. Aqui, um breve relato (e exemplo) de como Hoffman era gentil, além de tudo. E este outro, de Peter Travers, sobre a personalidade única de “Phil”. Perdê-lo por overdose em heroína, como lembrado, parece uma cena de um dos seus filmes.

Duas perdas terríveis que deixam o já combalido cinema mundial em situação ainda mais frágil.

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