Filmes

Inception: muito por nada

Fui assistir Inception com a melhor expectativa possível e quase tudo a favor do filme: desde que vi o trailer nos cinemas ano passado criei uma boa imagem do projeto. Minhas restrições com Christopher Nolan eram razoáveis (gostei de The Dark Night, por exemplo, apesar de cair fortemente na revisão), considero Di Caprio ótimo ator, subestimado até, que vem escolhendo bem as produções que participa. Ignorei o oba-oba irrestrito que acompanhou o lançamento, com 90% de aprovação de público e mídia. Até porque geralmente o que me interessa é justamente os 10% restantes.

Pois minha sensação após as 2 horas e meia de filme foi: é só isso? Mesmo? A “complexidade” aqui é tão rala e forçada que convence pouquíssimo. As cenas de ação são óbvias e no automático demais. Tudo parece um cozido mal feito de outras ideias e outras concepções infinitamente melhor exploradas antes. Marion Cotillard desperdiçada num histrionismo irritante. Di Caprio perdido e sobrecarregado, com o peso de ancorar boa parte do drama, da liderança e responsabilidade do filme. E o eixo reinante do casal, fundamental para o roteiro, prejudica sobremaneira a película. Algo que poderia ter sido tratado de forma muito mais eficaz e menos cacete.

Nolan cai em todos seus vícios costumeiros. Os rodeios desnecessários. As “dicas” soltas dignas de um seriado chinfrim e pretensioso. Um bom elenco mal dirigido e um roteiro sofrível, que serve apenas para ele dar vazão às suas pulsões e megalomanias. Assim como “Memento” (Amnésia), filme incompreensivelmente superestimado e badalado, Inception estraga um argumento interessante por falhar em tudo de fundamental que poderia render.

Não empolga em momento algum, nem pela trama, nem pela ação. Uma grande bobagem, apenas. Nolan parece se esquecer que é preciso mais que ganchos primários e toneladas de dólares pra se fazer um filme decente. É exigir demais.

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Literatura

Dos autores tristemente banalizados: Hermann Hesse

Hesse numa nice, numa tranquila, numa boa

Dá uma série. É inevitável que quando se torne “pop” a obra de alguém seja planificada, esquartejada, reproduzida de modo frenético e gratuito, raramente chegando ao cerne da coisa. No caso das letras, é quando as citações são infinitamente mais lidas e conhecidas do que os livros em si. Mal inevitável e antigo que tomou proporção imensurável na internet: o reino por excelência do faz de conta, da projeção.

Entre os autores que “mais gosto”, há uma categoria especial: os que considero pais. Aqueles que tenho cumplicidade tão grande, que mergulhei tão profundamente, que falam tão diretamente à minha alma que não podem ser colocados lado a lado dos demais. Hesse é um deles. Um dos principais. Com ele aprendi a ser alguém melhor. A pensar e olhar o mundo de outra maneira, literalmente. E se conseguisse aplicar 50% do que Hesse passa, seria alguém incomparavelmente melhor do que sou hoje.

De família protestante, Hesse foi estudar as religiões orientais (tendo viajado longamente para alguns países), especialmente o budismo. Ligado ao início da psicanálise na virada do século XIX/XX (Jung, principalmente) e também pelas marcas da Primeira Guerra Mundial, estes três pontos são fundamentais na sua literatura. Com sua vasta cultura autodidata e a incrível lucidez e sensibilidade para o humano – o que mais me toca nele, inevitavelmente – Hesse acabou por se tornar espécie de ícone do movimento hippie, como um dos autores mais “lidos” e referenciais.

Daí as tentativas fracassadas de ligá-lo ao movimento beatnik (um absurdo sem fim) e o início da popularização de sua obra. A espiritualidade tão forte em Hesse – uma espiritualidade profunda e livre de ranços e maniqueísmos – fala de modo único, dada sua incrível capacidade de colocar as coisas sob um prisma transparente ao mesmo tempo que rico e multifacetado.  Seu profundo conhecimento do cristianismo ocidental em colisão com as bases das religiões orientais geram um caldo irresistível. Ler “Demian” na adolescência, como foi o meu caso, faz bastante diferença. “Demian” é uma bela introdução à obra hesseana, recomendado classicamente para adolescentes dado o poder e simplicidade. Tentei exprimir – com as falhas inerentes – a essência de Demian, ligando-o a outras obras de Hesse e George Orwell, escrito e publicado na época que estava descobrindo tudo isso, em 2004, aos 17 anos.

“O Lobo da Estepe”, sua obra mais famosa, é de pungência assustadora. Harry Haller tornou-se um dos maiores outsiders da literatura, por mais que o termo seja clichê e insuficiente. “Siddartha” é onde Hesse expõe mais diretamente sua relação com  o budismo. “Narciso e Goldmund” vai fundo na psicanálise e história, ambientado durante o período da Peste Negra na Europa. Já “O Jogo das Contas de Vidro”, seu último romance (que lhe deu o Nobel de Literatura em 1946) é o ápice da complexidade e da mente de Hesse. Seu romance final, deliberadamente composto para reunir todas as características de sua obra até então, levando-o a outro nível. Diversos estilos literários misturados e uma infinidade de conceitos e dilemas, “Das Glasperlenspiel” tem força assustadora. No mais, recomendo também a biografia, o “Para Ler e Guardar”, compilação de fragmentos de cartas, pensamentos esporádicos e outros comentários de Hesse e seus diversos contos, sempre arrebatadores. Os demais livros até hoje infelizmente ainda não li.

A banalização é cruel porque reduz toda uma concepção de mundo, estética e filosófica, à uma mero fragmento. Rigorosamente, tudo é banalizado. A simplificação e exposição sucinta de conceitos e pensamentos é um problema quase inescapável. Esse próprio texto. Uma das bases do jornalismo, aliás, como sabemos. Piorado por não se tratar do buraco da rua da esquina que causa problema no trânsito – pra citar um caso diário – mas de coisas que demandam tempo, dedicação, interesse real. Que exigem mais que uma passada de olho rápida. Algo quase surreal em tempos tão estéreis.

A opressão do universo criado em torno do trabalho para total e irrestrita dominação da mente já foi discutida aqui nesse artigo. Sem falar na rede nefasta da própria sociedade.  O problema não é o carinho de alguém por uma obra que não gosta de vê-la jogada como qualquer coisa por aí, a exemplo do que costuma acontecer na música, quando algo se torna popular passa necessariamente a ficar pior para certo grupos de pessoas.  Não se trata de ciúme ou falsa sensação de exclusividade.

Como tudo que me é caro, não posso negar a tristeza pela banalização irrestrita. Mais que isso, perdemos o essencial. Ficam só os rótulos. Para pessoas que costumam receber 800 inserções de propaganda por dia desde crianças – em estudo que lamentavelmente não possuo o link, feito pelo pessoal do Adbusters – parece natural que nos guiemos por marcas e definições baratas. Rejeitando tudo que vá além disso.

A obra de Hesse, como de inúmeros outros (por exemplo Nietzsche que virou bottom de estudante universitário), acabam sofrendo desse mal. A capitalização da cultura não é coisa nova e tampouco obrigatoriamente nefasta, desde que acompanhada de estudo e interesse real. 1% dos casos. Daí que, numa provocação sob isso tudo, cabe a famosa frase de Hesse, extraída de “Lobo da Estepe”: só para os raros. Mesmo.

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Pensando o impensável (ou, prosperidade sem crescimento)

Toda sociedade precisa de um mito para sobreviver. O nosso é o crescimento econômico. Nas últimas 5 décadas, a corrida pelo crescimento é “o” objetivo mais importante de todo político ao redor do mundo. A economia global atual é 5 vezes maior do que era meio século atrás. Se continuar neste ritmo, será 80 vezes o que era em 2100.

Este extraordinário crescimento não tem precedentes. E acompanha o nosso saber científico sobre os recursos finitos do frágil ecossistema que dependemos para sobreviver. 60% dele já foi totalmente devastado.

Na maioria das vezes, nós evitamos a dura realidade destes números. A preocupação principal – a crise financeira – é como continuar “crescendo” indefinidamente. Não apenas para os países mais pobres, que inegavelmente precisam de uma qualidade de vida melhor, mas também para as nações mais ricas, afundadas na abundância de material publicitário, que começa a ameaçar o seu bem-estar.

As razões para essa cegueira coletiva são fáceis de encontrar. A economia moderna está estruturada sob o “crescimento econômico” para se estabilizar. Quando esse crescimento falha – como aconteceu recentemente – os políticos entram em pânico. O mercado luta para sobreviver. Pessoas perdem seus empregos e até suas casas. A recessão surge. Questionar o crescimento é coisa de lunáticos, idealistas e revolucionários.

Mas a questão vai além. O mito do crescimento econômico falhou para nós. Falhou para as 2 bilhões de pessoas que vivem com menos de 2 dólares por dia. Falhou quando destruiu o nosso ecossistema. E falhou espetacularmente, em seus próprios termos, em prover estabilidade e segurança para a vida das pessoas.

Atualmente nos encontramos diante do fim iminente da era do petróleo barato; o prospecto (para além da bolha recente) é de altíssimo incremento no valor das commodities; a degradação das florestas, lagos e solos; conflitos por água; e, no momento, o desafio de estabilizar a concentração da emissão de carbono na atmosfera. Encaramos estes desafios com uma economia fundamentalmente destruída, desesperadamente precisando de renovação.

Nestas circunstâncias, um retorno ao mercado como ele era não é uma opção. Prosperidade para poucos baseada na destruição do meio ambiente e na injustiça social crônica não é algo aceitável para uma sociedade civilizada. Recuperação econômica é vital. Proteger os empregos das pessoas – e criar novos – também. Mas continuamos diante da necessidade urgente de renovar a divisão da prosperidade.

Buscar estes objetivos ainda soa estranho e incongruente para a agenda política da era moderna. Todo o governo está tomado tão intensamente por preocupações materiais e é engolido pela errônea visão de que somos “livres consumidores”. A concepção de governabilidade, por si só, precisa de uma mudança drástica.

A crise econômica atual nos coloca diante duma oportunidade única de investir na mudança. De afastar definitivamente o pensamento diminuto que foi a praga da nossa sociedade por décadas. Recompor isto com uma política capaz de lidar com essa enorme mudança é vital.

No fim, “prosperidade” vai muito além de desejos materiais. Transcende preocupações materiais. Reside na qualidade de vida e na saúde e felicidade de nossas famílias. Na força dos relacionamentos e da confiança na comunidade. É dada pela satisfação no trabalho e pelo senso de compartilhar um sentido e um caminho. Está presente no nosso potencial de participar ativamente na vida da sociedade.

Prosperidade consiste na nossa habilidade de florescer como seres humanos – respeitando os limites ecológicos de recursos finitos. O desafio para a nossa sociedade é criar as condições de vida sob o que é possível – e não transgredir tudo arbitrariarmente. Este é o dever mais urgente de nossos tempos.

(Tim Jackson, de “Prosperidade Sem Crescimento“)

Traduzido livremente por mim, daqui.

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Noam Chomsky – Acerca do pós-modernismo, teorias, modas

noam-chomsky

Noam Chomsky é um dos maiores intelectuais do último (e deste) século. No texto abaixo – que li há alguns anos e me tocou de imediato – Chomsky desmascara boa parte da prosa “hermética” e inútil do “pós-modernismo”. Coloca em xeque muitas teorias, adorações, práticas e discussões que muitas vezes carecem de total sentido e são incapazes de servir para algo. Derrida, Foucault e cia, com quem o próprio Chomsky travou um longo embate, são criticados com competência e domínio. Não só a empolação dos intelectuais franceses e suas “teorias” fundadas no puro floreio desnecessário de fatos históricos que outros fizeram antes, melhor e de modo mais claro, como a própria e deliberada alienação dos ditos intelectuais de esquerda dos problemas práticos e das arenas populares. A lucidez de Chosmky é um alívio.

Acerca do pós-modernismo, teoria, modas, etc.

Alguns trechos selecionados:

  • Devemos voltar-nos para teoria, filosofia, construções teóricas e similares para remediar esta deficiência nos nossos esforços para compreender e abordar o que acontece no mundo. Não quero falar por Mike. A minha resposta até agora tem sobretudo consistido em reiterar algo que escrevi há 35 anos, muito antes do pós-modernismo ter irrompido na cultura literária e intelectual: se há um corpo de teorias, bem testadas e verificadas, que se aplicam à condução dos assuntos externos ou à resolução de conflitos domésticos e internacionais, a sua existência tem sido um segredo bem guardado, apesar de muita pose pseudocientífica.
  • O que mudou no ínterim, tanto quanto julgo saber, foi uma imensa explosão de auto-elogio e elogios mútuos entre aqueles que propõem o que chamam teoria e filosofia, mas pouco que eu possa detectar além de uma pose pseudocientífica. Esse pouco é, como escrevi, algumas vezes bastante interessante, mas sem conseqüências para os problemas do mundo real que ocupam o meu tempo e energias.
  • Os proponentes da teoria e filosofia têm uma tarefa muito fácil se quiserem estabelecer o seu ponto de vista. Façam-me simplesmente conhecer o que era e continua a ser um segredo para mim: terei todo o gosto em ver. Perguntei muitas vezes antes e ainda espero uma resposta que deveria ser fácil dar: dêem simplesmente alguns exemplos de um corpo de teorias, bem testadas e verificadas, que se aplique aos gêneros de problemas e assuntos em que Mike, eu, e muitos outros de fato, a maior parte da população mundial que, julgo, está fora dos limitados e, notavelmente, autocontrolados círculos intelectuaisestão ou deveriam estar interessados: os problemas e assuntos de que falamos e escrevemos, por exemplo, e outros semelhantes.
  • Mais uma vez, estas são exigências simples. Fi-las antes e continuo no meu estado de ignorância. Tirei igualmente algumas conclusões disso.
  • Mas em vez de tentarem fornecer uma resposta a estas exigências simples, a resposta consiste em gritos de cólera: levantar estas questões mostra elitismo antiintelectualismo e outros crimes – embora aparentemente não seja elitista pertencer a sociedades de auto-elogio e elogios mútuos de intelectuais que falam apenas uns para os outros etanto quanto seinão entram no gênero de mundo em que prefiro viver.
  • É possível que esteja simplesmente a não conseguir ver algo, ou que me falte a capacidade intelectual para compreender as profundidades que foram desenterradas nos últimos 20 anos pelos intelectuais de Paris e pelos seus seguidores. Tenho o espírito completamente aberto, e tive-o durante anos, quando acusações similares me foram feitas – mas sem responderem às minhas questões. Uma vez mais, são questões simples e, se existe uma resposta, deveriam ser fáceis de responder. Se não estou a ver algo, então mostrem-me o que é em termos que possa compreender. Claro que se está para além da minha compreensão, o que é possível, sou uma causa perdida e serei obrigado a dedicar-me a coisas que pareço ser capaz de compreender, e a associar-me com o gênero de pessoas que também parecem por elas interessar-se e compreendê-laso que me deixa muito feliz fazer, uma vez que não tenho nenhum interesse, agora e sempre, nos sectores da cultura intelectual que se ocupam destas coisas.
  • Uma vez que ninguém conseguiu mostrar-me o que não estou a ver, resta-nos a segunda opção: sou incapaz de compreender. Desejo certamente admitir que isso pode ser verdade, embora receie que terei de manter alguma suspeita, por razões que parecem boas. Há muitas coisas que não compreendo – digamos, os últimos debates sobre se os neutrinos têm massa ou a forma como o último teorema de Fermat foi aparentementedemonstrado, recentemente. Mas em 50 anos neste jogo, aprendi duas coisas: 1) posso pedir a amigos que trabalham nestas áreas que mo expliquem a um nível que possa compreender, e eles podem fazê-lo sem grandes dificuldades; 2) se estou interessado, posso tratar de aprender mais de modo a vir a compreendê-lo. Ora, Derrida, Lacan, Lyotard, Kristeva, etc. – mesmo Foucault, que conheci e de quem gostei, e que de algum modo é diferente do resto – escrevem coisas que não só não compreendo, mas a que 1) e 2) não se aplicam… ninguém que diga que compreende pode explicar-mo e não tenho uma indicação de como proceder para vencer as minhas incapacidades. Isso deixa uma de duas possibilidades… a) ocorreu algum novo avanço na vida intelectual, talvez alguma mutação genética súbita, que criou uma forma de teoria que está para além da teoria quântica, topologia, etc., em profundeza e profundidade; ou b) … não o direi.
  • Peguemos então em Derrida, que é um dos gurus. Penso que devo pelo menos ser capaz de compreender a sua Gramatologia pelo que tentei lê-la. Deveria poder perceber parte dela – por exemplo, a análise crítica dos textos clássicos que conheço muito bem e sobre os quais escrevi durante anos. Achei a proficiência acadêmica aterradora, baseada numa patética leitura errada; e os argumentos, tal como estavam, eram incapazes de se aproximarem do gênero de padrões a que estou acostumado praticamente desde a infância. É possível que não tenha visto algo: pode ser; mas a suspeita mantém-se, como já notei. Uma vez mais, peço desculpa por fazer comentários que não demonstro, mas fizeram-me perguntas, e por isso estou a responder.
  • Encontrei-me com algumas das pessoas destes cultos que é o que me parecem: Foucaulttivemos mesmo uma discussão de várias horas, que está publicada, e passamos umas quantas horas numa conversa muito agradável, sobre temas reais usando uma linguagem perfeitamente compreensível – ele em francês, eu em inglês; Lacan com quem me encontrei várias vezes e considerei um charlatão divertido e perfeitamente consciente charlatão, embora os seus primeiros trabalhos, pré-culto, fossem inteligentes e os tivesse discutido em textos publicados; Kristeva com quem me encontrei apenas brevemente durante o período em que ela era uma ardente maoísta; e outros. Não encontrei muitos deles porque estou bastante afastado destes círculos, por minha escolha, preferindo círculos bastante diferentes e bastante mais amplos – o gênero onde dou palestras, sou entrevistado, tomo parte em atividades, escrevo dezenas de longas cartas todas as semanas, etc. Mergulhei no que escrevem por curiosidade, mas não fui muito longe, pelas razões já mencionadas: o que encontro é extremamente pretensioso, mas quando examinado, uma boa parte é simplesmente iletrado, baseado numa extraordinária leitura errada de textos que conheço bemalgumas vezes textos que eu escrevi argumentos que são aterradores na sua casual falta de elementar autocrítica, muitas afirmações triviaisembora revestidas de uma verborréia complicadaou falsas; e uma boa quantidade de evidente algaraviada. Quando procedo como faço noutras áreas que não compreendo, caio nos problemas mencionados em ligação com 1) e 2) acima. Eis então a quem me refiro e por que razão não vou muito longe. Se não for óbvio posso indicar mais uns quantos nomes.
  • (Essas formulações) E não tem o mesmo impacto (que artigos em jornais de grande circulação e outros meios), uma vez que se dirige apenas a outros intelectuais nos mesmos círculos. Além disso, que eu conheça não há qualquer esforço para torná-lo inteligível às grandes massas da população – digamos, para as pessoas para quem falo constantemente, com quem me encontro, para quem escrevo cartas, que tenho em mente quando escrevo, e que parecem entender o que digo sem qualquer dificuldade particular, embora geralmente pareçam ter as mesmas incapacidades cognitivas que eu tenho quando enfrentam os cultos pós-modernos. E também não conheço nenhum esforço para mostrar como se aplica a algo no mundo no sentido que mencionei anteriormente: estabelecendo conclusões que não fossem já óbvias. Uma vez que não estou muito interessado no modo como os intelectuais inflacionam as suas reputações, ganham privilégios e prestígio, e se libertam da participação efetiva na luta popular, não gasto nenhum tempo com isso.
  • Trabalhei de forma razoavelmente extensa nalgumas destas áreas, e sei que a proficiência acadêmica de Foucault não é aqui exatamente fidedigna, pelo que não confio nela, sem uma investigação independente, nas áreas que não conheço – isto foi vagamente abordado na discussão de 1972 que está publicada. Penso que há trabalhos acadêmicos muito melhores sobre o século XVII e XVIII e uso-os na minha investigação. Mas ponhamos de lado o outro trabalho histórico, e voltemo-nos para as construções teóricas e as explicações: que houve uma grande mudança de mecanismos cruéis de repressão para mecanismos mais subtis pelos quais as pessoas acabam por fazer, mesmo entusiasticamente, o que os poderosos querem. De fato, isso é mais que verdade: é um completo truísmo. Se é uma teoria, então todas as minhas críticas estão erradas: também tenho uma teoria, uma vez que andei a dizer exatamente isso durante anos, dando também as razões e o background histórico, mas sem a descrever como uma teoria porque não merece tal designação sem retórica ofuscante porque é tão triviale sem pretender que é nova porque é um truísmo. Reconheceu-se durante muito tempo que à medida que o poder para dominar e coagir ia declinando, era cada vez mais necessário recorrer ao que os praticantes na indústria de relações públicas do princípio do século – que perceberam tudo isto muito bem – chamaram dominar a mente pública. Como Hume observou no século XVIII, as razões são que a submissão implícita com que os homens renunciam aos seus sentimentos e paixões pelos dos seus governantes depende em última instância do domínio das opiniões e atitudes. Por que razão é que este truísmo deveria subitamente tornar-se uma teoria ou filosofia, terão outros de explicar; Hume ter-se-ia rido.
  • O meu problema é que as intuições parecem-me familiares e não existem quaisquer construções teóricas, exceto que idéias simples e familiares foram revestidas com uma retórica complicada e pretensiosa.
  • Há coisas mais importantes a fazer, na minha opinião, do que investigar as peculiaridades das elites intelectuais empenhadas em diversos modos de promoção da carreira e outras ocupações nos seus limitados e pelo menos para mimdesinteressantes círculos.
  • Verifiquei repetidas vezes que quando a audiência é mais pobre e tem menos formação, posso omitir boa parte das questões de background e de estrutura de referência porque são já óbvias e aceites por todos, e posso avançar para questões que nos interessam a todos. Com audiências com mais formação, isto é muito mais difícil; é necessário deslindar montes de construções ideológicas.
  • É certamente verdade que muitas pessoas não podem ler os livros que escrevo. Mas isso não é porque as idéias ou a linguagem sejam complicadas – não temos quaisquer problemas na discussão informal, até com as mesmas palavras, de exatamente dos mesmos pontos. As razões são diferentes, talvez parcialmente por causa do meu estilo de escrita, parcialmente em resultado da necessidade que eu sinto, pelo menosde apresentar documentação consideravelmente abundante, o que torna a leitura penosa.
  • Tem havido uma notável mudança no comportamento da classe intelectual nos últimos anos. Os intelectuais de esquerda, que há 60 anos teriam estado a ensinar nas escolas das classes trabalhadoras, a escrever livros como matemática para milhões que tornam a matemática inteligível a milhões de pessoas a participar e a falar em organizações populares, etc., estão hoje completamente afastados dessas atividades, e embora lestos a dizerem-nos que são muito mais radicais do que nós, não se encontram disponíveis, ao que parece, quando há uma necessidade óbvia e crescente e até uma procura explícita do trabalho que poderiam fazer no mundo das pessoas com problemas e preocupações reais. Isto não é um problema pequeno. Na minha opinião, isto tem implicações sinistras.
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Esportes

Adeus, Dunga?

Dunga e seu modelito duvidoso (criado pela filha), com a tradicional feição preocupada à beira do gramado

Dunga é uma destas invenções da CBF. Praticamente inexperiente como treinador, foi instantaneamente catapultado à liderar a principal (e mais cobrada) seleção de futebol do mundo. Ano passado, sem motivo aparente, apesar da conquista da Copa América – dum futebol sofrível – foi escolhido o melhor técnico do planeta, provavelmente quem votou não viu a seleção jogar.

Agora, o Brasil passa por um dos piores momentos nas Eliminatórias, mas, além disso, o que causa preocupação é o “futebol” horroroso demonstrado pelo time. Falta de padrão, técnica, entrosamento, espírito coletivo, ânimo, jogadas…uma equipe totalmente solta a esmo, perdida em campo, onde não se vê, em absolutamente nada, a mão do treinador. Como se não bastasse, Dunga, com seu temperamento difícil, já cansou a imprensa e o próprio auxiliar, Jorginho, bem como alguns jogadores, a exemplo de Kaká, que deu declarações em que alfinetava o comandante ao programa “Bem, Amigos”, da Sportv.

Não é só a torcida – entoando “Adeeuus, Dungaaa, adeeuus, Dungaaa” após o medonho empate com a Argentina no Mineirão – que torce pela saída. Percebe-se, de modo nítido na imprensa, da cobertura após o resultado frente aos “hermanos”, um tom claramente favorável à tentar propiciar, de alguma forma, a saída do treinador do comando da seleção brasileira. Os textos desferem inúmeros ataques sutis à credibilidade do técnico, aproveitando toda e qualquer ligação para alimentar este clima precoce de “adeus”.

Justifica? Sim. E este é um sinal claro de que ele não deve durar muito no cargo. Sem um técnico decente, a “equipe” torna-se apenas um amontoado de jogadores reunidos às pressas que não sabem o que fazer em campo. É péssimo treinador e tem péssimo carisma: ou seja, falha na técnica e falha ao tentar propiciar um ambiente agradável e psicologicamente estimulante aos jogadores.

Substituí-lo é uma questão complicada. Muricy Ramalho, atual São Paulo, já provou que é capaz dentro de campo e é queridinho da imprensa. De estilo também rabujento, pelo menos tem qualidade para sê-lo. Outro nome possível seria o de Zico, que fez trabalho razoável na seleção do Japão e um melhor ainda no Fenerbahçe, da Turquia, ao levar o time a absolutamente inédita classificação para as quartas-de-final da Liga dos Campeões da Europa. Zico, contudo, tem um relacionamento conturbado com Ricardo Teixeira, fruto principalmente da fatídica Copa de 98, quando fazia parte da comissão, e dificilmente deve ser chamado. Vanderlei Luxemburgo, além de já ter virado muito mais empresário e marketeiro do que técnico de futebol, teve sua chance e desperdiçou. Seria um retrocesso entregar a ele novamente.

A questão está em aberto. Dunga pode até durar um pouco mais no comando, mas o futebol da Seleção Brasileira já deu adeus dos gramados faz tempo. Ainda bem que não jogamos a Eurocopa.

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    Artigos/Matérias/Opinião, Política & Economia

    Estudo de caso: revista Veja

    Artigo originalmente escrito em 12.10.2005

    Estudo de caso: revista Veja

    Por Maurício Gomes Angelo

    A Veja, maior revista do país, e tida como referência pela sociedade, é acusada historicamente de ser direitista e “tucana”, o antro, par excellence, da burguesia nacional. Para alguns, a acusação é um disparate, para outros, nada mais óbvio e perceptível. Veremos o quanto de verdade há nisso.

    Para tanto, pegaremos uma recente edição da revista, número 1925, 5 de outubro de 2005, ano 38. Sua matéria de capa, “7 razões para votar não”, já fora dissecada em meu artigo anterior, “Duplo Assassinato”, logo, pinçaremos outros pontos que não os presentes na reportagem principal.

    Como revista de maior tiragem do território nacional, usada como fonte por escolas e faculdades, tradicional, respeitada, e portanto, muito influente, o mínimo que se poderia esperar é um jornalismo austero, equilibrado, imparcial, de qualidade inquestionável. Não é, infelizmente, o que acontece.

    Sabe-se que, naturalmente, todo meio de comunicação possui sua ideologia própria, suas regras internas, sua cartilha de produção, os assuntos que, a critério da edição, irão ser tratados, destacados ou amenizados, sua lógica de trabalho, a ótica pela qual todo texto presente em tal veículo deverá passar. Nada, que não seja adequado à “ideologia”, ao modelo, que determinado meio adota, poderá figurar em seus quadros. A linha adotada por Veja, é, inegavelmente, o tom direitista de análise. As mãos dadas com o establishment. A deturpação da filosofia marxista. A ridicularização da revolução – termos como “utopia anacrônica” figuram quase que semanalmente em suas páginas. O ataque, indiscriminado, a tudo que sirva aos seus interesses de persuasão. As mínimas brechas para que sua verdadeira face venha à tona são exploradas avidamente, como num exemplo que darei logo abaixo.

    Na primeira coluna da edição supracitada, “Ponto de Vista”, da escritora Lya Luft, intitulada “Tirem as crianças da sala”, trata-se sobre a vergonha da presente “crise” instalada em nosso país e de que tipo de reações ela suscita, logo no início, Lya diz: “melhor dizer que, sim, estamos neste período; então, como agir de modo eficaz para que a situação melhore dentro do possível? Isso é realismo político, que nos falta num Brasil em que se encontra uma utopia em cada esquina, uma ideologia para cada gosto: marxismo terceiro-mundista, cristianismo revolucionário, todas as formas de messianismo, nacionalismo desenvolvimentista e por aí vai.”

    Iniciada a sessão de ridicularização gratuita. Imaginem quais a sensações do leitor incauto, leigo no marxismo, diante dos recorrentes ataques de Veja. Eles sempre se limitam a abordá-lo pejorativamente, nunca sob a ótica filosófica, não podem explica-lo, porque isso destruiria com seus argumentos pífios – quando se têm argumentos.

    Na seção “Cartas”, a primeira mensagem reproduzida é a de Manoel Amâncio Feitosa Ramos, de Xique-Xique, Bahia, que diz o seguinte:“Veja mais uma vez presta um grande serviço ao país. Desvendou uma máfia que atuava no futebol (ele se refere a edição anterior da revista e a reportagem “Máfia do Apito”), como se já não bastasse o trabalho brilhante que a revista vem desenvolvendo na política ao longo dos anos (“Jogo sujo”, 28 de setembro). Como, por exemplo, o pontapé inicial para o impeachment de Collor, a denúncia de compra de votos para a reeleição de FHC, a quadrilha que atua no (des) governo de Lula, o mensalinho de Severino Cavalcanti. Veja e o Brasil são os grandes vitoriosos”.

    Esta carta, estrategicamente posicionada, é prolífica pois nos permite explorar algumas coisas: a exaltação indireta da revista (já que não foi feita pelo próprio veículo), a reivindicação de um papel fundamental ocupado por Veja na história do país, e, principalmente, o disfarce contido na frase “a denúncia de compra de votos para a reeleição de FHC”. O fato de Veja ter denunciado uma corruptela do governo FHC poderia servir de argumento para amortizar a acusação de “tucana” feita à revista. Ora, este enigma é simples de decifrar. A manipulação não pode ser descarada, Veja não pode estampar em suas páginas os dizeres “estamos a serviço da burguesia brasileira”. E a melhor forma de ocultar isto é denunciando as próprias falhas de seu grupo querido. Esta estratégia é tremendamente eficaz porquê, além de despistar a verdadeira ideologia da revista, a permite se auto-intitular (e passar para o leitor a idéia de) “idônea” e “implacável”. Contudo, o caso citado (corrupção no governo de Fernando Henrique), não originou nenhum escândalo de maiores proporções. E ninguém parece se lembrar do ocorrido.

    Ainda na seção cartas, é concedido o direito de resposta a Luís Antonio Giron, que declara: “quero esclarecer que o aparelho i-Pod, enviado aos jornalistas de música dos principais veículos da imprensa, inclusive para mim, colaborador da revista Época, foi devolvido à assessoria de imprensa da cantora Maria Rita, intacto. Meu trabalho como crítico sempre se pautou pela independência e jamais aceitei nenhum tipo de oferta em troca de minha liberdade de opinião. O cd Segundo (Warner) de Maria Rita é de ótima qualidade, e a cantora obteve na imprensa o espaço merecido.”

    Logo após, Veja indica para o leitor a reportagem na pág. 115. Vamos a ela. De título “O mensalinho da filha de Elis” – construção de um mau gosto impressionante – o texto insinua que Maria Rita, filha da cantora Elis Regina, e queridinha da mpb “nova geração”, precisou de “jabá” para que a divulgação de seu segundo disco fosse positiva. A gravadora Warner doou i-Pods, tocadores de mp3 da Apple, a última mania mundial, aparelhos que custam entre 600 e 1000 reais, para trinta críticos de grandes veículos da mídia nacional. Bem, a Warner tinha uma justificativa: o brinde era necessário porque o disco atrasou na fábrica e com ele os jornalistas que iriam entrevistar a cantora poderiam ouvir suas músicas de forma mais prática. A Veja cita isto, mas condena a prática, afirmando veementemente que se tratou apenas de uma maneira de tentar aliciar os jornalistas, e cita exemplos de que o i-Pod surtiu efeito. Praticamente todas as críticas em jornais e revistas brasileiras foram positivas, quando menos, foi adotado um tom conciliador, naquele estilo “é uma fase de transição”. Giron é citado na matéria de forma indireta, neste trecho “no caso do jornalista da Época, a Warner matou dois coelhos de uma cajada – deus! um clichê terrível! o redator – não creditado – não leu o manual? Como deixaram passar tal coisa? – ele escreveu uma matéria simpática na revista e outra mais elogiosa ainda na Bravo!, publicada pela editora Abril, o mesmo grupo de Veja.”

    Com relação ao pseudo-mea culpa da última frase, quando Veja critica seu próprio grupo editorial, resgato a técnica exemplifica na análise da primeira carta que fiz acima. Ela almeja afirmar com isso que, independente de outros deslizes de sua editora, a revista permanece como ilha inatingível de competência e seriedade. Tente não rir. Só para externar minha opinião, creio que a música de Maria Rita é, sim, muito boa. Ela peca apenas pelo excesso de “garbo e pompa” de sua interpretação, soando forçado demais.

    É óbvio que esta matéria de gosto duvidoso terá muito mais repercussão do que o direito de resposta de Giron. Aliás, é curioso notar que a resposta do jornalista foi publicada na mesma edição da reportagem, coisa que nunca acontece. Antes de ser algo positivo, isto expõe o frágil jornalismo praticado. Se a revista recebeu a retratação a tempo, nada seria mais natural do que limar a citação a Giron na matéria. Contudo, parece que a preguiça, o desleixo, e especialmente, a sede por criar polêmicas, foi muito maior que qualquer preocupação ética. Lastimável.

    Na seção “Radar”, de Lauro Jardim, temos o tradicional “sobe” e “desce”, pesando os acontecimentos da última semana pelo viés do sucesso ou fracasso. No quesito sobe está presente Aldo Rebelo, e a seguinte frase: “o deputado comunista foi eleito presidente da Câmara”. Não podem deixar de dar ênfase a comunista, nem adotar um tom mais adequado, como simplesmente citar PcdoB. Será que se o candidato eleito fosse de qualquer outro partido o tratamento dado seria semelhante? Ademais, tenho minhas dúvidas sobre o “comunismo” de Aldo Rebelo. É impensável que um comunista de verdade compactue com o lamaçal do governo Lula. E, na confusa política brasileira, recheada de siglas vazias e sem expressão, onde políticos trocam de partido indiscriminadamente, visando apenas as facilidades que irá conseguir para se eleger, é perigoso criar algum elo de criação muito forte entre a sigla e o seguidor, infelizmente.

    E falando em mudança de partidos….no texto “PT? Que PT?”, Mônica Weinberg retrata a debandada em massa do partido dos trabalhadores nos últimos dias do prazo para que isto fosse feito, salientado a saída de figuras históricas como Hélio Bicudo, Cristovam Buarque e Plínio de Arruda Sampaio. Plínio justificou-se dizendo que “o PT rendeu-se ao neoliberalismo e a política de privilégios aos estrangeiros”, linha seguida pela maioria de seus companheiros. Mônica desconfia – com razão – de tal argumento, e questiona o porque de isto ter sido feito só agora, mas sentencia “a debanda maciça de petistas neste momento, portanto, está longe de ser uma opção ideológica: é fruto, isto sim, do pragmatismo dos que não querem ser contaminados pela lama na qual a sigla chafurda hoje. E consulta o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, que finaliza: “A ideologia é uma máscara. O que está em questão é a sobrevivência política de cada um.”

    Dou toda razão para que a debandada seja analisada com cuidado, mas um motivo muito aceitável para que ela tenha ocorrido neste momento não é citado na matéria: as eleições do PT tinham acontecido recentemente, e a ala tida como “radical” – entre eles grande parte do que saíram na última semana – foi derrotada e não passaram para o segundo turno. Acho normal, que, não conseguindo mudar a sua sigla pelas vias normais, considerando que era a última chance para que isto acontecesse antes das últimas eleições, os insatisfeitos, muitos deles fundadores e, portanto, com uma ligação fortíssima com o PT, resolvessem, apenas obrigados, finalmente sair. Mas Veja não pode cogitar isto, é muito mais fácil joga-los todos na laia dos aproveitadores e agredir a ideologia que defendem.

    Em “Operação Saci” – mais um título desprezível – de Otávio Cabral, sobre a vitória de Aldo Rebelo, é dito: “com sua eleição para presidir a câmara, o deputado Aldo Rebelo, esse afável comunista que fez carreira como admirador da Albânia e do Saci-Pererê, deflagrou uma temporada de festas no arraial do governo”. Preciso comentar?

    Otávio segue, acertadamente, expondo a forma com que a eleição de Aldo Rebelo foi conseguida: em troca de cargos em órgãos públicos, liberação de verbas para deputados, enfim, afagos e concessões diversas a “aliados” sangue-sugas, numa abundância de práticas pouco recomendáveis. Mas, tristemente, muito ortodoxas. Tal coisa faz parte daquele famoso hall “situações que todos conhecem”. È prática recorrente, desde tempos imemoriais, em todos os partidos e em todas as épocas da política brasileira. O que, claro, não a isenta de ser reprovável. Só observamos o tratamento ainda mais ácido e incisivo com que tudo é descrito, porque se trata do PT e porque a esquerda, e qualquer tentativa de mudança social, tem que ser extirpada a qualquer custo. Ainda que o ParTido (créditos a Janus Mazursky) já tenha deixado de representar esta bandeira há muito tempo.

    A coluna de Tales Alvarenga, de nome “Erramos, senador”, é deveras suculenta. O senador em questão é Jorge Bonhaussen, do PFL. Aqui, qualquer cuidado é deixado de lado. “Erramos, senador” revela uma cumplicidade assombrosa, uma coerência de opinião entre dois “amigos”, que se confundem ao mesmo tempo. Os dois estavam errados. E, segundo Alvarenga, os dois estavam errados porque “a raça das formiguinhas socialistas não debandará. Na sua utopia anacrônica, as formigas falarão com as paredes. Mas continuarão por aí, esfregando ansiosamente suas patinhas, à espera do Grande Dia”.

    É só procurar com cuidado, que, pouco-a-pouco, sua verdadeira face vai se revelando sem máscaras. Eles esperavam que, diante da “crise” detonada, o socialismo fosse definitivamente aniquilado. Quanta ingenuidade! E, não sei o que o socialismo tem a ver com a “crise”, o PT, e tudo mais. Como já ressaltado infinitas vezes aqui no Duplipensar, por mim e por vários outros nos mais diversos veículos – vamos nos auto-citar – : “Qualquer nuance de ideologia revolucionária está a anos luz deste abismo medonho”.

    Nos assuntos diversos, quando trata do esporte, da cultura, da sociedade, comportamento, meio-ambiente e saúde, Veja é competente, faz o arroz com feijão sem maiores percalços e consegue identificar temas relevantes para o interesse de seu público. No entanto, quando acha qualquer brecha para nos gratificar com sua ideologia, o resultado é desastroso.

    E, finalmente, temos a cereja do bolo – sim, meus amigos, um clichê, tremendamente apropriado.

    Na seção “Notas”, onde é listado acontecimentos diversos da última semana, mortes, curiosidades, prisões, julgamentos, etc, encontramos o seguinte achado (reproduzido na íntegra):

    Encontrada uma tartaruga de água doce com duas cabeças, em Havana, Cuba. Os cientistas especulam que a anomalia se deva à poluição nas águas do Rio Almendares. Batizada de “Tina”, a Trachemys decussata tem pescoços e cabeças distintos, que se alimentam de forma independente. Biólogos farão um estudo completo das espécies que vivem no local para saber se há outros mutantes”. Tudo tranqüilo até agora, certo? Apenas uma nota cientifica normal, sem nenhum desvio. Calma, temos o gran finale:

    “A preocupação agora é que, se um dia esse tipo de mutação ocorrer em seres humanos cubanos, o regime castrista terá mais trabalho com a degola de dissidentes”.

    Aplauda de pé. Eu lhe peço. Essa mereceu!

    Agora recomponha-se. Novamente, tal trecho fala por si só.

    É impressionante a quantidade de “peculiaridades ideológicas” que podemos encontrar numa única edição desta revista. É chocante e lamentável, independente de qualquer coisa, profundamente lamentável, que a maior e mais influente revista do Brasil seja tão anti-jornalística e de conteúdo impróprio para pessoas inteligentes. Devorá-la para analisá-la é um mal do qual fui refém.

    Não termino este artigo satisfeito, nem feliz.

    É triste constatar que minha profissão é tão mal tratada, agredida e manipulada grotescamente. Que muitos leitores ficam reféns desta rapsódia repugnante.

    Um minuto de silêncio, por favor.

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    Sexo Nunca Mais

    Artigo originalmente publicado no site Duplipensar em 06.08.2005.

    ” – Já fizeste isto antes?

    – Naturalmente. Centenas de vezes…quer dizer, muitíssimas vezes.

    – Com membros do Partido?

    – Sempre com membros do Partido.

    – Do Partido Interno?

    – Não, com aqueles porcos, não. Mas há uma porção que gostaria de tirar proveito, se tivesse oportunidade. Não são tão santos quanto pretendem.

    O coração dele deu um salto. Muitíssimas vezes, dissera ela. Oxalá tivessem sido centenas…milhares. Tudo quanto cheirasse a corrupção o enchia sempre de ardentes esperanças. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre sob a crosta; seu culto da severidade e autonegação podiam ser apenas uma máscara de iniqüidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apodrecer, debilitar, minar!

    Ele puxou-a para baixo, fê-la ajoelhar-se à sua frente.

    – Escuta. Quantos mais homens tiveste, mais te quero. Compreendes?

    – Perfeitamente.

    – Odeio a pureza, odeio a virtude. Não quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até os ossos.

    – Então eu te sirvo, querido. Sou corrupta até os ossos.

    – Gostas de fazer isto? Não me refiro a mim, somente. Gostas da coisa em si?

    – Adoro!

    Acima de tudo, era o que desejava ouvir. Não somente o amor de uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples, indiscriminado; era a força que faria a derrocada do Partido.

    (…)

    Antigamente, pensou ele, um homem olhava um corpo de mulher, via que era desejável e pronto. Mas agora não era possível ter amor puro, ou pura lascívia. Não havia mais emoção pura; estava tudo misturado com medo e ódio. A união fora uma batalha, o clímax uma vitória.

    Era um golpe desferido no Partido. Era um ato político.”

    George Orwell, 1984, pág 121/122.

    Durante o processo de releitura de 1984, esta parte em especial acabou por chamar-me a atenção.

    A descrição da cópula sexual entre Winston e Júlia, mais exatamente o doloroso labirinto pelo qual percorreram para chegar lá, é surpreendentemente significativo. Minha mente logo conectou-se com uma reportagem de capa da revista Carta Capital de tempos atrás, se me lembro bem, era traçado uma linha do tempo da liberação sexual em nosso planeta nas últimas décadas. A relevância específica desta reportagem é a descrição dos esforços atuais do governo estadunidense no que se refere ao sexo. Nunca na história dos E.U.A têm sido empreendido tanta atenção – e tanto dinheiro – para combater o instinto sexual dos jovens (em especial). Tudo sob a caudilha égide protestante. Patrulhas percorrem os bairros do país dando palestras, enumerando estatísticas, propagando fatos, narrando histórias pavorosas de pessoas que se entregaram ao sexo e sofreram conseqüências terríveis, encenando um horrendo teatro persuasivo, visando adiar – e/ou/porque não? – destruir o instinto, a experiência sexual nas pessoas, tentando, além de doutrinar, atrair mais ativistas para suas falanges. E o sucesso tem sido imenso. É a personificação da Liga Juvenil Anti-Sexo orwelliana. George W. Bush deveria pagar royalties à família de Orwell por isso.

    São verdadeiramente repugnantes ações deste tipo. É a imposição de um estatuto governamental que fere todo e qualquer direito individual. Estão vendendo idéias, forjando espetáculos, influenciando ao seu bel prazer uma massa refém (!?) de suas atrocidades. No mundo de 1984, o sexo é algo praticamente inexistente, que foi expurgado brutalmente do seio da sociedade, reprimido, desestimulado, proibido, punido. Com o tempo, todo e qualquer instinto sexual tinha quase que deixado de existir. Não havia esta necessidade. Não havia esta prática. Pois:

    “O objetivo do Partido não era simplesmente impedir que homens e mulheres criassem lealdades difíceis de controlar. Seu propósito real, não declarado, era roubar todo o prazer ao ato sexual. Não só o amor como o erotismo eram o inimigo, tanto dentro como fora do casamento. Todos os casamentos entre membros do Partido tinham de ser aprovados por um comitê nomeado para esse fim e – embora o princípio jamais fosse claramente declarado – a permissão era sempre recusada se o casal desse a impressão de haver qualquer atração física. O único fim reconhecido do casamento era procriar filhos para o serviço do Partido. A cópula devia ser considerada uma pequena operação ligeiramente repugnante, como um clister. (…) O Partido estava procurando matar o instinto sexual ou, se não fosse possível matá-lo, distorcê-lo e torná-lo indecente.” (pág. 67)

    O sexo deixava de ser natural, saudável, instintivo, prazeroso. Era um dever, uma obrigação horrorosa, insuportável, evitável se possível. Desde a primeira vez que li 1984, penso que um aviso a ser colocado nele seria interessante (que na verdade faz-se desnecessário diante de sua obviedade), algo como: “Esta é uma obra de ficção, contudo, qualquer semelhança com o mundo real NÃO É mera coincidência”. O livro é a mimese – muito mais palpável e verossímil – do apocalipse, do grande caos do autoritarismo velado que governa o planeta. Esta bestialidade inaudita, de proporções gigantescas, torna-se totalmente asquerosa sob a luz de observações necessárias. Ao transpormos a casca de podridão do sistema, o que encontramos é justamente estes esforços incessantes em reduzir o homem à máquina, a inanimação pura e simples, à reles e vis propósitos capitalísticos.

    No mundo em que os ocidentais imperialmente rotulam de 2005, devemos encarar o IngSoc de Orwell sob o epíteto generalizador de “sistema”, pois não está restrito a um local especifico, mas sim a todos os continentes. O objetivo do sistema é obliterar nosso id. Destruído este princípio do prazer, ele quer fundir nosso ego (o princípio da realidade reguladora) com o superego (o princípio da consciência), originando uma nova entidade concebida diretamente de suas entranhas, portanto, inescapavelmente impregnada de suas doutrinas. Possuindo esta nova entidade dentro de nós, nos adaptaremos ao nosso meio da forma como está instituído, atendendo diretamente aos princípios sistemáticos. À medida que o tempo passa, o antigo homem – tenham em mente aqui o cunho pejorativo que o termo “antigo” pode ser encarado, pois é assim que ele é manipulado – será aniquilado, extinguido. E as novas gerações nascerão indelevelmente associadas ao grande pai, o grande salvador, o Grande Irmão, que é a figura carismática e sem rosto, mas intensamente sólida, do sistema. O homem pós-moderno, o homem do século XXI (chamem do que quiser) não terá mais nenhum vínculo com sua essência, sintomaticamente, não verá nada de errado no que se apresenta a ele. Tal qual acontece com as figuras do Partido e como também se sucede com os habitantes do “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. A ausência de contato sexual, as novas formas de procriação (pelo processo bokanovsky em “AMN” e por inseminação artificial – predominantemente – em “1984”), a adoção de um novo e transmutado halo humanístico (se é que se conserva algo disso), completamente maligno (grifo derivado apenas de minha qualidade de “antigo”) e fruto de estratégias bem delineadas, postas em prática a longo prazo, são pontos comuns nestas duas distopias sociais.

    Diante da perda do halo original e tentando evocá-lo, Winston pragueja: “Odeio a pureza, odeio a virtude. Não quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até os ossos”. Ele queria tudo que “servisse para apodrecer, debilitar, minar”. Tudo que servisse para enfraquecer o Partido. A corruptibilidade da alma, nestas circunstâncias, é o contrário do que o sistema prega, conseqüentemente, esta corrupção é a ação libertadora de nossa essência. É mais do que necessária, é urgente. O coito sexual entre Winston e Júlia, resquícios de uma reminiscência humana, naquelas condições, era um ato de afronta, que ultrajava o Partido, zombava de suas diretrizes. A aspiração de um pouco de ar puro em meio ao torpe e venenoso ambiente do Grande Irmão. A necessidade de ser corrupto neste mundo ganha conotação positiva à medida que este pressuposto significa o inverso do que está estabelecido. Ao invertermos o que está invertido colocamos as coisas no seu devido lugar. Neste sentido, que a praga da corrupção se alastre como fogo nas almas de nossos semelhantes! Que a insatisfação impere! Que o sentimento revolucionário brote incessantemente dentro de nós! Que o sexo continue a ser o que sempre foi: uma necessidade basal, saudável e renovadora para nosso espírito!

    Pois “sexo nunca mais” é o que sistema quer, “sexo nunca mais” é o que o governo estadunidense almeja instaurar. Resistiremos bravamente a isto. Pedindo licença artística a Orwell: é fazendo ouvir a nossa voz e permanecendo sãos de mente que preservaremos a herança humana!

    Iremos até o fim nesta guerra grande mestre, palavra de um ente verdadeiramente humano, pode confiar.

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