Filmes

Tropa de Elite 2: realidade expandida

Dos milhares de motivos para se fazer Tropa de Elite 2 – inclusive financeiros – é curioso, primeiro, definir claramente como ele se tornou “o nosso” blockbuster: é o filme capaz de gravar personagens e frases no imaginário popular, levar multidões ao cinema, vender o triplo na pirataria, catapultar um homem controverso ao posto de “herói” e suscitar discussões inflamadas de todos os lados desde o seu lançamento. É um mérito artístico, social e de entretenimento que acontece pouquíssimas vezes por aqui nessa escala. Além de poderoso como obra, sendo o primeiro longa de ficção de José Padilha na época, Tropa de Elite tornou-se um fenômeno incontrolável.

O que nitidamente mais incomodou o diretor de lá pra cá foi a pecha de “fascista” que o filme levou. Algo tão absurdamente ridículo e despropositado, que só pode ser dito por alguém que não faça a mínima ideia do que é o fascismo e não tenha qualquer noção política e histórica para soltar uma bravata dessa. Tanto que Padilha ataca esse rótulo imbecil diretamente logo nos primeiros momentos de Tropa 2. Algo como “vamos deixar claro isso aqui”. Bandeiras como essa também surgem pela capacidade impressionante que a discussão sobre violência tem de levar a superficialidades e clichês estúpidos.

Padilha sabe disso. E você transformar anos de pesquisa e milhares de páginas, relatórios e estudos sobre as milícias no Rio de Janeiro, pegar tantas referências e algo tão complexo e profundo para ser abordado, colocando-o isso de maneira razoavelmente eficaz, com penetração, inteligente, direto e que ainda consiga entreter, encantar, chocar, emocionar. Simplificar o mínimo possível para dentro do “aspecto cinema” inevitável, das peculiaridades que todo filme obriga o autor a fazer, é uma arte delicada. Nisto, e apesar de seus problemas, Tropa 2 é tremendamente feliz. Atinge esse objetivo com precisão. E merece todos os elogios por tanto.

Não apenas por ter se criado nos documentários, mas por todo o processo de elaboração de Tropa 1, repetido e ampliado no 2, é nítido que o filme é uma expansão da realidade. Estão ali não apenas uma situação real, problemas reais, cidade, polícia, etc, como personagens inspirados diretamente em seus “correlatos” reais: Fraga, o “contra” de Nascimento, é o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, que conseguiu cassar o deputado Álvaro Lins, chefe da polícia, e também instalou a CPI das Milícias, que prendeu muita gente, cassou políticos, etc. Freixo inclusive foi consultor de roteiro do filme. Padilha fala abertamente sobre isso e muitos outros assuntos nesta entrevista, a melhor que eu vi com ele até agora, altamente recomendada. Fortunato, apresentador do programa “Mira Geral” e também deputado, é escancaradamente uma paródia de gente como Wagner Montes, que apresenta o “Balanço Geral” na Record do RJ. Este vídeo, dentre vários, ilustra bem. O governador parece claramente alfinetando Anthony Garotinho, pela história, pelos fatos, a corrupção e até pelos problemas que o primeiro filme teve com Rosinha Garotinho, governadora na época.

Apenas através destes exemplos fica claro como Tropa 2 é um “documentário de ficção”. Musculoso, sim, com efeitos caros e realistas, com ação tipicamente hollywoodiana, como nas cenas de ocupação da favela com Nascimento guiando pelo helicóptero e no próprio tiroteio que põe em risco a vida dele. O filme é didático: precisa mostrar não apenas o processo de criação das milícias, mas as agruras de seu personagem principal, saindo de comandante do BOPE após uma operação desastrada em Bangu I, para sub-secretário de inteligência da segurança pública do estado do RJ. O Nascimento “humano” do primeiro filme está mais exposto aqui. Sua relação com o filho, com os amigos, com a ex-esposa e principalmente consigo mesmo é levada a um novo ponto de crise e reflexão.

Se Nascimento quer “destruir o sistema dentro do sistema”, o saldo final é complexo, caro e incerto. Em última medida, é este o eixo de Tropa 2. Mostra não só as entranhas do “sistema” e seus desdobramentos umbilicais, como de que maneira, no fim, ele sempre acaba se recriando, reinventando, substituindo as lideranças. Eclodindo um monstro dentro de outro. É o problema e a dúvida final que está dada. A película é corajosa, direta, tem méritos e uma capacidade de abordar as chagas da política brasileira como poucos filmes nacionais conseguiram fazer. Aponta a câmera, literalmente, para o centro do poder. Não deixa margem nem fica em cima do muro. Mesmo que ressaltado por Nascimento, “porque entra governo, sai governo, etc”, a coisa não muda.  Quem ganha com isso, quem financia – nós, afinal – e o custo, imenso. Qualquer interpretação rasteira pode levar a uma crucificação do governo atual – como aconteceria com qualquer outro que lá estivesse – pelo calor do momento, pela obviedade rasgada. Claro que tudo vai muito além disso.

Tropa 2 também aborda a relação às vezes “pouco ortodoxa” da mídia com a política, no pior sentido possível. Se Fortunato é o meio mais visível disso, talvez o terceiro filme possa aprofundar o tema, ainda que a pesquisa da jornalista Clara seja fundamental para descortinar a espinha dorsal do esquema. É através da imprensa que questões fundamentais são expostas e tem papel decisivo em acontecimentos do filme. Nascimento também afirma: “e a política, parceiro, só respeita a mídia”. Esta relação é sempre dúbia e paradoxal. O diretor do jornal chega a exclamar “precisamos tomar cuidado, afinal o governo do estado é nosso maior anunciante”. Será que vale o risco de crescer fazendo bom jornalismo, investigativo e revelador, perdendo sua principal fonte de receita? Como isto vai se sustentar depois que o boom de vendas passar, os anunciantes minguarem? Em maior ou menor grau, é o tipo de “dilema” vivido por muitos veículos hoje, agora. Desde muito.

É tão clichê falar em “sistema” quanto necessário. Ainda que o termo esteja caduco, ainda é ele que define melhor em que estamos inseridos. Nascimento é colocado como herói, sim. Mais que no primeiro filme. Mas sempre um “herói” humano, atormentado, dúbio, incerto, que pensa contribuir para algo positivo e acaba ajudando a criar outra excrescência, as milícias. Não há redenção nem caminhos fechados em Tropa 2. Não há certezas ou final feliz. As perdas são duras, cruéis. Como obra, incomoda somente o uso exagerado da narração em off. O recurso mais fácil para se contar uma história. Pelo caminho trilhado nos dois títulos até aqui e revendo um ou outro deslize, tudo indica que o terceiro filme possa – talvez – fechar a maior trilogia do cinema brasileiro.

O “sistema”, ainda que forte e dono do grosso de recursos, também respira por aparelhos. Como nós, é mais frágil do que gosta de admitir. Por mergulhar no centro da questão e deixar muito mais perguntas que soluções fáceis, Tropa 2 tem aquele impacto de um soco potente e preciso. Capaz de deixar os espectadores tontos, pensando no que fazer a seguir. Como sair daquela situação. E por fazê-lo de maneira tão contundente, virou o que virou. É ótimo ver algo que tire o público do eixo. Que ofereça mais que uma refeição pronta. Tropa 2 não pretende dar um nocaute, mas sair da letargia. No máximo que o cinema pode realmente, e por longo tempo, influenciar em algo concreto na vida real. Está de bom tamanho.

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Oliver Stone: um bobo adorável

Dentro do espírito desse filme, dá pra dizer que Oliver Stone tem “crédito no mercado”. Sua filmografia, por diversas vezes, esteve entre o limiar hollywoodiano e aquela abordagem meio fora da curva, meio outsider. É a pretensão de Wall Street – Money Never Sleeps, embora empacotado totalmente no esquema de Hollywood, como ele mesmo admitiu em entrevista. Se sempre esteve presente, seus últimos 10 anos foram quase que totalmente políticos. Com exceção do blockbuster “Alexandre”, que também é político de muitas maneiras, Oliver lançou documentários e filmes com óbvia veia crítica.

Estando recentemente no Brasil para divulgar “Ao Sul da Fronteira”, em que aborda o momento político da América Latina, Stone denota no mínimo saber razoavelmente sobre o que fala. A crise econômica de 2008, marco histórico eterno, é ótimo material base. Falei sobre ela recentemente aqui. Daí que a expectativa para Wall Street II era razoável. Mas a coisa começa já no subtítulo horroroso e clichê: “O Dinheiro Nunca Dorme” soa como uma das piores opções possíveis.

E não é só o subtítulo que parece infeliz. Desde o início da película o festival de obviedades acontece em profusão. De sutileza zero e sem a mínima capacidade de gerar tensão, crítica e análise que fuja do primeiro nível, WSII ainda carrega alguns artíficios que parecem feitos por um diretor qualquer e estreante. Os prédios como modelo para o sobe e desce da bolsa, a exaustiva e infantil “metáfora” das bolhas de sabão flutuando no ar em diversos momentos, os diálogos rasteiros, os efeitos visuais duvidosos, o triângulo financeiro soporífero e a relação amorosa de dar dó entre Shia LaBeouf e Carey Mulligan.

Sobre LaBeouf, juro que tentei dar chances, mas o garoto pode ser qualquer coisa, menos um ator com o mínimo de estofo para um personagem como esse. Talvez vire um bom ator qualquer dia, por enquanto é apenas um garoto esforçado que caiu nas graças de Hollywood. A crise em si, quando chega, é abordada de modo tremendamente fraco.

Tentando achar o “humano” por trás do sistema financeiro, Stone escorrega fortemente na pieguice, num texto frágil, casal de protagonistas ruins e escolhas erradas. E o filme acaba com um beijo, bolhas voando no céu e referências ao dólar. O que por si só é sintomático. Melhor voltar para o original.

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Política & Economia

A excrescência Roriz

Ao estar em Brasília durante a última semana de eleição antes do primeiro turno pude acompanhar de perto o imbróglio Roriz. Cheguei a dizer por aí que faltam palavras no vocábulo universal para descrever a participação de Weslian Roriz nos dois debates que participou: Globo e SBT. Tanto que vídeos com os “melhores momentos” da “candidata” pipocaram por aí. A internet costuma abraçar o que é mais bizarro, cômico, chulo e surreal. Por mais que qualquer coisa seja insuficiente para tentar descrever a “saga Roriz”, cá estamos.

Há várias maneiras de encarar o fato: ou você trata com incredulidade e galhofa, inevitável, ou realmente se choca com o nível de escrotidão a que chegamos. Não basta trocar um candidato a menos de 15 dias de eleição (algo que foi estranhamente aprovado). É difícil compreender razoavelmente como alguém com a mínima capacidade de pensar pode ver e ouvir Weslian Roriz e ter coragem de digitar 20 na urna.

Salvo pelo fato de Joaquim Roriz ter conseguido arrasar Brasília nos seus 4 mandatos (!!!) como governador. Responsável pelo inchaço extremo da capital, pela criação de várias cidades sem qualquer estrutura, criando a legítima favelização de Brasília e representante máximo de práticas “pouco ortodoxas” por aí. Sobre isso, já recomendei aqui e recomendo novamente o ótimo artigo de Cynara Menezes, da Carta Capital. “Brasília: a vanguarda do atraso”. Leia e volte. Está ali o resumo do buraco em que o DF se meteu.

Ao literalmente comprar votos com terra, Roriz angariou um séquito de zumbis da pior espécie que o seguem não importa o que aconteça. A sensação é de que Roriz poderia nomear seu cachorro para o substituir na eleição que o resultado seria o mesmo. Jaqueline Roriz, sua filha, foi eleita deputada federal com mais de 100 mil votos. E Liliane Roriz, também filha, deputada distrital com 22 mil.

Apesar de não ser surpresa, o segundo turno alcançado por Weslian Roriz com 31,5% dos votos é de causar vergonha em qualquer ser humano com o mínimo de discernimento que more no DF. De surpresa positiva na eleição em Brasília apenas os 14,5% de votos em Toninho do PSOL, o candidato do partido que provavelmente alcançou mais votos proporcionais em todo o país. Toninho deu um banho em todos os concorrentes nos debates que participou. É claramente o mais preparado, com a maior lucidez e as melhores propostas. O alto índice de votos que conquistou demonstra a parcela que não quis se aliar a Agnelo, longe de unanimidade e ser o “melhor cenário”.

O problema no DF é ficar sempre entre “o menos pior”. E nesse quadro, qualquer coisa é “menos pior” que algo com o sobrenome Roriz. Ao conseguir colocar Weslian com relativo sucesso na disputa, Roriz prova definitivamente que é capaz de fazer – quase – o que quiser em Brasília. Ao sentir, também, que iria perder a primeira eleição da sua vida, jogou nas costas da mulher o peso.

Infelizmente, tudo indica que o DF ainda agonizará por muito tempo em áreas cruciais. O senado pelo menos ficou com Cristovam Buarque (consenso) e Rollemberg, outro que entra na linha do “menos pior”. Sair da barbarização absoluta nos próximos 10 anos parece ser um início razoável para Brasília.

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Política & Economia

Da raiva eleitoral e midiática

Não é de espantar o desespero absurdo a que está confinado a direita brasileira. Para quem tenta, continuamente, derrubar o governo nos últimos 8 anos e viu todas suas tentativas tremendamente fracassadas, trata-se de só mais um item na lista. Escrevi sobre isso recentemente, aqui. A atual campanha presidencial degringolou rápido. É a certeza da incapacidade de apresentar qualquer proposta razoável, qualquer plano que supere o que o PT fez. Algo impossível pela própria constituição das coisas: afinal, a comparação é cruel, a história não perdoa.

O onanismo e a falta de argumentos é geral . Se limitam, desde sempre, a ressaltar e reforçar que quase todas as conquistas do governo Lula foram possíveis graças a FHC. Algo tão canhestro e imbecil que não vale réplica. Depois, o terrorismo eleitoral costuma fincar na “ameaça à liberdade de imprensa” e “ameaça à democracia” que o PT representa. Duas balelas tão frágeis que dão pena. A imprensa sempre fez o que quis, incluindo um sem número de absurdos e até crimes (se você considerar a invenção de fatos, literalmente, caso da Veja, as reportagens e textos raivosos), a esculhambação geral e irrestrita. Nunca vi e tampouco consigo resgatar da história um governo que tenha apanhado tão forte e sido tratado de maneira tão hostil e baixa.

Os dois editoriais dos jornais Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo de hoje simbolizam um pouco disso. O Estadão, tardiamente, resolveu assumir seu apoio irrestrito a Serra. Estranha que tão próximo da eleição e após meses de campanha. Um apoio envergonhado, assumido com receio. O título é alarmista, vergonhoso: “o mal a evitar”. Vejamos alguns trechos chave do vomitório:

“Há uma enorme diferença entre “se comportar como um partido político” e tomar partido numa disputa eleitoral em que estão em jogo valores essenciais ao aprimoramento se não à própria sobrevivência da democracia neste país.”

Esta é a masturbação terrorista barata que adoram fazer.

“O Estado apoia a candidatura de José Serra à Presidência da República, e não apenas pelos méritos do candidato, por seu currículo exemplar de homem público e pelo que ele pode representar para a recondução do País ao desenvolvimento econômico e social pautado por valores éticos. O apoio deve-se também à convicção de que o candidato Serra é o que tem melhor possibilidade de evitar um grande mal para o País.”

Há sérias controversas sobre esse tal “currículo EXEMPLAR de homem público”, uma piada. Algo no mínimo “duvidoso” para a própria população de SP, que o jornal diz representar. No último trecho, definem:

“Se a política é a arte de aliar meios a fins, Lula e seu entorno primam pela escolha dos piores meios para atingir seu fim precípuo: manter-se no poder. Para isso vale tudo: alianças espúrias, corrupção dos agentes políticos, tráfico de influência, mistificação e, inclusive, o solapamento das instituições sobre as quais repousa a democracia – a começar pelo Congresso.”

Engraçado. O PT parece que inventou e solidificou as piores práticas políticas da história humana, ainda que elas sejam praxe milhares de anos antes de Maquiavel popularizar o senso comum sobre a coisa. Sem falar que a “descrição” do jornal lembra exatamente o governo FHC, responsável por instaurar no país tal “modus operandi”. Basta lembrar, coisa básica, da mudança constitucional perpetrada por FHC para garantir a reeleição, dentre outros “mimos”. Quem pratica qualquer meio para manter-se no poder mesmo?

Óbvio que o PT cometeu erros, praticou corrupção, fez coisas inaceitáveis, etc. O fato de todos os outros também fazerem não é abono. Mas a mídia gosta – ou precisa – criar um “cenário” em que o PT apareça com o monstro devorador da democracia, da “moral”, da liberdade, da “ética”, de tudo que é “mais caro e fundamental” para o “andamento normal e aceitável” das coisas.

Mas nada melhor para ilustrar tudo isso que um precioso podcast de Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo em 01/10/2006, na eleição presidencial daquele ano, onde “discutiam” a possibilidade do segundo turno, a “derrota” de Lula, a “vitória pessoal” de cada um, o nojo, etc. Isto, sim, é exemplar.

“Acabou, morreu, morreu o Lula. Metade do país não quer saber dele. A metade que não ganha esmola não quer esmola. Já era, acabou. O Lula e o projeto golpista dele foram pro brejo, a gente se livrou desse golpe e vamo tocar pra frente. Já ganhou, acabou a eleição, Reinaldo. Já era. O Lula merece ter os direitos políticos cassados, é o que a essa gente merece. Perda de direito político e na melhor das hipóteses, cadeia. Isso daí, infelizmente, o PSDB vai dar moleza e acabou. Mas eu espero que não dê e vamo começar a cobrar. Eu tenho só 1 mês pra encher a paciência desses caras porque depois eles são história e ninguém mais vai querer saber dessa história negra pela qual o Brasil passou”.

É com essa gente que estamos lidando. É esse tipo de “jornalismo” que o Lula vem enfrentando desde sempre, não apenas quando chegou ao poder. Direto como a duplinha asquerosa acima ou empedernidos como a maioria por aí. O fato de escancararem seu lado, algo saudável que deveria ser prática para todos os veículos desde o início de tudo, só demonstra o medo da certeza da terceira derrota consecutiva. Até quando o terrorismo midiático irá ocupar o lugar do jornalismo, ainda não sabemos. Quem perdeu o poder de inflluência que estava acostumado a ter realmente tem muito que se lamentar. Afinal, a “raiva” do título simboliza a doença. Não o mero sentimento.

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Literatura

15 Livros

Listas servem basicamente para que você possa encontrar sugestões bacanas, descobrir coisas novas, lembrar de outras, conhecer um pouco mais de quem a fez. Não é para concordar. E, como geralmente acontece, não listo abaixo os 15 livros que considero “os melhores”, mas os 15 que mais tiveram impacto na minha vida. Com um breve comentário de adendo. Difícil manter só 15. Ficaram de fora Emil Cioran, George Bernard Shaw, Joseph Conrad, Vladimir Nabokov, Turguenev, F. Scott Fitzgerald, Hemingway, Oscar Wilde, Marx e Bertrand Russel. 10 nomes que completam 25 livros. Um número símbolo pra mim, que adoro. Tá ótimo assim. É só uma lista, afinal. Mas parte da minha alma está aí:

O Verão e as Mulheres – Rubem Braga (1990): devorei tudo que encontrei de Rubem quando era moleque. poderia escolher qualquer um. mas este carrega no título duas paixões

TrechoSim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

1984 – George Orwell (1949): referência fundamental na minha vida, expressa em dezenas de artigos, blog, etc. um dos responsáveis pelo meu interesse por política

Trecho: “Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma idéia infinda de vitórias sobre a memória. “Controle da realidade”, chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar”.

Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.

As Grandes Obras Políticas, de Maquiavel a Nossos Dias – Jean Jacques-Chevallier (1982): emprestado por um professor no ensino médio, foi o livro que abriu minha cabeça à machadadas para o mundo. Chevallier é um monstro de erudição, mas consegue tratar cada autor e cada obra com precisão e o máximo de isenção possível, analisando as obras políticas chave do absolutismo até a democracia. Para ler várias vezes.

Trecho (Thomas Hobbes): Onde não existe governo ou lei, os homens naturalmente caem em contendas. Desde que os recursos são limitados, ali haverá competição, que leva ao medo, à inveja e a disputa. Os homens também naturalmente buscam a glória, derrubando os outros pelas costas, já que,  de um modo geral, as pessoas são mais ou menos iguais em força e inteligência, nenhuma pessoa ou nenhum grupo pode, com segurança, reter o poder. Assim sendo, o conflito é perpétuo, e “cada homem é inimigo de outro homem”.

Contraponto – Aldous Huxley (1928): belíssimo romance de Huxley, meu preferido.

TrechoRomântico, romântico! – escarneou ela. – Tens uma maneira tão absurdamente antiquada de pensar nas coisas. Matar e tripudiar sobre cadáveres e amar e o mais que segue. É ridículo. Por que não andas logo de fraque e plastrão?… Procura ser um pouco mais moderno.

– Prefiro ser humano.

– viver modernamente é viver rapidamente – continuou ela. – Não podes carregar um vagão cheio de idéias e romantismo nestes tempos. Quando viajamos de avião, devemos deixar para trás as bagagens pesadas. A velha alma de antanho sentava muito bem quando se vivia vagarosamente. Mas é pesada demais para os nossos dias. Não há lugar para ela no avião…

– Nem mesmo para um coração? – perguntou Walter. – Não me preocupa muito a alma. – Já uma vez se preocupara com ela. Mas agora que a sua vida não consistia em ler filósofos, ele estava um pouco menos interessado nela. – mas o coração – ajuntou -, o coração…

Lucy sacudiu a cabeça.

– Talvez seja uma pena – concedeu ela. – mas tudo tem o seu preço. Se gostamos da velocidade, se queremos ganhar terreno, não podemos levar bagagem. Trata-se de saber o que queremos, e de estarmos prontos a pagar o preço devido. Eu sei exatamente o que quero; assim, sacrifico a bagagem. Se te agrada viajar num caminhão de mudanças, viaja. Mas não esperes que eu te acompanhe, ó meu suavíssimo Walter. Não esperes que eu leve o teu piano de cauda no meu monoplano de dois lugares.

O Lobo da Estepe – Hermann Hesse (1927): outro dos meus queridos, tornou-se obsessão a partir dali.

Trecho:  Então, que quer mais?

– Quero mais. Não estou satisfeito em ser feliz, não fui criado para isso, não é este o meu destino. Meu destino é exatamente o contrário.

– Ser infeliz? Mas isso você era antes, quando não queria voltar para casa com medo da navalha.

– Não, Hermínia, é algo mais. Àquela época, concordo, eu era muito infeliz. Mas tratava-se de uma infelicidade idiota que não conduzia a nada.

– Por quê?

– Porque eu não devia sentir medo da morte se ao mesmo tempo a desejava. A infelicidade de que necessito e por que anseio é diferente: é uma infelicidade que me permitiria sofrer com ânsia e morrer com prazer. Essa é a infelicidade, ou felicidade, por que anseio.

– Compreendo. Nisso somos iguais. Mas que tem contra a felicidade que encontrou agora, com Maria? Por que não está contente?

– Não tenho nada contra essa felicidade. Oh, não! Gosto de Maria. Estou satisfeito com ela. É maravilhosa como um dia de sol em meio à um verão chuvoso. Mas sinto que isso não pode durar. Além do mais, trata-se de uma felicidade infrutífera. Dá satisfação, mas a satisfação não é alimento para mim. Faz adormecer o lobo da estepe, torna-o dócil. Mas não é uma felicidade pela qual se possa morrer.

– Mas é preciso morrer por alguma coisa, Lobo da Estepe?

– Creio que sim! Minha felicidade enche-me de contentamento e posso suportá-la ainda por algum tempo. Mas quando a felicidade me permite um pouco de reflexão, aí meu desejo não é de mantê-la para sempre, mas antes voltar a sofrer, só que de maneira mais bela e menos lamentável do que antes. Anseio por uma dor que me prepare e me faça desejar a morte.


O Processo – Kafka (1925): na minha jornada de descobrimento dos clássicos, Kafka bateu forte, inevitável.

TrechoK. mal prestou atenção nesses discursos; não dava muita importância ao direito, que talvez ainda tivesse, de dispor das suas coisas; para ele era muito mais relevante chegar à clareza sobre sua situação, mas na presença dessas pessoas não podia nem ao menos refletir; sem cessar, a barriga do segundo guarda – de fato só poderiam ser guardas – batia literalmente nele, de um modo amistoso, mas quando erguia os olhos via um rosto ossudo, seco, destoante desse corpo gordo, com o nariz forte virado para o lado, que se entendia por cima dele com o outro guarda. Que tipo de pessoas eram aquelas? Do que elas falavam? A que autoridade pertenciam? K. ainda vivia num Estado de Direito, reinava paz em toda parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele em sua casa? Ele tendia a levar as coisas pelo lado mais leve possível, a crer no pior só quando este acontecia, a não tomar nenhuma providência para o futuro, mesmo que tudo fosse ameaça. Aqui porém não parecia acertado; na verdade, tudo podia ser uma brincadeira, uma brincadeira pesada, que os colegas de banco tinham organizado por motivos desconhecidos, talvez porque ele hoje completasse trinta anos de idade; isso naturalmente era possível, talvez ele só precisasse de alguma maneira rir na cara dos guardas para que esses rissem juntos, quem sabe fossem serviçais da esquina, não pareciam diferentes deles – apesar de tudo estava dessa vez formalmente determinado, desde que viu pela primeira vez o guarda Franz, a não ceder a mínima vantagem que por acaso tivesse diante dessas pessoas. K. atribuía um perigo ínfimo ao fato de que mais tarde pudessem dizer que ele não entendia uma brincadeira, mas sem dúvida se lembrava – sem que de resto tivesse sido hábito seu aprender com a experiência – de alguns casos em si mesmos insignificantes nos quais, ao contrário dos amigos, havia se comportado conscientemente de modo descuidado, sem a mínima sensibilidade para as possíveis conseqüências, sendo assim punido pelo resultado. Isso não deveria acontecer de novo, pelo menos não desta vez; se era uma comédia, então iria participar dela.

Herzog – Saul Bellow (1964): a vida que aprendeu a prosperar com o veneno

Trecho (artigo recomendado): “Minha vida – não uma longa enfermidade, mas uma longa convalescença. O organismo que aprendeu a prosperar com o veneno. (…) Mas como continuamos encantadores, apesar de tudo.”

Trópico de Câncer – Henry Miller (1934): como não se envolver com a escrita desse cara?

TrechoNão tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.

E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza…. e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo…

Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.

É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito.


Ulysses – James Joyce (1922): qualquer coisa que se fale sobre Joyce é insuficiente

TrechoSaltou fora da plataforma de tiro e olhou seriamente para o seu observador, juntando em volta das pernas as dobras soltas de seu penhoar. A cara rechonchuda e sombria e a queixada oval e taciturna lembravam um prelado, patrono das artes na idade média. Um sorriso agradável desabrochou em seus lábios.

– A ironia das coisas! – disse ele alegremente. – Seu nome absurdo, um grego antigo!

Ele apontou com o dedo num gesto amigável e se encaminhou para o parapeito rindo consigo mesmo. Stephen Dedalus se aproximou, acompanhou-o e a meio caminho cansado se sentou na beira da plataforma de tiro, observando-o enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, molhava o pincel na tigela e passava a espuma na face e no pescoço.

Cem Anos de Solidão – Gabriel García Marquez (1967): minha definição de “suculento”

Trecho: Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.

Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar (A Aventura da Modernidade) – Marshall Berman (1982): Berman é um teórico incrível. um dos poucos que conseguem passar longe do “rebuscamento” tão forçado e desnecessário de 95% deles, sendo lúcido e brilhante.

TrechoNossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso sentido de progresso e crescimento é o único meio que dispomos, para saber, com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.

Memórias do Subsolo – Dostoyevsky (1864): pungente como só quem leu sabe

Trecho: “Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor frígido, envenenado e, sobretudo, sempiterno. Há de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa, até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores; e cada vez acrescentará por sua conta novos pormenores, ainda mais vergonhosos, zombando maldosamente de si mesmo e irritando-se com a sua própria imaginação. Ele próprio se envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo lembrará, tudo examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos inverossímeis, com o pretexto de que também estes poderiam ter acontecido, e nada perdoará.”

A Peste – Albert Camus (1947): agonizante

Trecho (artigo recomendado): “A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio.”

Almas Mortas – Gogol (1842): mergulho na sociedade russa, fundamental.

TrechoEu considero inteligente o homem que em vez de desprezar este ou aquele semelhante é capaz de o examinar com olhar penetrante, de lhe sondar por assim dizer a alma e descobrir o que se encontra em todos os seus desvãos. Tudo no homem se transforma com grande rapidez; num abrir e fechar de olhos, um terrível verme pode corroer-lhe as entranhas e devorar-lhe toda a sua substância vital. Muitas vezes uma paixão, grande ou mesquinha pouco importa, nasce e cresce num indivíduo para melhor sorte, obrigando-o a esquecer os mais sagrados deveres, a procurar em ínfimas bagatelas a grandeza e a santidade. As paixões humanas não têm conta, são tantas, tantas, como as areias do mar, e todas, as mais vis como as mais nobres, começam por ser escravas do homem para depois o tiranizarem.

Bem-aventurado aquele que, entre todas as paixões, escolhe a mais nobre: a sua felicidade aumenta de hora a hora, de minuto a minuto, e cada vez penetra mais no ilimitado paraíso da sua alma. Mas existem paixões cuja escolha não depende do homem: nascem com ele e não há força bastante para as repelir. Uma vontade superior as dirige, têm em si um poder de sedução que dura toda a vida. Desempenham neste mundo um importante papel: quer tragam consigo as trevas, quer as envolva uma auréola luminosa, são destinadas, umas e outras, a contribuir misteriosamente para o bem do homem.

O Guardador de Rebanhos – Alberto Caeiro (1925): poema definidor

Trecho:

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo…

(…)

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

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Literatura

O peso do ser

Nada que é plano demais me atrai. Nada que não possua seu grau de tortuosidade, complexidade. Que não fira, de alguma maneira. Que arda. A pungência é necessária. Tão quanto perigosa. A pimenta, o imponderável, a ousadia. Qualidades tão escassas desde sempre. Somos soterrados com o pensar e agir de maneira medíocre, calculada, fria. Em arriscar pouco. Praticar joguinhos odientos. Funcionar pela hipocrisia e covardia. Pelo medo. Pela moral escrota que nos empurram. É de cansar qualquer um.

Esse papo todo de “peso do ser” lembra automaticamente Milan Kundera e seu largamente conhecido “A Insustentável Leveza do Ser”. Que gerou até um filme razoável com Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche. Apesar de achar Kundera superestimado, não dá pra negar que o livro tem suas qualidades e consegue lidar com algumas questões pulsantes.

Neste sentido, prefiro outra passagem clássica, de um autor que tenho mais intimidade e fala mais à mim. É o momento chave de “Brave New World”. É a metáfora perfeita para a essência desse texto. É quando “O Selvagem” questiona diretamente a redoma do “mundo novo” criado. É quando a assepsia e a comodidade começam a incomodar. Perdem o sentido. Afetam demais o que realmente importa. Diz ele:

-[Selvagem] Mas eu gosto dos inconvenientes.

-[Administrador] Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.

-Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.

-Em suma – disse Mustapha Mon -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.

-Pois bem, seja – retrucou o Selvagem em tom de desafio. – Eu reclamo o direito de ser infeliz.

-Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer, no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifóide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.

Houve um longo silêncio.

-Eu os reclamo todos – disse finalmente o Selvagem.

Mustapha Mond encolheu os ombros.

-À vontade – respondeu.

“O peso do ser” é algo muito caro a Huxley, direta ou indiretamente. “Contraponto” é preciso (ou propositadamente confuso) em analisar brilhantemente as diferentes personalidades e anseios de seus personagens. Mesmo com suas passagens políticas, sua inspiração clara no movimento musical, expressa no título, é a premissa perfeita para Huxley explorar as relações e a mente humana. Tudo com sua escrita fina, de beleza e plástica incomum. Para se encantar e degustar. O ritmo das palavras e a rara habilidade para construir diálogos e interseções fazem de “Contraponto” um dos livros que bateram mais forte em mim.

“Ser é ousar ser”, define Hesse. E paga-se um preço altíssimo por isso. Não há como assumir o peso da existência – mesmo que se consiga torná-la leve, por vezes, como deve ser – sem sofrer as duras consequencias disso. Não há margem de discussão possível para o aforismo de que “a ignorância é uma benção”. Nela, é tão mais fácil viver. Quando sua consciência quase inexiste e suas exigências são baixas, tudo fica mais fácil.

Peco pelo exagero, sempre. É da minha natureza. Vou fundo demais. Sou péssimo em esconder o que sinto, o que penso, o que quero. Me dôo extremamente. Orgulhoso. E espero o mínimo de volta. Dizem que “ser razoável” é bom. Em certos casos, sem dúvida. Mas prefiro algo além.

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Filmes

Inception: muito por nada

Fui assistir Inception com a melhor expectativa possível e quase tudo a favor do filme: desde que vi o trailer nos cinemas ano passado criei uma boa imagem do projeto. Minhas restrições com Christopher Nolan eram razoáveis (gostei de The Dark Night, por exemplo, apesar de cair fortemente na revisão), considero Di Caprio ótimo ator, subestimado até, que vem escolhendo bem as produções que participa. Ignorei o oba-oba irrestrito que acompanhou o lançamento, com 90% de aprovação de público e mídia. Até porque geralmente o que me interessa é justamente os 10% restantes.

Pois minha sensação após as 2 horas e meia de filme foi: é só isso? Mesmo? A “complexidade” aqui é tão rala e forçada que convence pouquíssimo. As cenas de ação são óbvias e no automático demais. Tudo parece um cozido mal feito de outras ideias e outras concepções infinitamente melhor exploradas antes. Marion Cotillard desperdiçada num histrionismo irritante. Di Caprio perdido e sobrecarregado, com o peso de ancorar boa parte do drama, da liderança e responsabilidade do filme. E o eixo reinante do casal, fundamental para o roteiro, prejudica sobremaneira a película. Algo que poderia ter sido tratado de forma muito mais eficaz e menos cacete.

Nolan cai em todos seus vícios costumeiros. Os rodeios desnecessários. As “dicas” soltas dignas de um seriado chinfrim e pretensioso. Um bom elenco mal dirigido e um roteiro sofrível, que serve apenas para ele dar vazão às suas pulsões e megalomanias. Assim como “Memento” (Amnésia), filme incompreensivelmente superestimado e badalado, Inception estraga um argumento interessante por falhar em tudo de fundamental que poderia render.

Não empolga em momento algum, nem pela trama, nem pela ação. Uma grande bobagem, apenas. Nolan parece se esquecer que é preciso mais que ganchos primários e toneladas de dólares pra se fazer um filme decente. É exigir demais.

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