Filmes

Revista Movie 9 nas bancas

Chamada básica para a nova edição da minha querida Movie: a edição número 9 chega nas bancas de todo o Brasil agora em setembro. Minha contribuição fica por conta de uma crítica de “O Segredo Dos Seus Olhos”, do Juan José Campanella, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, chegando em DVD. Apesar de falho, o filme tem qualidades intrínsecas à obra de Campanella que me agradam bastante. Além da presença sempre fortíssima de Ricardo Darín, provavelmente o maior ator do cinema latino contemporâneo. Se ainda não viu a película, aproveite a oportunidade.

No mais, produzi também um guia com breve comentários sobre os filmes que estreiam nos próximos 2 meses. Tem coisa boa pra vir. E ainda que você não se interesse por Harry Potter (como eu), as outras chamadas são motivos suficientes para uma olhada nela. Confira o índice completo da edição aqui.

Nas bancas das principais cidades do país e também disponível para compra pelo site.

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Literatura

Dos autores tristemente banalizados: Hermann Hesse

Hesse numa nice, numa tranquila, numa boa

Dá uma série. É inevitável que quando se torne “pop” a obra de alguém seja planificada, esquartejada, reproduzida de modo frenético e gratuito, raramente chegando ao cerne da coisa. No caso das letras, é quando as citações são infinitamente mais lidas e conhecidas do que os livros em si. Mal inevitável e antigo que tomou proporção imensurável na internet: o reino por excelência do faz de conta, da projeção.

Entre os autores que “mais gosto”, há uma categoria especial: os que considero pais. Aqueles que tenho cumplicidade tão grande, que mergulhei tão profundamente, que falam tão diretamente à minha alma que não podem ser colocados lado a lado dos demais. Hesse é um deles. Um dos principais. Com ele aprendi a ser alguém melhor. A pensar e olhar o mundo de outra maneira, literalmente. E se conseguisse aplicar 50% do que Hesse passa, seria alguém incomparavelmente melhor do que sou hoje.

De família protestante, Hesse foi estudar as religiões orientais (tendo viajado longamente para alguns países), especialmente o budismo. Ligado ao início da psicanálise na virada do século XIX/XX (Jung, principalmente) e também pelas marcas da Primeira Guerra Mundial, estes três pontos são fundamentais na sua literatura. Com sua vasta cultura autodidata e a incrível lucidez e sensibilidade para o humano – o que mais me toca nele, inevitavelmente – Hesse acabou por se tornar espécie de ícone do movimento hippie, como um dos autores mais “lidos” e referenciais.

Daí as tentativas fracassadas de ligá-lo ao movimento beatnik (um absurdo sem fim) e o início da popularização de sua obra. A espiritualidade tão forte em Hesse – uma espiritualidade profunda e livre de ranços e maniqueísmos – fala de modo único, dada sua incrível capacidade de colocar as coisas sob um prisma transparente ao mesmo tempo que rico e multifacetado.  Seu profundo conhecimento do cristianismo ocidental em colisão com as bases das religiões orientais geram um caldo irresistível. Ler “Demian” na adolescência, como foi o meu caso, faz bastante diferença. “Demian” é uma bela introdução à obra hesseana, recomendado classicamente para adolescentes dado o poder e simplicidade. Tentei exprimir – com as falhas inerentes – a essência de Demian, ligando-o a outras obras de Hesse e George Orwell, escrito e publicado na época que estava descobrindo tudo isso, em 2004, aos 17 anos.

“O Lobo da Estepe”, sua obra mais famosa, é de pungência assustadora. Harry Haller tornou-se um dos maiores outsiders da literatura, por mais que o termo seja clichê e insuficiente. “Siddartha” é onde Hesse expõe mais diretamente sua relação com  o budismo. “Narciso e Goldmund” vai fundo na psicanálise e história, ambientado durante o período da Peste Negra na Europa. Já “O Jogo das Contas de Vidro”, seu último romance (que lhe deu o Nobel de Literatura em 1946) é o ápice da complexidade e da mente de Hesse. Seu romance final, deliberadamente composto para reunir todas as características de sua obra até então, levando-o a outro nível. Diversos estilos literários misturados e uma infinidade de conceitos e dilemas, “Das Glasperlenspiel” tem força assustadora. No mais, recomendo também a biografia, o “Para Ler e Guardar”, compilação de fragmentos de cartas, pensamentos esporádicos e outros comentários de Hesse e seus diversos contos, sempre arrebatadores. Os demais livros até hoje infelizmente ainda não li.

A banalização é cruel porque reduz toda uma concepção de mundo, estética e filosófica, à uma mero fragmento. Rigorosamente, tudo é banalizado. A simplificação e exposição sucinta de conceitos e pensamentos é um problema quase inescapável. Esse próprio texto. Uma das bases do jornalismo, aliás, como sabemos. Piorado por não se tratar do buraco da rua da esquina que causa problema no trânsito – pra citar um caso diário – mas de coisas que demandam tempo, dedicação, interesse real. Que exigem mais que uma passada de olho rápida. Algo quase surreal em tempos tão estéreis.

A opressão do universo criado em torno do trabalho para total e irrestrita dominação da mente já foi discutida aqui nesse artigo. Sem falar na rede nefasta da própria sociedade.  O problema não é o carinho de alguém por uma obra que não gosta de vê-la jogada como qualquer coisa por aí, a exemplo do que costuma acontecer na música, quando algo se torna popular passa necessariamente a ficar pior para certo grupos de pessoas.  Não se trata de ciúme ou falsa sensação de exclusividade.

Como tudo que me é caro, não posso negar a tristeza pela banalização irrestrita. Mais que isso, perdemos o essencial. Ficam só os rótulos. Para pessoas que costumam receber 800 inserções de propaganda por dia desde crianças – em estudo que lamentavelmente não possuo o link, feito pelo pessoal do Adbusters – parece natural que nos guiemos por marcas e definições baratas. Rejeitando tudo que vá além disso.

A obra de Hesse, como de inúmeros outros (por exemplo Nietzsche que virou bottom de estudante universitário), acabam sofrendo desse mal. A capitalização da cultura não é coisa nova e tampouco obrigatoriamente nefasta, desde que acompanhada de estudo e interesse real. 1% dos casos. Daí que, numa provocação sob isso tudo, cabe a famosa frase de Hesse, extraída de “Lobo da Estepe”: só para os raros. Mesmo.

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Literatura

Minha noção de D’us

Nunca esqueci. Não. Falar em “D’us” – e já explico o porquê da grafia – é um prazer. Não almejo o Deus “cristão”, “religioso”, comum, tão massivamente violentado e negligenciado todos esses [milhares] de anos. No cotidiano da vida mundana e banal, é inevitável escaparmos de certa essência. Certo elemento formador único. Certa sensibilidade e amplitude para a existência. Como se estivéssemos, na verdade, permanentemente desconectados do que realmente importa. Do que nos toca. Do que nos faz bem. E apenas em alguns raros momentos, por uma “epifania” ou uma visão clarificada e jamais gratuita, vemos, sentimos. Está ali: D’us. É a força motriz de tudo. O que lubrifica o labirinto do ser. É entre a pieguice autêntica, o clichê sincero e a estética inevitável que sempre me equilibro. É quando somos mais transparentes. É tentar emergir de tudo que é vil e ordinário. Baixo, ruim. É transformar a “mundanidade” dentro dela.

Tenho encontrado pouco com D’us. Muito aquém do que já consegui e do que deveria. Estar longe de D’us é permanecer afastado de si próprio: de seus verdadeiros anseios, buscas. Do seu espírito. Normal (e saudável) que fiquemos cambaleantes, tontos e angustiados por vezes. Que entremos num mundo sombrio e hostil. A armadilha é não conseguir sair dele. Vejo D’us quando consigo escrever textos necessários e prazerosos. Como este. Vejo D’us nas coisas mais belas e interessantes que encontro. Temos inclinação natural a admirar o que é belo, sábio, engraçado, sarcástico, fora do lugar comum. O que nos impele. Nos chama. Cria o desejo. Por tudo. A curiosidade, a afirmação, o diferente. A afetividade espontânea. Tão fundamental e tão esquecida.

Vejo D’us quando converso com um bom amigo. Quando me entrego a quem acho que deva merecer. Quando ouço música que consiga ir além do trivial. Que tem a rara capacidade de alcançar algo único ali dentro do seu cérebro, da sua alma. Quando me entrego aos pequenos prazeres entorpecentes e reveladores. Quando leio um autor que fale, mesmo, à mim. Quando troco conhecimento, inspiração, risadas. Na lucidez. No trabalho bem feito. Na crítica e na observação. No elogio, quando merecido. Nas coisas bobas, infantis. No hermético e no simples. Nas brincadeiras. Na seriedade. Na natureza. Na loucura e na retidão. No correto e no dissonante. D’us está ali. Sempre. É uma delícia me encontrar com ele.

O resto, meu amigo, é perfídia. Enganação, lucro, vida a esmo. D’us costuma estar em vários lugares. Menos naqueles escritos, designados, arbitrariamente impostos como a “casa” dele. Uma verdade universal é que nós, homens, arrogantes, traiçoeiros, pretensiosos, não sabemos coisa alguma. Ainda mais sobre D’us. Tentar – permanentemente – me reaproximar dele é tentar fazer o caminho necessário para dentro de mim. Dentro de tudo que dá valor e graça à minha vida.

Desde o primeiro momento que vi a grafia “D’us” senti algo diverso. Que alguma coisa de real significado estava ali. Sou assim. Gosto da beleza das palavras. Do sentido oculto. Verdadeiro ou imaginário. Do que podemos dar à elas. Da liberdade de criar, errar, ousar. Um amigo, querido. E com quem discordo de muita coisa, me explicou. E tomo aqui a liberdade de transcrever parte do seu conhecimento, dado a mim num email de 2008:

No Antigo Testamento, no texto original, as alusões a D’us nunca são nominais. Javé, o nome Dele, é escrito com as letras hebraicas Yod, He, Vav e He, sem vogais. E assim é impossível adivinhar a pronúncia do nome. Por isso, é comum na liturgia judaica se referir a Ele como HaShem (“O Nome”, em hebraico). Eu poderia passar o resto do dia falando sobre isso, mergulhando nas implicações cabalísticas e neoplatonistas d’O Nome, mas (…) fica pra próxima. O importante é saber que o nome de Deus é impronúnciavel. E por essa razão há o nome D’us. Existe uma outra razão, também: eu prefiro fazer distinção entre D’us mesmo, e “Deus”, uma palavra utilizada sem nenhuma significância no dia a dia, em expressões como “pelo amor de Deus”, “juro por Deus”, “ai Deus meu!”, etc. Como disse acima, eu sou extremamente supersticioso, e embora não seja religioso, prefiro manter o espírito presente no judaismo, onde a palavra ganha uma dimensão inédita em qualquer outra língua ocidental. “D’us” conserva um mistério, o desconhecido. E assim deve ser.

Difícil pensar em poucas coisas mais lindas que isso. O respeito e admiração que tenho por “D’us” é imensurável. E por isso procuro não ferir ao que julgo fundamental. Nem sempre consigo. É um exercício constante. Complicadíssimo. Que só pode ser simplificado pela prática. Pela intimidade. Só cada um pode alcançar o real sentido que “D’us” tem em nosso ser. O estrito significado que você guarda contigo. Ou a ausência dele.

Eis o que representa D’us pra mim. Com todas as lacunas que um breve texto pode deixar. Ahava.

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Brasília representa tudo que está errado no Brasil

Ao mesmo tempo em que é a cidade maravilhosa descrita no post anterior, Brasília simboliza, precisamente, muito do pior deste país. A desigualdade e o abismo social não está tão escancarada em nenhum outro lugar como em Brasília. Na capital federal, pobre, definitivamente, não se mistura com os ricos e a classe média. Não dividem o mesmo espaço, as mesmas ruas, os mesmos lugares. Brasília é como um enorme condomínio fechado. Nele, só o funcionalismo público e a classe média alta podem permanecer. No Plano Piloto, a total e irrestrita separação social atinge seu ápice e sua manifestação mais flagrante.

De fato, os candangos pioneiros foram literalmente expulsos à força para as cidades satélites (como brilhantemente mostra o documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra”, do Vladimir Carvalho, obrigatório e já lembrado aqui). A “limpeza social” feita em Brasília deliberadamente desde sua fundação nunca fez questão de ser sutil.

Com a especulação imobiliária a níveis extremos desde sempre, a classe média foi cada vez mais empurrada para rincões pós-Plano Piloto como Guará e Águas Claras. A favelização de Brasília tem no nome abjeto de Joaquim Roriz, que conseguiu a façanha de instalar uma oligarquia por 4 mandatos e 16 anos (!!!!), o maior representante. Roriz alcançou o pleno objetivo de instalar o caos social, econômico e urbano. A capital do país entregue nas mãos de uma besta completa por quase 20 anos. Recomendo o ótimo artigo de Leandro Fortes sobre o tema.

Brasília foi concebida e administrada para os ricos. Os milhões de carros que se amontoam pelo DF expressam não só o alto poder aquisitivo da população, como o descaso total com quem não possui veículo. Os parcos e maltratados ônibus, o metrô caríssimo e ineficiente. As passagens para pedestres no Plano (como a que ilustra este texto) totalmente abandonadas, sujas, escuras e perigosas. Brasília não foi feita para que se ande a pé. Nunca. Jamais. Tente fazer isso e terá a experiência máxima da opulência errônea da capital.

Os pobres que se amontoem e se estrepem nos seus grotões de sujeira, violência e falta de infra-estrutura básica. Os cargos e concursos públicos, vocação por excelência, acabaram por criar a maior obsessão e sentido de vida do brasiliense. Não existe vida fora da teta do Estado/Distrito. Não existe possibilidade de se ter uma carreira ou uma vida “normal” fora de um cargo público. É o Estado paquidérmico, lento, pesado, caríssimo, que oferece empregos que pagam substancialmente acima da média do mercado. É dinheiro mal e porcamente gasto. Desperdiçado.

É a corrupção endêmica, enraizada, esperada. Por concepcão, concentra todo o jogo político podre a que estamos acostumados (e anestesiados). São os recursos recebidos indevidamente da União. A sua questionável natureza administrativa e política. O planejamento para abrigar  o erro.

Lugar de gente fria, egoísta, não raro ignorante. Que a generalização não ofenda quem não se encaixe no perfil. Toda generalização é arbitrária, falha e – até – provocativa. É o reino do dinheiro fácil. Da meritocracia da coleira. Do aplauso ao adestramento. Ao curral da mente. Do clima insuportável. Da bolha imobiliária, automotiva, inflacionária. Do total e irrestrito abandono aos direitos mais básicos. Da vida fútil e das conversas insuportáveis.

Brasília concentra tudo que está presente em outros lugares do Brasil. De forma drástica, maciça, draconiana. É a utopia que não deu certo. A concepção “humanitária” que fracassou miseravelmente. Entre os paradoxos e as questões expostas aqui – dentre outras fatalmente esquecidas – Brasília se equilibra. Tateia no escuro. Se consola com o belíssimo céu favorecido pela arquitetura e posição geográfica.

Muito pouco para uma cidade que nasceu para ser justamente o oposto do que atualmente é. Ou, na verdade, talvez tenha cumprido seu objetivo verdadeiro, principal. Criar uma ilha de riqueza e qualidade de vida para alguns e manter o povo longe, bem longe de suas estruturas, sem nenhuma capacidade de questionamento, resistência. Parabéns, Brasília!

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Brasília é um caminho sem volta

Se não está disposto a se apaixonar, não vá para Brasília. Ela jamais sairá de você. Toda metrópole tem suas similaridades. Toda cidade do interior também. Brasília não. Ela é diferente de todas as cidades do mundo. Singular, única. Sair do ninho do caos normal de qualquer metrópole brasileira e parar em Brasília é uma covardia: com você e sua cidade anterior. O Plano Piloto irá te acostumar mal, muito mal. Este texto não é para analisar os problemas flagrantes do Distrito Federal. Matéria para outro post. É apenas para tentar expressar minha relação com o Plano Piloto.

Brasília não fede a lixo e urina. Não tem vielas incompreensíveis, vias sem saída e sinalização, desordem urbana. É absurdamente segura. Tanto quanto alguém que tenha nascido na cidade sequer pode compreender. Não há pobreza no Plano Piloto. Simplesmente porque não há espaço para isso. O principal problema que você irá encontrar são as hordas de playboys e alguns zumbis do crack. Presentes na maioria das cidades, diga-se.

Brasília é limpa, verde, cordial. As largas ruas planas e arborizadas. O charme do Lago Paranoá. Todo lugar, dentro do Plano, é perto. Supermercados, farmácias, padarias, restaurantes, bares, lojas, shoppings, parques, etc – está tudo ali, a poucos minutos. Brasília zomba do resto do mundo. Experimenta o imponderável. Está contínua e inapelavelmente na frente do seu tempo. Acolhe uma tranquilidade quase surreal.

Marca. Permanece. Desafia e torna pálido os outros lugares. Parece o “mundo de Poliana”. Não é. Dentre os inúmeros defeitos e problemas que a cidade possui, Brasília ainda chega bem perto do melhor cenário possível. Mérito de toda sua concepção e outros elementos posteriores.

É uma delícia e um perigo estar em Brasília. Conseguir quebrar o encantamento. Sair da esfera criada. Tento. Não sei se quero. A tentação é grande demais para ser negada. A cidade chama, ecoa. Faz de tudo para ser amada. Difícil resistir.

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Hora do show?

Edson Moreira: o show não pode parar

Comentei sobre o lado humano e “esportivo” do caso Bruno lá no Olímpico, neste texto aqui. Há outro, inevitável. É regra que a imprensa eleja seus fetiches e proporcione “coberturas” absurdamente massivas 24 horas sobre qualquer coisa que se transforma numa “tragédia nacional” e tenha potencial para audiência. Sempre foi assim. Sempre será. Na época do caso Isabela Nardoni, falei sobre isso aqui. Vale para o momento atual. Se encaixa para a maioria de situações assim.

Fora o papelão habitual da imprensa, há sempre um ou outro “personagem” que, claro, aproveita os holofotes para ter suas (muitas) horas de fama. O delegado Edson Moreira, no entanto, ultrapassa bastante essa média. Piorado por ser algo que interfere diretamente nas investigações e por consequencia no resultado final do processo. Alguém de importância tão grande no caso, que define os rumos a serem dados, não poderia nunca ter o tipo de comportamento que Edson Moreira tem.

Entrevistas coletivas todos os dias. Várias vezes, se necessário. Entrevistas “exclusivas” para programas específicos, como o Brasil Urgente, de Datena. Qualquer indício novo: entrevista. Qualquer coisa que possa causar frisson e ser complicada ao máximo, ele faz. Qual explicação para levar um comboio de carros com Bruno e Macarrão a atravessar Belo Horizonte para fazerem um exame de DNA que poderia ser feito onde estavam e que no fim ainda foi – por direito- negado pelos dois?

Edson Moreira tem necessidade gritante de atenção. De causar “espetáculo”. De extrair cada gota da cobertura da imprensa. Além disso: “interpreta” os depoimentos que recebe, numa clara “atuação”, pretensiosamente dramática. E “atua” como se fossem fatos o que são apenas versões. Aliás, há que se lembrar em que momento da história versões e indícios preliminares, não comprovados e duvidosos tornaram-se fatos incontestáveis, suficientes para condenar alguém e resolver a investigação com rapidez assustadora.

Todas as regras profissionais, éticas, do bom-senso, da razão, do aceitável, do respeito, da lisura, da independência e da competência são quebradas. Lastimável não apenas pelo citado aqui, mas porque este comportamento inaceitável atinge diretamente a capacidade de apuração e levantamento dos dados e o julgamento final. Para todos os lados. “Vergonha” é um termo insuficiente para definir um descalabro desses.

Mais:

Mídia legitima versão policial como única e verdadeira

E se Bruno for inocente?

Nem novela mexicana…

Istoé: A polícia que nada prova

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Futebol, integração (!?) e as feridas expostas da América

Das coisas boas que o futebol traz, é curioso o senso de “integração” manifesto no twitter por diferentes pessoas em relação à América Latina nesta Copa do Mundo. A recente (e dramática) classificação uruguaia para a semifinal do torneio – que não acontecia há 40 anos – foi sintomática em engrossar a torcida por nossos vizinhos. Claro que boa parte disso é efêmero, ancorado numa simpatia frágil, interesse comedido e envolvimento passageiro.

Ainda assim, simboliza algo. Lembrei de um texto que publiquei em 2007: uma breve análise do livro “As Veias Abertas da América Latina”, clássico absoluto sobre a história crítica do continente, lançado pelo escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano em 1971.

Galeano é conhecido, também, por ser fanático por futebol, tendo livros dedicados inteiramente ao tema (como “Futebol Ao Sol e À Sombra”), sendo sempre solicitado para comentar o esporte. No artigo, cito justamente nosso quase total e irrestrito desconhecimento sobre a história da América Latina, além do papel imperialista do Brasil na região. A Copa do Mundo, mesmo que brevemente, ajuda a termos um olhar mais aproximado dos vizinhos, sendo uma boa oportunidade para retomar o tema.

Por isso, republico aqui o artigo lançado originalmente no Simplicíssimo e que na verdade foi escrito por mim para debate num grupo de estudos da América Latina que fundamos na faculdade. Que sirva para mudar velhos hábitos arraigados e que mal percebemos. Ou, menos pretensiosamente, que possa suscitar um novo debate: sadio e necessário.

Eduardo Galeano: as feridas expostas da América


“…temos guardado um silêncio bastante parecido com a estupidez…”

A primeira frase que lemos ao abrir “As Veias Abertas Da América Latina” é de uma pungência reveladora. Inquisitiva, na verdade. Dá para o leitor, senão a vergonha, um possível incômodo muito próximo do real: somos um povo alienado quanto à sua própria origem.

Quantos de nós não somos capazes de tecer longos comentários sobre a história e as vanguardas artísticas européias mas quando apontamos para a América Latina simplesmente engasgamos? Nosso quintal? Quintal dos Estados Unidos? As faces do imperialismo são muitas, inclusive aquela que se transmuta num sub-imperialismo, outorgando sobre os países do bloco, principalmente Brasil, Argentina e México, o papel de devorador de seus próprios semelhantes.

Os brasileiros, em especial, parecem literalmente de costas para o resto do continente. Ilusões de independência ou opulência desmedida, não se sabe. Apreço excessivo por se parecer estadunidense ou europeu. Estranheza quanto à língua mater – afinal, somos os únicos da região que falamos português. As possibilidades variam.

Há um comportamento típico do ignorante: ele evita aquilo que desconhece. Porque isso nada mais significa do que se expor, estar vulnerável às suas indisfarçáveis fraquezas. De fato, não é surpreendente a distância propositadamente criada entre os habitantes desta parte do globo. Vassalos, desde muito, os grilhões ainda permanecem no lugar mais difícil de serem extirpados: nossas mentes.

De nítida tradição marxista, Galeano faz uma reconstrução minuciosa da história do bloco, amparado em inúmeros estudos, dados, referências e fatos sólidos, provendo a base necessária para que suas explanações nos sejam críveis. Difícil, isto sim, contrapor aquilo que é apresentado. Resume ele:


“Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal têm-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar tem sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. (…) Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos.” (pág. 14).

Nossa ruína significou, portanto, o desenvolvimento do velho mundo, o máximo esplendor que o sistema pôde alcançar. Prata, ouro, açúcar, café, estanho, salitre, ferro, petróleo, borracha, cacau e algodão, cada um em seu ciclo, numa determinada época e ocorrendo em vários países, significaram a exploração de todas as riquezas existentes na América Latina, financiando, de modo essencial, a ascensão do capitalismo e o nível de vida que europeus e estadunidenses têm hoje.

Os recursos que uma terra ou região poderia dar, não raro, significavam a destruição completa daquela localidade. O auge e queda de Potosí, na Bolívia, Ouro Preto, no Brasil e Havana em Cuba são sintomáticos em demonstrar o quanto a sede imperialista pode devastar, em tão pouco tempo, redutos de abundância mineral e produtiva. Destino não menos trágico tiveram as principais cidades da Argentina, Peru, Equador, Chile, Uruguai, Paraguai, Venezuela, México e Haiti.

Vista aérea da atual Potosí

Dos 90 milhões de índios que habitavam estas terras antes da chegada dos conquistadores, sobraram apenas 3,5 milhões no impressionante espaço de um século e meio após a descoberta. Dizimados e escravizados, foi principalmente sob a pele indígena que a Europa encontrou o cenário perfeito para a sua salvação: recursos naturais em abundância e mão de obra gratuita. Segundo dados oficiais da época, que não consideram a imensa exportação clandestina para lugares como China e Filipinas, entre 1503 e 1660 chegaram ao porto de San Lucas de Barrameda, na Espanha, 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. Já a produção brasileira de ouro, no século XVIII, proporcionou à Europa um volume maior que o extraído das colônias nos dois séculos anteriores. Dez milhões de escravos africanos foram trazidos para o Brasil.

No mosaico composto por Galeano, há poucos buracos. Demonstra, de forma clara e sistemática, as diferentes formas de expropriação ilegal do continente ao longo das épocas. Intervenções diretas e agressivas nos governos, subjugação literal dos povos oprimidos e, mais recentemente, a ingerência inegável em assuntos internos dos países, além do domínio do capital estrangeiro. Números de 1968 mostraram que este capital externo controlava, no Brasil, 40% do mercado de capitais, 62% de seu comércio exterior, 82% do transporte marítimo, 67% dos transportes aéreos externos, 100% da produção de veículos a motor, 100% dos pneumáticos, mais de 80% da indústria farmacêutica, 50% da química, 59% da produção de máquinas, 62% das fábricas de autopeças, 48% do alumínio e 90% do cimento.

Este quadro se alastra por todos os outros países do bloco. O domínio do sistema bancário, também, é quase absoluto. Empréstimos do FMI e do BID, órgãos que defendem os interesses estadunidenses, são sempre acompanhados por duras exigências e cartilhas inflexíveis que afetam a soberania dos países. Entre as condições, estão, por exemplo, a obrigação de utilizar os fundos em mercadorias dos Estados Unidos e transportar pelo menos a metade para eles. Determinam a política de tarifas e impostos dos serviços, aprovam planos de obras, redigem licitações, administram os fundos, os juros, o pagamento da dívida e vigiam o cumprimento dos mesmos. Interferem até no ensino superior da região. Não se pode modificar, sem seu conhecimento prévio e permissão, as leis orgânicas ou os estatutos, impondo também reformas docentes, administrativas ou financeiras, tudo de acordo com as pautas do neocolonialismo cultural.

"The return of the flame" de Rene Magritte

Não deixam brechas, ressalta Galeano:

“Empobrecidos, sem comunicação, descapitalizados e com gravíssimos problemas de estrutura dentro de cada fronteira, os países latino-americanos abatem progressivamente suas barreiras econômicas, financeiras e fiscais para que os monopólios, que ainda estrangulam cada país separadamente, possam ampliar seus movimentos e consolidar uma nova divisão do trabalho, em escala regional, mediante a especialização de suas atividades por países e por ramos, a fixação de dimensões ótimas para suas filiais, a redução dos custos, a eliminação dos competidores alheios à área e à estabilização dos mercados. As filiais das corporações multinacionais só podem apontar à conquista do mercado latino-americano, em determinadas condições que não afetem a política mundial traçada por suas casas-matrizes.”

Neste ponto, e lembrando que um dos principais problemas do livro referem-se à questão temporal, apresentando muitos dados ultrapassados e obsoletos, que carecem de uma atualização, convém resgatar o ano de 1989, fundamental tanto para a política quanto para o pensamento vigente. Após a queda do muro de Berlim e a apressada declaração de morte do comunismo, o ideal capitalista tratou logo de se solidificar.

O Consenso de Washington, conjunto de medidas englobando dez regras básicas – como disciplina fiscal, abertura comercial, investimento estrangeiro direto sem restrições, privatização das estatais e leis trabalhistas mais “leves”, na verdade prejudicando o trabalhador, formuladas por economistas do FMI, do Banco Mundial e do Departamento de Tesouro do Estados Unidos, sob artigo do economista John Williamson, foram criadas para e seguida a risca por todos os países do bloco latino-americano da década de 90 até hoje. As “orientações” visavam a “recuperação econômica” das nações em desenvolvimento.


Outro marco de 1989 foi o aparecimento do artigo “O Fim da História”, do estadunidense Francis Fukuyama, na revista “The National Interest”. Para Fukuyama, o fim do socialismo era a prova da superioridade da ideologia capitalista e da democracia burguesa, tendo a humanidade atingindo, no final do século XX, o ponto culminante de sua “evolução”, sob todos os demais sistemas concorrentes. Como “solução final do governo humano”, o capitalismo contemporâneo decretava “o fim da história da humanidade”, a única alternativa possível e viável.

Resignar-se, portanto, à sua condição histórica “natural”, respeitando toda a herança imposta pelo imperialismo e sendo complacente com a ingerência do capital externo seria uma espécie de sugestão à América Latina, já que a solução estava dada através da cartilha recomendada.

Após 20 anos de atuação, o neo-liberalismo ainda patina em sua ineficiência e paradoxos.

Curiosa contradição histórica, considerando que os Estados Unidos pregam o liberalismo apenas para os outros, sendo rigorosamente protecionistas para consigo mesmos, transformando “a mão invisível” de Adam Smith no nada sutil big stick do inquisidor Tio Sam de cartola e dedo em prontidão.


Galeano expõe com propriedade tudo de mais intrínseco, e doloroso, que a América Latina possui nestes séculos de vida. O breve panorama traçado por ele comprova, com assustadora exatidão, aquilo que George Orwell constata ao final de “Revolução Dos Bichos”. Observando a notável semelhança adquirida entre homens e porcos, que agora andavam sob duas patas, vestiam ternos, tinham a mesma postura e os mesmos hábitos que os seus inimigos do passado, deixa entrever uma frase tristemente adequada às explanações do livro de Galeano: “todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.”

O uruguaio termina, não por acaso, numa espécie de convocação aos habitantes do bloco, sugerindo um despertar das massas, tal qual Marx e Engels ao final do Manifesto Comunista. Diz ele:

Enquanto o norte da América crescia, desenvolvendo-se para dentro de suas fronteiras em expansão, o sul, desenvolvido para fora, explodia em pedaços como uma granada.

O atual processo de integração não nos faz reencontrar nossa origem nem nos aproxima de nossas metas.

Não há de ser a General Motors ou a IBM que terá a gentileza de levantar, no nosso lugar, as velhas bandeiras de unidade e emancipação caídas na luta, nem hão de ser os traidores contemporâneos os que realizarão, hoje, a redenção dos heróis ontem traídos.

Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos a tarefa. A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre a consciência dos homens.”

Sobrepujar a letargia e servidão de nossas próprias posturas, e pensamentos, parece-me, de fato, o primeiro passo para que isto aconteça.

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